A instabilidade política na Guiné-Bissau, que celebra hoje 49 anos de independência e onde nenhum Governo terminou o mandato, está ligada a uma cultura de masculinidade exacerbada, com origens na luta pela independência, defende a historiadora Joacine Katar Moreira.
"Entre os mil motivos [da instabilidade] que os académicos, os consultores, os organismos internacionais, têm sucessivamente identificado, como o tráfico de droga, o tráfico de armas, conflitos ou tensões étnicas, há um elemento que une tudo isto, que é a cultura de masculinidade", disse a investigadora luso-guineense.
Em entrevista à Lusa a propósito do seu livro "Matchundadi: Género, Performance e Violência Política na Guiné-Bissau", cuja segunda edição foi recentemente lançada, a historiadora, ativista e ex-deputada à Assembleia da República Portuguesa defendeu que a "enorme instabilidade política e governativa" guineense está relacionada com a cultura de `matchundadi`.
No entanto, esse espírito de guerrilha não terminou com o alcançar da independência e foi transposto para a edificação do Estado independente, mantendo-se até hoje, o que constitui o foco de conflitos, instabilidade e violência, em que impera a lei do mais forte e do mais violento.
Nesse contexto, o adversário é olhado como inimigo, como um obstáculo a abater, porque enquanto ele existir o poder do líder está ameaçado.
E, segundo o conceito de `matchundadi`, a única maneira de um homem recuperar a sua masculinidade é afetar a masculinidade do indivíduo que afetou a sua, o que normalmente se faz "através da eliminação física do outro".
Mas, para Katar Moreira, a origem desta cultura "é a ilusão do sistema de justiça".
"Só existe cultura de `matchundadi` porque não existe sistema de justiça, porque existe um ambiente de impunidade em que, entre dezenas e dezenas de assassínios de figuras políticas nunca houve um julgamento na Guiné-Bissau. Foi assassinado um Presidente da República, ao mesmo tempo que o chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, foram assassinados ministros, desapareceram governantes e, em 48 anos, nunca houve acusação, muito menos julgamento".
A erosão do sistema de justiça contribui para que, quem tem mais energia, mais capacidade de intimidação e mais força, mais facilmente tem acesso ao poder político.
Enquanto antes no início da construção do Estado independente esse papel era assumido por quem tinha armas, hoje há outra maneira de afirmação das masculinidades: o acesso ao dinheiro.
"Quem tem dinheiro tem capacidade de redistribuição, que é um elemento constituinte da masculinidade", disse a investigadora, sublinhando que esta é uma caraterística, não só da Guiné-Bissau, mas de África, da Europa, do Ocidente...
Para a historiadora luso-guineense, se desaparecesse a `matchundadi`, desapareceria também "o sumo que tem regado a política guineense" e a única forma de quebrar o ciclo de instabilidade no país é reforçando o sistema de justiça, sem o qual não existe "Estado de direito", e investir na Educação, desde a básica à universitária.
O conceito, conhecido de "todos os guineenses", é definido pela autora como "uma masculinidade exacerbada, hiperbolizada, com o objetivo de capturar o poder e manter o poder".
"Captura-se antes, mas imediatamente é necessário encontrar mecanismos de manutenção do poder, porque o mais difícil na política guineense não é uma pessoa aceder ao poder, é manter-se lá", disse, lembrando que nenhum executivo, em 48 anos de independência, conseguiu concluir os quatro anos de mandato.
No livro, que resulta da sua tese de doutoramento, Katar Moreira recupera a história dessa `matchundadi` e explica-a com a época da luta pela independência, quando foi preciso unir mais de 20 etnias que coabitavam "num espaço pouco maior do que o Alentejo".
"Havia uma grande diversidade étnica que impossibilitava dizer-se `somos um único Estado, uma única nação`. Mas havia um elemento unificador: a masculinidade".
Perante os ataques que o sistema colonial fazia às masculinidades dos homens africanos, os independentistas diziam: `Vai admitir que o português ocupe a sua terra, leve as suas filhas, pegue a sua mulher?`, exemplificou.
Amílcar Cabral e o seu Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) conseguiram assim "algo único: a união, não apenas das várias etnias, mas das várias classes" sociais do país.
Esta exacerbação das masculinidades étnicas guineenses "originou guerrilheiros implacáveis, violentos" que levou a que a Guiné fosse a única colónia a vencer a guerra colonial e a declarar unilateralmente a independência.
Conosaba/Lusa
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