Nas roças de São Tomé e Príncipe ainda há contratados que chegaram ao país para trabalhar nas roças antes da independência. A maior parte vive em condições precárias, com uma reforma muito baixa, já que os anos em que trabalharam para a potência colonial não contam para as autoridades são-tomenses e Portugal não lhes dá qualquer compensação. Em Água Izé, que chegou a ser uma das maiores roças do país, a RFI falou com dois contratados e com uma professora que está a tentar mudar esta situação.
No início do século XX, as roças, grandes propriedades coloniais dedicadas à produção intensiva de cacau e café, ocupavam cerca de 90% do território de São Tomé e Príncipe.
Durante mais de um século, até ao 25 de Abril, o sistema das roças foi sustentado por trabalho de contratados vindos sobretudo de Angola, Moçambique e Cabo Verde. Muitos destes contratados acabavam por assinar contratos à vida, nunca regressando à sua terra natal, e levando a cabo uma forma de trabalho escravo.
Hoje, muitas dessas roças ainda existem, algumas delas com funções agrícolas, e outras abrigando comunidades que após o fim da colonização permaneceram nesses locais e adaptaram, como puderam, as infra-estruturas ao seu quotidiano. E nestas comunidades ainda se encontram alguns contratados da era colonial, maioritariamente vindos de Cabo Verde, muitos deles com idades muito avançadas e que no fim da vida não têm reconhecimento pelo seu trabalho tanto antes da independência como depois da transformação de São Tomé e Príncipe num Estado independente.
Domingas Garcia, tem 50 anos e nasceu na roça de Água Izé, filha de contratados cabo-verdianos. Hoje é professora na escola de Água Izé e mobiliza-se juntamente com outras pessoas da comunidade para trazer mais condições para a comunidade e para que se reconheçam os direitos destes contratados que ajudaram a erguer São Tomé e Príncipe.
"Desde a indepedência, o que mais se desenvolveu aqui na comunidade de Água Izé foi a intelectualidade. Muitos descendentes de contratados estudaram, formaram-se. Hoje as pessoas ocupam um determinado cargo na sociedade, não só homens, como mulheres também. Temos aqui enfermeiros. Temos professores, temos técnicos das Finança, temos pessoas em várias instituições. Isso demonstra um crescimento bom, mas em termos de pouco desenvolvimento, é a nível de infraestruturas que se degradou muito. Não houve melhorias. Outra coisa também negativa, são os cabo verdianos que vieram e ficaram aqui atirados à sua sorte. Muitos não tiveram benefícios com distribuição de terras e recebem uma reforma que não dá para o seu dia a dia aos céus, os seus sustentos. E não só. Infelizmente temos ainda alguns que trabalharam e não beneficiaram de reforma", explicou a professora.
Eduarda Semedo tem 91 anos e veio muito jovem para São Tomé e Príncipe a partir da ilha de São Vicente, em Cabo Verde, para trabalhar. Após um período na Roça Augusta, Eduarda ainda voltou para Cabo Verde, mas a seca trouxe-a novamente para São Tomé, com um novo contrato para Água Izé, onde vive há várias décadas.
Também José de Pina, de 94 anos, está desde os anos 50 em São Tomé e Príncipe. Veio da ilha do Fogo, em Cabo Verde, e trabalhou quase 40 anos nas roças, metade para Portugal e a outra metade já após a independência de São Tomé e Príncipe. Lembra que ainda na era colonial, havia mais de 12 mil cabo-verdianos só em Água Izé.
"Só aqui, nesse lugar, aqui devia ter cerca de 12.000 cabo-verdianos. Isso acabou, desses restam quatro ou cinco. Eu sou o mais velho que está aqui e eu estou a ver que vou morrer sem nada. Isso é um perigo que está aqui, porque nós saímos para vir ajudar São Tomé a trabalhar nos princípios do contrato. 30 dias era 50 escudos que é salário dos homens, a mulher era 40. Todos esses 16 anos que trabalhei com branco, não houve nenhum momento bom. Portanto, vivemos na miséria todo o tempo de miséria. Deu 25 de Abril, o branco deixou-nos aqui. Fiquei com São Tomé mais de 19 anos, para além dos 16 mais 19 anos com que portanto eu trabalhei, 16 com Portugal, 19 com São Tomé. Agora estou há 31 anos com segurança social a ganhar quinhentinhos dobras", indica José de Pina, conhecido como Zézé.
Mesmo com os contratos portugueses nas mãos e muitos com décadas de trabalho no pós-independência, muitos destes contratados nunca viram o seu trabalho reconhecido por São Tomé e Príncipe, vivendo de pensões de sobrevivência que faz com que estes idosos vivam hoje em condições muito precárias.
"Por exemplo, a minha mãe é a prova disso. A minha mãe trabalhou e quando fomos lá tratar da reforma, dizem que não viram o nome, que praticamente perdeu reforma. Então, de três em três meses, às vezes davam-lhe 400 dobras. São os filhos graças aos estudos, né? E hoje temos um emprego e somos nós é que temos que assegurar a parte da mãe como muitas outras pessoas também. Graças à comunidade, mesmo os filhos e a comunidade, porque temos aqui uma cozinha social que neste momento carece muito da ajuda, porque tem funcionado graças a apoio das pessoas de boa vontade", indicou Domingas Garcia, que explica que falta reconhecimento por parte das autoridades são-tomenses em relação aos passado destes contratados.
Para além da falta de reconhecimento administrativo, persistiu também durante vários anos a discriminação destes contratados que ficaram em São Tomé e Príncipe. Estima-se que cerca de 25 mil cabo-verdianos tenham abandonado São Tomé no pós-independência, mas os que escolheram ficar por razões familiares ou por amor à nova pátria, tiveram de enfrentar muitos desafios.
Uma discriminação que magoa ainda mais quando foram os braços de homens e mulheres como José de Pina e outros milhares de cabo-verdianos, moçambicanos e angolanos que plantaram os pés de cacau que ainda hoje continuam a contribuir para a riqueza do país.
"Nós é que plantámos todo o cacau que está no mato, toda a árvore de fruto que está no mato. Quem é que nos dá alimentação, quem nos compra comida? Isso é insultar a pessoa, escravizar a pessoa. Saiu o escravo branco, entrou negro. Nós estamos na mesma. Não há nenhuma hipótese para melhorar a vida", disse José de Pina.
Desde meados dos anos 2010 que Cabo Verde reconheceu o trabalho forçado destes contratados em São Tomé e paga-lhes uma pensão trimestral que em 2019 foi aumentada para 1000 dobras, cerca de 40 euros. Até hoje, só Cabo Verde reconheceu o trabalho destes homens e mulheres antes da independência. Portugal ainda não deu qualquer passo para cumprir os contratos que ficaram por honrar.
"No meu ponto de vista, eu gostaria que Portugal tivesse um posicionamento positivo em relação a isso. Até porque essas pessoas trabalharam mais para os portugueses. Porque vieram jovens para São Tomé. Mas contrato com os portugueses e os portugueses deviam também ter uma posição aqui em termos de ajudar aquelas pessoas mais idosas que trabalharam naquele tempo. Que nem receberam dinheiro de contrato, trabalharam e não foram beneficiados com dinheiro do contrato", concluiu Domingas Garcia.
rfi.fr/pt/

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