terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Viúva de Amílcar Cabral relata a morte de dirigente do PAIGC há 50 anos


Publicado a: 20/01/2023 - 12:10


Amílcar Cabral foi assassinado em Conacri a 20 de Janeiro de 1973, baleado por dois membros do seu partido, o PAIGC, um comando que tinha também detido Aristides Pereira, o seu braço direito. Este acabaria por ser solto pela intervenção das autoridades de Sékou Touré. Meio século depois a morte do fundador do movimento independentista continua envolta em mistério. Ana Maria Cabral é a viúva do pai das independências da Guiné e Cabo Verde, ela relata-nos o ocorrido.
"Embora seja uma coisa dolorosa, não gosto de falar sobre isso, mas eu estava presente.

Ele já tinha recebido várias informações de vários serviços de espionagem de alguns dos nossos amigos na altura, eu é que não sabia de nada. Mas vi que ele estava muito preocupado nesse dia."

Poderia ser com as divisões no seio do PAIGC, entre as várias alas?

"Não, não havia divisão nenhuma e isso foi tudo criado pelos colonialistas.

Estava já tudo preparado para proclamarmos o Estado, como foi feito depois da morte dele. Mas estava tudo preparado, as assembleias, etc."

Lembra-se do que é que Amílcar Cabral fez ao longo desse dia?

"Havia uma recepção, se a memória não me falha, parece-me que era na embaixada da Polónia e fomos lá.

Ele não era muito de recepções, mas excepcionalmente ele disse: “A Polónia, quase que não recebemos ajuda nenhuma da Polónia e vamos lá para lembrar-lhes que nós também precisamos da solidariedade deles” e, portanto, fomos.

Vi que ele nunca mais queria sair, dizia que tinha o pressentimento de que era o último dia da vida dele e, então, falava, falava... falava com todos embaixadores, com todos os diplomatas... fiquei até admirada porque é que ele não queria sair.

Só mais tarde é que me apercebi, porque quando chegamos a casa já estava toda cercada pelos traidores."

É verdade que a senhora tinha pensado, de facto, por segurança, em levar uma pistola quando foi essa recepção à embaixada?

"É verdade, é verdade."

Amílcar Cabral não permitiu que levassem essa pistola?

"Não, não, não permitiu. Eu apercebi-me que algo se passava, não sabia o quê porque não tinha informações, mas ele não deixou e nem quis guarda nenhum. Nós fomos só os dois sozinhos, sem guarda, sem nada, sem pistola, sem nenhuma segurança.

Quando regressamos a casa, vivíamos ali no secretariado - uma parte da casa era residência, outra parte era secretariado do PAIGC, na altura - a casa estava toda cercada e, logo, quando saímos do carro eles vieram tentar amarrar Amílcar Cabral.

Depois soubemos que tinham chegado a acordo com o Spínola e o acordo era entregar os principais dirigentes do PAIGC da altura, para que Spínola discutisse com eles uma espécie de autodeterminação da Guiné-Bissau, sob a bandeira de Portugal colonialista."

O que é que viram?

"Descemos do carro, eles tentaram amarrar [Amílcar] Cabral.

O Cabral disse "não, não me amarrem. Nós estamos a lutar para acabar com essas faltas de respeito de amarrar as pessoas. Se há problemas, vamos sentar-nos e assim, no secretariado, vamos discutir os problemas que há".

Então, ele disse: “Eu prefiro morrer”. Nunca mais me esqueci disso: “Eu prefiro morrer a ser amarrado”. Então o Inocêncio Cani disparou logo à queima-roupa sobre o baixo-ventre.

[Amílcar Cabral] dobrou-se cheio de dores e eles pensavam que já o tinham morto e caiu, portanto caiu no chão."

Amílcar Cabral recebeu um primeiro disparo do revólver de Inocêncio Cani e depois, efectivamente, uma série de disparos de kalashnikov, não é?

"É verdade sim. O Inocêncio Cani conseguiu dominar Aristides Pereira, o conselheiro mais próximo de Cabral, na altura.

O Cabral continuava deitado no chão, com camisa toda cheia de sangue, e ele disse: “Ainda estás a falar?” e diz a um qualquer que era para liquidá-lo de vez. E foi assim."

Faleceu logo na hora?

"Não. Ainda ficou a falar. Ainda ficou a chamar por mim…. Foi uma coisa horrorosa."

Todos eles estavam com o rosto descoberto?

"Sim, com o rosto descoberto."

Eram, de facto, todos eles militantes activos do PAIGC em Conacri?

"Sim, gente que tinha tido problemas com a direcção do partido, problemas de disciplina. Para eles a luta já estava a durar há muito tempo, se calhar.

Foram facilmente mobilizados, para esse grande esquema, esse grande complot que foi urdido por Portugal colonialista."

A senhora fala de Spínola, portanto não tem sombra de dúvida que por detrás do assassínio de Cabral estava Portugal?

"Sim, sim. Estava Portugal e estava o Spínola, de certeza absoluta."

A tese de que haveria descontentamento no seio do PAIGC não a convence?

"Não, não. Não me convence. Isto foi mesmo um golpe bem preparado e muito bem estudado.

O PAIGC ultimamente estava a receber inúmeros fugitivos que vinham da Guiné-Bissau, da Guiné colonial, gente já preparada para vir fazer o golpe.

O Spínola preparou-os aqui em Cabo Verde, no campo do Tarrafal, e mandou para lá como desertores. Tudo falácias."

O que é que aconteceu quando o comando matou Amílcar Cabral?

“Ele continuou a falar deitado no chão, sangue na barriga, no abdómen…. e continuou a falar: “Mas o que é isto? Os colonialistas ainda estão na nossa terra, a nossa terra ainda não é independente?”, coisas deste tipo.

Ele era um grande mobilizador!

Eu comecei a gritar, a chamar os vizinhos que eram guineenses de Conacri e moravam em frente, mas apanharam-me, amarraram-me e levaram-me para um sítio a que chamávamos de montanha. Uma casa afastada onde estavam prisioneiros portugueses.

Eles libertaram os prisioneiros portugueses - eram soldados, sobretudo - e nós ficamos lá, mais tarde apareceu a secretária Rosete Vieira, toda ferida e outros… Vasco Cabral, José Araújo, já não me recordo mais!

Mais tarde fomos libertados pelo exército de Sékou Touré, que enviou o ministro da guerra ou das forças armadas - já não me recordo - nos libertar e fomos levados para o Palácio de Sékou Touré.

Lá é que eu soube que Cabral já não [estava vivo]. Tinha levado tantas balas… a minha preocupação era essa: saber se as tropas de Sékou Touré teriam conseguido salvar [Amílcar] Cabral… mas depois o ministro da Saúde veio dizer-me que não, foram oito ou nove balas, que tinha sido impossível [salvá-lo]."

Amílcar Cabral tinha sido avisado por vários interlocutores por riscos de assassínio? Porque é que ele não se protegeu mais? Porque é que estavam sós, os dois, nessa noite?

"Ele era assim, achava que os amigos estavam a preocupar-se demasiado e de qualquer maneira a nossa luta estava de tal maneira avançada que mesmo que ele morresse, tinha a certeza absoluta de que a luta iria continuar até à vitória final, como realmente aconteceu."

Ele evocava consigo a possibilidade de vir a ser assassinado?

"Evocava muito ao de leve, mas evocava. Dizia: continua e educa bem os nossos filhos… com princípios…"

Mas acha que houve responsáveis da Guiné Conacri ou mesmo Sékou Touré, que pudessem ter tido um papel neste assassíno?

"Não, do Sékou Touré não acredito, mas é possível que tenha havido de alguns responsáveis da Guiné Conacri. Do próprio Sékou Touré não acredito.

Depois de eles terem morto Amílcar Cabral e terem prendido Aristides Pereira e outros dirigentes, foram para o Palácio [de Sékou Touré]. Foram esses que facilitaram a entrada desse grupo de assassinos no gabinete de Sékou Touré."

Quanto tempo é que ficou detida?

"Só essa noite, até a notícia chegar até Sékou Touré. O país ficou em prevenção. Na altura, felizmente, havia lá umas ‘vedetas’ (embarcações) da antiga União Soviética nas quais eles levaram o Aristides [Pereira] e outros… para Bissau, caso Spínola estivesse à espera deles.

A mim levaram-me e fiquei presa no quarto onde estava preso o Momo Touré - que já morreu também, foi condenado, tinha-se descoberto que teria pertencido quando vivia em Bissau o PAIGC da clandestinidade, mas teria aderido, nao sei por que razão, a esse golpe. Ele e os outros tinham sempre tido simpatia por essas propostas de Spínola, que era a autodeterminação da Guiné, sem os cabo-verdianos.

Portanto, acho que eles sentiram com certa simpatia por esse projecto e, portanto, a ideia era amarrarem Amílcar Cabral, levarem-no para o porto, meteram-no numa daquelas ‘vedetas’ e levá-los para Bissau, ainda, colónia."

Os seus filhos não estavam consigo na altura?

"Os filhos não estavam comigo na altura. O meu filho mais velho estava na Escola Piloto que era uma escola lá. A minha mãe, por acaso, na altura estava em Conacri e tinha a minha filha menor."

Presenciaram o que aconteceu ao pai?

"Não, eles não presenciaram. Era noite escura, portanto eles não presenciaram nada."

Cabral sabia que havia um plano de infiltração do PAIGC por serviços portugueses. Ele não desconfiou mais de alguns elementos, não tomou providências?

"É possível que tenha desconfiado, mas ele tinha já tanta confiança na vitória do PAIGC, que dizia que mesmo que ele falecesse, a luta estava já tão avançada que iria continuar, como realmente aconteceu."

Para que os ouvintes percebam bem as circunstâncias deste assassínio, na altura Conacri era a capital do PAIGC em luta. Qual é a lembrança que mantém da dimensão desta presença do PAIGC em Conacri?

"A lembrança que eu mantenho é que eles, a Guiné Conacri também ganhou. Já era um país independente, tinha sido uma colónia da França. Eles aprenderam muito connosco também, porque eles fizeram sobretudo luta política em relação aos franceses.

Foi uma das poucas ex-colónias francesas que respondeu ‘não’ ao referendo de De Gaulle e, portanto, foi muito interessante, eles aprenderam connosco.

Já voltei a Conacri depois, umas duas ou três vezes, e fui muito bem recebida. Eu acho que eles aprenderam connosco também."

Havia ali lugares emblemáticos onde as pessoas do PAIGC podiam conviver com os moradores do bairro?

"Sim, sim. Nós tínhamos as melhores relações com os nossos vizinhos. Havia um bairro que se chamava Bonfi onde tínhamos a nossa escola, depois ao lado havia o bairro dos combatentes… mantivemos sempre umas óptimas relações com os nossos vizinhos guineenses."

E também com o próprio poder da Guiné Conacri, com o regime de Sekou Touré?

"Sim, exactamente. Aquando da invasão de 1970, o PAIGC ajudou-os quando as tropas colonialistas portuguesas entraram por aí fora.

O PAIGC foi um dos defensores da rádio, não permitindo que eles tomassem a rádio, que os invasores tomassem a rádio de Conacri e isso foi à custa dos nossos combatentes."

Com a morte de Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973, o PAIGC decide mesmo avançar para a declaração unilateral da independência em Madina do Boé.

"Sim, sim, sim."

Portanto, logo no mês de Setembro, a questão da independência vai-se intensificar e o PAIGC já não espera mais?

"Sim, já estava tudo preparado. Já tínhamos feito as eleições. Já tínhamos escolhido os conselheiros regionais, etc… Áreas libertadas… Havia todo um processo que já estava em andamento.

Portanto, foi seguir esse processo e em Setembro proclamou-se unilateralmente a independência da Guiné-Bissau, em Madina do Boé."

A senhora esteve presente ao lado do Nino Vieira que proclamou precisamente a independência?

"A independência sim. Eu fui escolhida como deputada de Bafatá. Amílcar Cabral, embora filho de cabo-verdianos, tinha nascido e vivido os primeiros anos em Bafatá.

Portanto eu fui eleita também deputada por Bafatá. Estive em Madina do Boé."

Foi o fiasco da operação Mar Verde que acabou por levar então a que o poder colonial português da altura equacionasse a eliminação física do líder do PAIGC?

"Ah, eu acho que sim!

Felizmente, a maior parte dos capitães Abril lutou na Guiné. Acabaram por compreender que era uma luta injusta, que não fazia sentido.

Otelo Saraiva de Carvalho esteve na Guiné e outros cujo nome agora não me recordo, reconheceram que não fazia sentido numa terra tão pequenina e tão longe de Portugal, ser considerada território português. Foram eles que organizaram o 25 de Abril [de 1974].

Portanto, o nosso processo seguiu, tudo tinha sido idealizado por Amílcar Cabral e os seus companheiros, de maneira que foi só continuar o processo e chegou-se então à proclamação da independência numa assembleia em Madina do Boé.

Proclamou-se o Estado da Guiné-Bissau."

Logo após, o 25 de Abril em Portugal no ano seguinte, 1974, Mário Soares, pelo lado português, avança com negociações em Argel, nomeadamente, em Londres e nesse mesmo ano - 1974 - um ano depois da proclamação [unilateral do estado da Guiné-Bissau], Portugal reconhece a independência de Bissau.

É o primeiro país africano a ser reconhecido pela antiga potência colonial!

"Exactamente. A Guiné foi a primeira que Portugal acabou por reconhecer, mas isso devido ao 25 de Abril, à revolução que os capitães de Abril fizeram e que criaram essas condições para termos um bom entendimento como Portugal.

Sentaram-se à mesa das negociações, Mário Soares, Aristides Pereira… Pedro Pires, José Araújo - que também já morreu - as conversações começaram em Londres e depois em Argel até ao reconhecimento de Portugal, como potência colonizadora, [da independência da Guiné-Bissau]."

Tem o sentimento de que se faz o suficiente em torno da memória dele? O que é que acha que seria importante que se fizesse - museu, monumentos, arquivos - para manter viva a memória de Amílcar Cabral?

"Temos a Fundação Amílcar Cabral, criada por nós, os nossos companheiros de Amílcar Cabral, que agora está a ser dirigida pelo antigo combatente Pedro Pires. E um dos problemas é precisamente preservar a História, a nossa História."

Mas essa fundação está sediada em Cabo Verde, na cidade da Praia. Acha que na Guiné-Bissau seria importante que houvesse também um organismo idêntico?

"Sim, eu acho que sim, porque foi lá que se realizou a luta armada. Aqui em Campo Verde foi só luta política, a luta clandestina, digamos assim."

Porventura a memória é mantida mais em Cabo Verde do que propriamente na Guiné-Bissau?

"Sim, em certos aspectos.

O corpo está lá, no mausoléu [na Fortaleza de São José de Amura, no centro de Bissau], portanto as pessoas em certas datas como 20 de Janeiro ou 24 de Setembro as pessoas - crianças, escolas, adultos - vão todos ao mausoléu render homenagem."

Cinquenta anos após a morte de Cabral, qual é que acha que é a lição que Amílcar Cabral deixa às jovens gerações?

"A lição que ele deixa é que temos de preservar a nossa com a nossa independência, dignidade, que as pessoas devem procurar tudo para se tornarem dignas e cultas e defenderem-se. Defender a nossa terra, não permitir que ninguém nos venha meter outras ideias."

Julius Nyerere, Kwame Nkrumah e Amílcar Cabral são um dos maiores nomes do pan-africanismo. O seu marido acreditava muito no pan-africanismo.

Cinquenta anos depois, qual é a visão que a senhora tem sobre o legado que ele deixou e sobre se vale a pena ainda lutar em prol do pan-africanismo?

“Sim. O mundo já deu tanta volta, está tão estranho e já não tem nada a ver com o mundo daquela altura. Mas acho que vale sempre a pena lutar pelo pan-africanismo, porque há muitos tabus ainda a vencer.

Foram muitos anos de colonização em África, há muitos preconceitos ainda sobre África, de maneira que é preciso lutar contra tudo isso, contra todos esses preconceitos, essas alienações, digamos assim, das quais os africanos ainda não consigam libertar-se.

Conosaba/rfi.fr/pt

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