segunda-feira, 18 de março de 2024

Fim do acordo militar entre o Níger e os EUA é um "duro golpe" contra Washington

Base militar americana de Agadez no norte do Níger em 2018. (Foto de arquivo) AP - Carley Petesch

Neste sábado, a junta militar no poder no Níger anunciou o fim "imediato" do acordo firmado em 2012 com os Estados Unidos autorizando a presença de militares e civis do departamento de Estado americano no território do Níger.

Em declarações transmitidas em directo, Niamey disse que a presença americana no país é "ilegal" e que ela "viola todas as regras constitucionais e democráticas". De acordo com a junta militar, este acordo que considera "injusto" tinha sido "imposto unilateralmente" por Washington através de "uma simples nota verbal".

Esta decisão foi anunciada depois de uma delegação americana de alto nível ter-se deslocado ao país e ter tentado durante três dias evocar com Niamey a transição política e a luta contra o terrorismo. Durante estas conversações que a diplomacia americana qualificou de "francas", a junta militar considera por sua vez que a delegação americana tentou "negar ao povo nigeriano soberano o direito de escolher parceiros e tipos de parcerias que possam ajudá-lo verdadeiramente na luta contra o terrorismo" e que houve por parte dos representantes de Washington uma "atitude condescendente, acompanhada da ameaça de retaliação do chefe da delegação americana em relação ao Governo e o povo nigerianos".

Com cerca de 1.100 militares e uma base em Agadez, no norte do país que lhe permitia vigiar o Sahel, os Estados Unidos tinham uma parceria importante com o Níger.

Depois de a França ter sido obrigada a retirar as duas forças do Níger no ano passado, é por conseguinte a vez de os Estados Unidos se afastarem, a sua estratégia de manter o diálogo com Niamey depois do golpe do ano passado não tendo surtido efeito.

À semelhança de outros países da região, o Mali e o Burkina Faso, onde os militares tomaram recentemente o poder, o Níger tem vindo a efectuar grandes mudanças estratégicas. Além destes três países terem formado uma coligação para a luta contra o terrorismo, voltaram-se para parcerias com países como a Rússia e em finais de Janeiro anunciaram a sua saída da CEDEAO.

Em entrevista concedida à RFI, Calton Cadeado, investigador e professor de relações internacionais na universidade Joaquim Chissano em Maputo, considera que isto representa "um duro golpe geopolítico e geoestratégico" contra os Estados Unidos.

RFI: O que é que representa esta decisão da junta militar do Níger?

Calton Cadeado: Neste momento, para os americanos, interessa e muito manter as bases militares que têm no Níger. Estamos a falar de bases militares. Uma delas, a principal, foi construída de raiz, a um custo de mais de 100 milhões de dólares. Então é um custo que você faz para investir e demonstrar que tem um interesse grande na zona. Perder isso de um momento para o outro é um duro golpe. Depois, é um duro golpe porque a retirada ou a suspensão ou eliminação desta cooperação militar entre os Estados Unidos da América e o Níger abre um espaço grande para a reafirmação da presença dos russos nesta zona, que está claro, como bem disseram os líderes golpistas, que eles são livres e soberanos de fazer as parcerias com quem eles quiserem, desde que isso signifique a satisfação dos seus interesses nacionais, o que é justo e sinaliza o lado deles para a Rússia.

 E uma Rússia que vai ganhando espaço nesta zona, que já se confirmou que não é algo de novidade, porque já está no Mali e no Burkina Faso, numa cooperação avançada nestes dois países. O que traz alguma surpresa e espanto para os americanos é provavelmente a presença ainda não confirmada da cooperação com o Irão. De qualquer das formas, esta suspensão é um duro golpe para os americanos. É um duro golpe geopolítico e geoestratégico, porque estamos a falar de um país como o Níger, que tem recursos naturais de grande valor estratégico, que é o urânio. Mas também estamos a falar da presença das bases militares, que é estratégica para poder fazer a acção de luta contra o terrorismo nesta zona. Entretanto, os americanos podem estar agora livres de explorar outras opções. Outras opções, significaria fazer voltar os americanos para as bases nos Estados Unidos da América ou colocar outras bases no mundo. Ou então relocar os militares ao nível de África, alargando a cooperação com outros países, como por exemplo, Gana ou Senegal. Porque não pensar até na Guiné-Bissau que tanto precisa disso? Ou então investir em convencer os outros Estados africanos, tal como fizeram com o Jibuti, de que a presença das forças americanas tem uma mais-valia. Isto pode ser uma outra opção para não deixar espaço vazio para a presença mais acentuada dos russos e, provavelmente dos iranianos.

RFI: A presença americana no Níger, tal como outras presenças ocidentais, justificava-se pela luta contra o terrorismo. Até que ponto é que, de facto, este objectivo terá sido conseguido? Há, por exemplo, o campo do presidente derrubado, Mohamed Bazoum, que diz que esta presença americana fez com que houvesse alguns progressos a nível dessa luta. Concretamente, isto representou algum avanço?

Calton Cadeado: Vamos estar sempre no meio de uma guerra de narrativas, de uma competição política. Obviamente que o lado do Bazoum, porque quer e precisa do apoio americano, vai sempre justificar a presença dos americanos com resultados, ainda que sejam pequenos, mas que sirvam para justificar a presença e, se calhar, ter um apoio político dos americanos. Mas, por outro lado, os que estão contra o regime de Bazoum vão obviamente dizer que a coisa não funcionou e vão trazer provas quer de um, quer do outro lado. Vai trazer provas. Então fica difícil olhar para isso. Apesar de reconhecer esta guerra de narrativas, sei que há sinais de que os resultados da luta contra o terrorismo na zona do Sahel não foram resultados que permitissem a eliminação de grupos terroristas que estão a operar na zona, o que é o objectivo último e desejável de todos. Algo que nós sabemos que não pode ser alcançado a curto prazo, sobretudo porque nós sabemos que os grupos terroristas têm um tempo de vida útil. Porque eles nascem, crescem, têm um momento de pico, mas também têm um momento de estagnação e provavelmente um período de morte. Isso pode levar uma geração, 25, 30 anos e por aí adiante. Então, não era expectável que os americanos conseguissem, com a cooperação nigeriana, eliminar o grupo terrorista ou os grupos terroristas, porque não é um único grupo terrorista. São grupos terroristas. Então, vamos ficar sempre nesta guerra de narrativas com evidências de recrudescimento de terrorismo, mas também com evidências de que os terroristas, nalgum momento, eles se sentiram pressionados e passaram mais tempo a pensar em fugir da perseguição do que necessariamente a realizar ataques terroristas. A prova disso é que há algum tempo houve claramente ataques, mas com interregnos longos. Não era com muita frequência. Hoje que estamos a falar da saída dos americanos, sabemos que há um recrudescimento de ataques terroristas na zona. Então, é difícil neste momento, tomar partido, não reconhecer a guerra de narrativas.

RFI: E lá está, isto tem um cheirinho de 'Guerra Fria' ou isto será de facto uma visão um pouco limitada daquilo que está a acontecer no Sahel?

Calton Cadeado: Se for naquele conceito, é difícil dizer que sim. Mas se assumirmos que é uma competição geopolítica e geoestratégica entre as grandes potências, eu diria que é mais fácil aceitar essa abordagem, porque hoje a América, o Ocidente, sabe que existe um antiamericanismo em África. A França sabe que existe um sentimento anti-França em África, sobretudo na zona da África Ocidental. E para substituir estas grandes potências, os países onde se regista esse antiamericanismo estão a olhar para a Rússia como uma alternativa, até porque a Rússia é uma alternativa que oferece algum espaço de manobra para a soberania destes países poder funcionar mais à vontade. Há pouco falávamos da delegação americana que foi para Niamey e uma das coisas que se fala lá é que houve do lado dos americanos, pelo menos de acordo com a narrativa dos golpistas -que eu prefiro chamar eles assim mesmo golpistas- houve sinais de que os americanos insistiram com algumas posições que eram contra a soberania do Estado nigeriano. Se for por aí, eles não têm a mesma pressão na mesma magnitude. Do lado dos russos, que estão neste momento à procura de ganhar os corações e as mentes das lideranças africanas, para isso acontecer, nada melhor do que fazer o contrário do que os ocidentais fazem.

RFI: O que é que isto significa relativamente, por exemplo, ao processo político do Níger?

Calton Cadeado: Em termos políticos, significa que a saída da cooperação militar do solo nigeriano pode dar mais espaço de manobra à Junta militar para resistir a qualquer tipo de pressão que venha dos americanos. Porque hoje eles conseguem resistir à pressão dos americanos, mas sabem que estão vulneráveis para qualquer tipo de acção de desestabilização que possa vir dos próprios americanos, porque têm a presença militar lá no território. E estamos a falar de um país chamado Níger, cuja capacidade militar não é das melhores do mundo para enfrentar, ainda que sejam 1000 homens, só 1000 homens americanos. Aí, com a tecnologia e capacidade militar que eles têm, podem fazer todo o tipo de perturbação. Então, para os nigerianos, neste momento, retirar a força militar americana significa libertar-se de uma pressão que está sempre presente e que pode significar a morte do regime.

RFI: E para os Estados Unidos, portanto, a sua presença militar no Níger era uma das mais importantes a nível do continente africano. Os Estados Unidos têm também uma base no Djibuti. Falou do facto de isto representar um revés para os Estados Unidos, tanto mais que estamos em ano de eleições.

Calton Cadeado: Sem dúvida, é um duro golpe para os americanos, porque é uma perda geopolítica e uma perda geoestratégica e o prestígio da América na sua presença de África. Hoje a América tem que encontrar outra solução para garantir que a sua presença militar em África não seja prejudicada. Porque que eu digo isto? É que a América é uma superpotência e 'superpotência' significa ser um país ou um Estado com capacidade de influência global a nível político, militar, económico, tecnológico, à escala global e até cultural, à escala global. Então, se nós temos uma América com bases militares e vários comandos ao nível da Europa, do Oeste, do Sul e por aí adiante, a presença do Comando Militar de África ainda não está consolidada porque o antiamericanismo é forte e presente nesta zona. Então a América terá que conviver com este assunto, com esta luta por ganhar corações e mentes das lideranças africanas para poder manter a sua presença militar, porque 'superpotência' sem capacidade militar presente na escala global não é superpotência. Não é por acaso que dizemos hoje que só existe uma única superpotência, que são os americanos. E eles podem perder esse estatuto de superpotência se não consolidarem a sua presença militar no mundo. A África hoje é um lugar importante.

RFI: Quais são os riscos para o Níger? Porque o Níger, neste momento está numa transição, uma transição em termos de política interna e também em termos de estratégia e de parcerias internacionais.

Calton Cadeado: O risco grande de hoje é tirar a América, trazer os russos amanhã e daqui a 10, 20, 30 anos, ter problemas também com os russos, porque os russos não são os meninos de olhos azuis que não têm interesses. Hoje podemos ser amigos amanhã, mas isso pode durar 20, 30, 40, 50 anos, não é? É uma coisa. Enquanto essa parceria durar, tirar os nossos benefícios e garantir os nossos interesses nacionais, para os nigerianos, tudo bem. Mas também quanto tempo vai durar o regime golpista no poder? Nós não sabemos. Por último, estamos a falar que o Níger de hoje não é o mesmo Níger de amanhã, porque há muita população pobre e há muitos problemas domésticos no Níger que carecem de uma solução que obriga a que o Níger faça parceria com outros estados. E a Rússia não será nem de perto a única solução para os seus problemas.

RFI: Este fim-de-semana, a Junta Militar reiterou, tal como o tinha dito logo depois do golpe, que a transição iria durar três anos. Julga que a Junta Militar vai respeitar a sua promessa?

Calton Cadeado: É difícil dizer isso hoje. Se olharmos para o que está a acontecer no Mali, é difícil dizer o que vai acontecer amanhã. Se olharmos para o que está acontecendo no Burkina Faso, também. Este trio Burkina Faso, Níger, Mali, parece que eles estão a ter vitórias políticas e estratégicas que lhes dão um pouco mais de força e de conforto para poder navegar a seu bel-prazer neste processo de transição. Por exemplo, na semana passada, o Níger conseguiu uma vitória que não foi muito falada, que foi a suspensão das sanções que a Nigéria tinha imposto e estamos a caminho da suspensão das sanções da CEDEAO. Então a CEDEAO hoje precisa tanto do Níger, mas o Níger também precisa da CEDEAO. Se se consolidarem estas vitórias políticas curtas, pequenas, isto vai dar mais força a estes regimes golpistas e se calhar até inspirar outros regimes golpistas para poderem navegar à vontade. 

Eu digo isto porque, para além desta vitória de suspensão, os nigerianos, mesmo com os problemas domésticos que têm agora, mandaram um sinal ao mundo que todos não estavam à espera, que é a renegociação da exploração dos recursos naturais. Nunca o Níger ganhou dinheiro para a exploração do urânio como está a ganhar na actualidade. Isto pode também ajudar o Níger a sobreviver, a criar uma certa postura de arrogância e evitar cumprir todos aqueles prazos ou compromissos assumidos em termos de transição política.

Por: Liliana Henriques
Conosaba/rfi.fr/pt/

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