Amílcar Cabral viveu parte da infância numa casa em Santa Catarina, na ilha cabo-verdiana de Santiago, mas os donos estão a exagerar no preço da moradia, que está a degradar-se, adiando um museu e um centro de investigação.
“O processo é um pouco difícil”. É assim que o vereador da Cultura da câmara municipal de Santa Catarina de Santiago, Péricles Brito, começou por classificar à Lusa a situação da casa em Achada Falcão onde Amílcar Cabral viveu entre 1932 e 1933/34 um ano da sua infância, à distância de cerca de 50 metros da estrada principal que dá acesso ao Tarrafal, na mesma ilha.
O vereador disse que a autarquia tem um projeto para transformar o local num museu da resistência do pai das nacionalidades cabo-verdiana e guineense, com parceria inclusive de instituições portuguesas, mas o que está a emperrar o processo é a inflexibilidade dos herdeiros, que estão a pedir valores elevados pelo imóvel.
“O que está a atrasar mais é a compra do edifício”, explicou o autarca, pedindo aos donos para se entenderem entre si e facilitar um acordo para a venda da residência, construída ainda em tempo colonial, mas que os pais venderam.
Péricles Brito disse que a autarquia vai consciencializar os herdeiros para importância de requalificar o edifício, que retrata a memória de Cabral, e que poderá levar muitos benefícios para o concelho, como o aumento de visitantes e turistas.
“A família tem de despertar essa consciência patriota para levar esse projeto para a frente”, insistiu, dando conta que a câmara já tentou construir uma nova casa para acolher a família, para depois colocar a atual na rota do turismo histórico e cultural do município.
A casa é a única no meio de um enorme campo agrícola em Achada Falcão, tendo à volta algumas árvores, que emprestam um pouco de cor verde à paisagem, que é predominantemente de cor castanha da terra seca e do milheiral, também seco, e boa parte caído no chão.
Depois da estrada asfaltada, para lá chegar — a pé ou de carro — percorre-se um trilho de terra batida e à medida que se vai aproximando o cenário fica mais desolador, com a casa numa degradação que avança a cada dia, com portas e janelas de madeira velhas e partidas, paredes com fissuras e telhado com buracos.
Na parte frontal, não há sinal de moradoras, e há uns ramos de árvores de espinhos nas escadas de acesso ao alpendre como que para afugentar qualquer visitante mais curioso ao espaço, onde ao longo dos tempos os investimentos foram poucos, apressando o desgaste, o que segundo o vereador vai exigir agora um esforço financeiro maior das autoridades para a recuperação.
Um púlpito já sem qualquer inscrição parece uma estátua à frente do edifício, que tem afixado em cada um dos lados da porta principal uma placa, sendo a mais visível com a seguinte inscrição: “Nesta casa viveu Amílcar Cabral parte da sua infância”.
Mas há outra, mais pequena e menos nítida, que recorda que foi transformada no Núcleo Museológico Casa Amílcar Cabral, inaugurado em 20 de janeiro de 2015 pelo então primeiro-ministro, José Maria Neves, atual Presidente da República de Cabo Verde.
Na altura, o ato contou com as presenças do então ministro da Cultura, Mário Lúcio Sousa, e do estão presidente da câmara municipal, Francisco Tavares, e o núcleo foi criado no âmbito do projeto Rede Nacional de Museus, mas atualmente é apenas recordação.
E para se saber que há moradores na casa é preciso contorná-la e ir pelas traseiras, por um portão lateral do alpendre, de onde se vê trabalhadores a construir moradias que, apurou a Lusa, deverão acolher os residentes e evitar que ficam mais tempo debaixo da “casa grande”.
Além do museu, o vereador disse que a câmara quer transformar a casa num centro de investigação dos marcos históricos do concelho, como a luta contra a escravatura, a luta dos rendeiros e as revoltas de Ribeirão Manuel, Achada Galego, Achada Falcão e Engenhos.
O presidente da Fundação Amílcar Cabral, Pedro Pires, também recordou à Lusa que a tentativa de compra da casa é um “processo antigo”, que ele mesmo discutiu com dois dos herdeiros enquanto foi primeiro-ministro de Cabo Verde (1975 a 1991), mas estes faleceram.
Mas em todas as tentativas de negociar, o antigo Presidente de Cabo Verde (2001 — 2011) recordou que os herdeiros pediram um “valor exorbitante” e o negócio caiu, tendo sido retomado mais tarde pela Câmara Municipal de Santa Catarina de Santiago, que enfrentou a mesma rigidez dos donos.
Sem precisar os valores sugeridos pelos herdeiros, Pedro Pires, que recentemente efetuou uma visita à presidente da câmara, Jassira Monteiro, fez questão de sublinhar que a Fundação que leva o nome do seu patrono não tem recursos para comprar qualquer prédio.
“Nós temos recursos financeiros limitados e temos outras prioridades, que é a consolidação da fundação e do seu museu”, explicou o dirigente, esperando ter ‘fumo branco’ por altura das comemorações do centenário do nascimento de Amílcar Cabral, em setembro de 2024.
Quando à designação do projeto que a autarquia tem para o espaço, Pedro Pires considerou que deve ser negociada, “ouvir uns e outros”, por entender que a residência não quer concorrer com o antigo campo de concentração do Tarrafal de Santiago, atual Museu da Resistência.
“Essa questão da designação é importante, mas devemos negociar, ver o que melhor interessa, ver aquilo que tem mais impacto, mais valor, e ver se será Museu Amílcar Cabral, se será museu da Resistência ou outro”, reforçou.
Filho de Juvenal Cabral e Iva Pinhel Évora, o líder histórico nasceu na Guiné-Bissau em 12 de setembro de 1924, partiu para Cabo Verde com oito anos, acompanhando a sua família, onde viveu parte da infância e adolescência, antes de ir estudar Agronomia em Portugal.
Posteriormente, foi fundador do então Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que deu lugar ao Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV), líder dos movimentos independentistas nos dois países, e foi assassinado em 20 de janeiro de 1973, em Conacri, aos 49 anos.
Conosaba/Lusa
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