[ENTREVISTA_outubro 2022] O coordenador técnico nacional do Projeto “Ntene Terra”, Carlos Amarante, disse que a implementação do imposto fundiário na Guiné-Bissau pode desencorajar o açambarcamento descontrolado de terras no país. Segundo Carlos Amarante, essa realidade deve-se à falta de uma política de seguimento das regras sobre a lei da terra, o que tem motivado muitas pessoas a “açambarcar” a terra, sem respeitar as medidas ou o tempo que a lei prevê para a sua valorização e rentabilização.
Em entrevista ao jornal O Democrata para falar dos avanços conseguidos até ao momento e dos constrangimentos encontrados na implementação do projeto, Carlos Amarante alertou que as constantes mudanças dos governadores e administradores setoriais pode levar a um fracasso na dinâmica, na execução e na implementação do projeto “Ntene Terra”.
PESSOAS FARDADAS APARECIAM ARMADAS COM DECISÕES SEM BASE LEGAL
Para consolidar os avanços conseguidos até aqui, o coordenador técnico nacional do projeto disse que será necessário conceber um novo projeto com fundos próprios e agilizar o processo de pagamento do imposto fundiário na Guiné-Bissau.
Segundo Carlos Amarante, os grupos beneficiários deste projeto são: pequenos produtores, grupos de agricultores, utilizadores florestais, pescadores artesanais e criadores de gado.
Revelou que o projeto tem quatro resultados esperados, nomeadamente a criação de comissões fundiárias nacionais, que integram governadores, administradores e secretários administrativos, ONG´S, sociedade civil, todos os outros serviços técnicos de cada região, as associações das organizações femininas e criadores de gado.
Outros resultados esperados são a criação do Observatório Fundiário Nacional Rural, cujos estatutos foram recentemente validados e que funcionará como termômetro, usando todos os meios auditivos e visuais para detetar, monitorar e difundir ou informar às comissões fundiárias sobre os sinais de conflitos, ou a iminência de conflitos fundiários em todo o território nacional, a delimitação das fronteiras e o pagamento do imposto fundiário.
O observatório é uma estrutura de alerta-precoce para a comissão fundiária, após identificação de focos de conflitos que surjam em diferentes pontos do país.
Carlos Amarante disse que, devido à falta de uma política de seguimento das regras sobre a lei da terra, muitas pessoas “açambarcaram desenfreadamente” a terra, sem respeitar as medidas ou o tempo que a lei prevê para a sua valorização e rentabilização.
“O pagamento do imposto fundiário pode desencorajar as pessoas de açambarcar terras. Porque normalmente a lei prevê a isenção de zero é até cinco hectares. Mais do que isso, ou seja, superior a 5 hectares a pessoa é obrigada a pagar 50.000 francos CFA´s por hectare, até 20 hectare. Superior a 20 hectares até 50 hectares, 75.000 francos CFA´s/hectare. Superior a 50 hectares até 100 hectares, 100.ooo francos CFA`s/hectare. Superior a 100 hectares até 500 hectares, 150.000 francos CFA´s/hectare. Superior a 500 hectares, 250.000 francos CFA´s”, indicou e frisou que, com a criação das comissões fundiárias, todos os protagonistas ou entidades que se envolvem na resolução de conflitos estarão, todos, em pé de igualdade, com o mesmo nível de informação sobre as técnicas e os mecanismos de mediação de problemas.
“Todos os protagonistas da resolução dos problemas derivados de conflitos de posse da terra estarão, com a criação dessas comissões fundiárias, em pé de igualdade. Os problemas passarão a ser resolvidos por todas as sensibilidades, não apenas por uma pessoa, porque esse método não promove o equilíbrio”, sublinhou, revelando que o projeto conseguiu intervir, através das comissões fundiárias locais, no conflito entre as aldeias de Arame e Elia (norte do país), no setor de Tite (sul) e na tabanca de Djabicunda (zona leste).
“Embora sem meios, temos tido algumas intervenções pontuais e resolvidos alguns problemas candentes. Neste momento, temos a comissão fundiária nacional, oito comissões fundiárias regionais, 38 setoriais”, indicou e disse que os mecanismos que têm sido usados não foram eficazes e que tem havido denúncias de parcialidade na resolução dos problemas fundiários nas comunidades.
“Antes, as pessoas apareciam fardadas e armadas com decisões que tomadas que não observavam bases legais. Agora o formato de resolução dos problemas é outro e envolve diferentes sensibilidades que têm alguma aproximação intrínseca e respeito mútuo com a população. Facilmente conseguem entender-se”, observou.
Admitiu que a participação das autoridades nacionais no processo tem sido boa, mas advertiu que um dos estrangulamentos que poderá levar a dinâmica do projeto a um fracasso são as constantes mudanças de governadores e administradores.
“Repara que são elementos das comissões fundiárias e cada vez que há uma mudança temos que voltar ao terreno para formá-los e colocá-los a par dos objetivos do projeto. Mas se a cada seis meses vamos ter novos governadores e administradores, será muito difícil consolidar os avanços conseguidos até ao momento”, lamentou.
Carlos Amarante revelou que o Projeto “Ntene Terra” conseguiu, em seis das oito regiões, delimitar 70 tabancas (Bafatá, Gabú, Oio, Cacheu, Biombo e Bolama/Bijagós), embora não tenham colocado ponto final nos conflitos, essas delimitações conseguiram resolver alguns problemas derivados de conflitos de posse da terra nalgumas localidades do país.
“No setor de Bissorã, região de Oio, conseguimos sanar um caso de conflito pela posse de terra na localidade de Maqué e não me lembro o nome da outra tabanca. Há 12 anos que o caso estava na justiça sem conhecer uma única sentença”, afirmou.
De acordo com coordenador técnico nacional do “Ntene Terra”, as partes foram conciliadas mediante uma campanha de sensibilização junto das duas tabancas, envolvendo o presidente da comissão fundiária nacional, administrador do setor, elementos da direção do Ministério da Administração Territorial e Poder Local e todos os chefes e régulos das tabancas em conflito e arredores.
“É claro que no início não foi fácil, mas finalmente conseguimos dar passos significativos em 2022, reconciliar as partes desavindas há 12 anos. As pessoas não frequentavam as tabancas umas das outras e hoje são essas populações que solicitam a nossa intervenção”, enfatizou e disse que neste momento, as comissões fundiárias regionais que estão altamente em ativo e funcionais são as regiões da Quinara (com sede no setor de Tite), Cacheu e Bafatá.
Questionado se o projeto já tem em mãos um mapa das zonas com conflitos de posse da terra, Carlos Amarante frisou que o documento que delimita o regulado na Guiné-Bissau data de 1956 e que neste momento está em revisão para adequá-lo à realidade atual.
Para além da cartografia do regulado em revisão, Amarante revelou que o consultor encarregado de elaborar esse documento está também a tentar identificar as principais causas dos conflitos fundiários e como os problemas fundiários são resolvidos e ultrapassados a nível comunitário.
Um dos desafios do projeto para os próximos tempos é a aposta na formação de técnicos nacionais em técnicos de mediação, de resolução de conflitos e de aconselhamento, razão pela qual o projeto perspetiva convidar técnicos moçambicanos para formar técnicos guineenses nesses domínios.
“Moçambique tem muita experiência nessa matéria. Provavelmente vamos deslocar para a Guiné-Bissau alguns técnicos deste país para formar os nossos. Em Moçambique, pro exemplo, os jovens quadros formados em direito foram aproveitados e preparados em técnicas de mediação e foi um sucesso. A Ideia central do projeto é que, quando há um problema, que seja tratado nas comunidades sem a intervenção dos tribunais. Os tribunais têm procedimentos lentos, requerem muito dinheiro, são morosos e nem todos os cidadãos têm acesso aos tribunais, aliás, não os temos em todas partes do país”, salientou.
Carlos Amarante apontou a Secção de Suzana, setor de São Domingos, a região de Biombo e a região de Cacheu (secção de Pelundo) como zonas de grandes riscos, de tensão premente e vulneráveis a conflitos de posse de terra.
O projeto Ntene Terra é um projeto para uma governação responsável, de apoio à implementação da lei de terra da Terra na Guiné-Bissau, financiado pela União Europeia num montante de três milhões de euros e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO) é a agência selecionada para implementá-lo.
O projeto intervem em oito regiões, nomeadamente Bafatá, Biombo, Bolama/Bijagós, Cacheu, Gabú, Oio, Quinara e Tombali e tem uma duração de 57 meses, visa contribuir para a melhoria da governação responsável dos regimes fundiários no país, nomeadamente públicos, privados, comunitários, autóctones, costumeiros e informais.
O projeto “Ntene Terra” vai apoiar a implementação da lei da terra de 1998 e o seu regulamento geral (2008-2015), através da criação e funcionamento de instituições fundiárias, da delimitação das terras comunitárias e preparar as condições para aplicação do imposto fundiário, bem como reforçar as capacidades das instituições de administração fundiária, dos líderes tradicionais e das comunidades em matéria fundiária e dos direitos fundiários, com especial atenção às questões de género.
“Temos sim problemas fundiários em Bissau também. Mas decidiu-se começar esse exercício nas regiões, porque haverá eventualmente outro financiamento adicional do Banco Mundial que será aplicado para o mesmo exercício”, disse.
Por: Filomeno Sambú
Foto: FS
Conosaba/odemocratagb
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