No próximo dia 12 de setembro, comemoraremos o centenário de nascimento do pai e fundador de nacionalidades guineense e cabo-verdiana. Costumeiramente, essa comemoração, bem como a da nossa independência, 24 de setembro, são marcadas por eventos políticos, acadêmicos e culturais, eventos nos quais fala-se bastante da vida e dos feitos do nosso maior e inconteste herói nacional. São nesses eventos também que algumas figuras já afirmaram que Cabral foi homem além do seu tempo (Cabral i/foi homi além de si tempo, como aparece em crioulo).
Essa afirmação poderia ser entendida como um simples recurso argumentativa na tentativa de engrandecer o Cabral e seus feitos, uma hipérbole. Mas tenho impressão de que talvez não se trate disso, para algumas pessoas isso é um fato e elas tentam, dentro do seu limite, justificar a afirmativa.
Além de indefinições e inconsistências que essa frase carrega, ela é, antes de tudo, menos informativa do que parece. Afirmar que Cabral foi homem além do seu tempo não oferece muita coisa útil como se imagina e não me parece a forma mais
producente e talvez mais honesta também de resumir os feitos dele.
As indefinições dessa afirmação estão no seguinte: sempre que se fala que Cabral foi homem além de seu tempo, não se faz recorte de espaço, isto é, não se especifica se ele foi além do seu tempo tomando como referência a Guiné, a África ou o mundo inteiro, não se define qual é o critério para ser elevado a essa categoria e nem o que seria ser uma pessoa ser além do seu tempo.
Entretanto, o último é possível de ser deduzido, já que quando falam que ele foi além do seu tempo porque pensou coisas que no seu tempo não se pensava.
Portanto, entende-se que ser além do seu tempo é pensar ou fazer coisas que ninguém faz ou pensa no seu tempo. As inconsistências da afirmação estão no fato de que muitas coisas que se pensa que ele foi pioneiro, não foi o caso, se se considerarmos o contexto global.
Se considerarmos Cabral homem além do seu tempo tomando a Guiné-Bissau (GB) como referência, a afirmação será verdadeira, considerando que, de fato, ele falou e sugeriu coisas que talvez ninguém conseguisse pensar nesse contexto, no período de 1924 a 1973. No entanto, é preciso destacar que poucos guineenses tinham acesso e oportunidade que Cabral tinha, o que fez total e completa diferença em termos de preparo intelectual e acadêmico entre eles, isto é, Cabral era um “privilegiado” em relação a quase todos os guineenses desde seu nascimento. Por exemplo, de acordo com Peter Karibe Mendy, o pai de Cabral á era professor desde 1911 e a sua mãe era empresária independente, ou seja, podemos deduzir, com alto grau de segurança, de que os dois eram letrados, sabemos a diferença que ter pais letrados faz na vida dos filhos, isto sem mencionar o fato de ele ter tido condições de estudar desde criança e de depois
fazer a sua formação superior em Portugal, coisas que provavelmente nenhum outro guineense, da idade dele, tinha. Por essa razão, acho que a G-B não deve servir de parâmetro.
Se tomarmos como a referência toda a África, a afirmação se mostra falsa, pois Cabral não esteve além de nomes como: Léopold Sédar Senghor, embora pensem
diferente em relação a quase tudo, Ahmed Sékou Touré, Kwame Nkrumah , aquele que, aliás, o influenciou muito através do seu pan-africanismo, muito menos esteve além do Cheikh Anta Diop, um dos mais brilhantes cérebros que esse mundo já viu, não esteve à frente de tantos outros líderes e pensadores africanos do seu tempo ou os que o antecederam que já lutavam pelas mesmas coisas, também não estava na frente de muitos de seus colegas de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) que passaram pela Casa de Estudantes do Império (CEI), em Portugal. Aliás, vale destacar que a passagem por essa instituição transformou profundamente a vida dos que por ela passaram, presume-se que não foi diferente na vida de Cabral, visto que também por lá passou.
Acho que já ficou claro que Cabral não foi além do seu tempo nem quando tomamos como recorte espacial a África que dirá quando consideramos o contexto
global. Ele foi, seguramente, um brilhante homem de século XX, aprendeu como poucos e soube aproveitar de mais diversos conhecimentos disponíveis nesse período para sua causa (a independência da Guiné e Cabo Verde) como ninguém, mas não foi além do seu tempo.
A título de exemplo, vários conceitos como: democracia revolucionária, imperialismo, homem novo etc. que ele utilizou, são conceitos dos quais ele se apropriou (no sentido de estudar, como ele certa vez admitiu ter precisado estudar o Marx) do marxismo e do leninismo. Quanto à questão de gênero que ele também já discutia, é um assunto que já se discutia no mundo, na própria África, as mulheres, em outros países, já se organizavam politicamente para defender seus interesses e seus espaços.
É salutar lembrar que a Nísia Floresta publicou seu livro intitulado Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens, em 1832 e em 1949 a Simone de Beauvoir publicou alguns capítulos de seu próximo livro, O segundo sexo. Eu poderia citar uma quantidade volumosa de obras e de pessoas que já discutiam essa questão bem antes dele, mas acho que consegui mostrar o meu ponto.
A intenção desse artigo não é diminuir os feitos de Cabral, até porque não tenho
a condição intelectual, muito menos poder de influência suficientes para promover tal coisa, sem mencionar que uma tentativa desse tipo seria um atestado de estupidez da minha parte, visto que a grandeza de Cabral é incontestável para todos que são/estão minimamente informados sobre a sua vida e obra. O proposito aqui é humanizar a figura dele, trazer o Abel Dassi para mais perto de nós (simples humanos que aprendem um com o outro) e desse modo utilizá-lo como modelo que vai inspirar a todos os guineenses.
Geralmente, quando as pessoas falam de Cabral, ignoram (no sentido de deixar de lado) as informações que exponho aqui não são secretas, todos que estudam a vida de Cabral têm acesso à elas. Ele é apresentado como que quase um iluminado, aquele parece que foi um enviado, um profeta, alguém que teve uma epifania e do nada assumiu a missão de libertar um povo que não sabia o que queria. Isso não é verdade, Cabral foi um ser humano como nós, apenas teve a oportunidade que poucos tinham e soube aproveitá-la, foi um excelente estudante e insaciável investigador, assim ele conheceu muita coisa que já se debatia à sua época ou bem antes dele, aperfeiçoou outras e quando voltou para a Guiné encontrou um povo bravo e destemido que sempre lutou, à sua maneira (lutas fragmentadas), para se libertar do domínio colonial, ele agregou a essa luta a nacionalização da mesma. Ou seja, a grande contribuição de Cabral foi a nacionalização da luta, ele logrou o que ninguém tinha conseguido antes, e deste modo nos deixou o que talvez seja seu maior legado, a nossa independência nacional.
Cabe à nossa geração, ao invés de ficar disputando adjetivos e/ou frases de efeito
para descrever os feitos de Cabral, aprender com ele através de estudo sério de seu pensamento, sem ter isso como um valor em si, e assim descobrir a nossa missão e decidir se vamos cumpri-la ou traí-la como insistiu o Fanon. Cabral humanizado nos será mais útil, inspirará mais pessoas se for apresentado como modelo não como limite intelectual ou alguém que ninguém sabe como chegou onde chegou, ou que simplesmente nasceu com tudo, isso além de ser contraproducente, não é verdade.
Cabral foi um estudante sério, um arguto investigador e um ávido leitor, foi, provavelmente um dos mais extraordinários homens do seu tempo, ele costumava dizer: “sou um simples africano cumprindo o meu dever para com o meu país, no contexto de nossa época”.
Viva Cabral, Cabral ka muri!
São Paulo, Brasil, 08 de setembro de 2024
Por: Fernando Colonia (o bolamense)
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