terça-feira, 10 de setembro de 2024

"Preocupações com as memórias do futuro" no centenário de Amílcar Cabral


Miguel de Barros é sociólogo, investigador guineense, no simpósio internacional "Amílcar Cabral 

Chegar aos 100 anos de Cabral e encontrar toda esta panóplia de iniciativas ao nível do mundo para celebrar esta data é algo que não só nos orgulha, mas encoraja a continuar esse debate e a questionar o passado, a desafiar o presente e acreditar que o futuro será muito melhor", descreveu o sociólogo, investigador guineense, Miguel de Barros, sobre o simpósio internacional Amílcar Cabral que decorre em Cabo Verde e na Guiné-Bissau.

RFI: Assinalam se esta terça-feira os 50 anos do reconhecimento da independência da Guiné-Bissau. A Guiné-Bissau declarou unilateralmente a sua independência a 24 de Setembro de 1973 e foi reconhecida por Portugal a 10 de Setembro de 1974, depois da Revolução portuguesa. Como é que este reconhecimento mudou a dinâmica da luta pela libertação e quais é que foram as implicações internacionais?

Miguel de Barros: O reconhecimento não mudou a dinâmica da luta, no sentido em que o PAIGC já tinha proclamado a própria independência unilateral e com o reconhecimento de alguns países, inclusive das Nações Unidas. O reconhecimento veio trazer três questões fundamentais: A primeira questão tem que ver com o Acordo de Argel que permitiu, por um lado, não só o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau, mas o princípio, a auto-determinação e o reconhecimento também da independência de Cabo Verde, criando as condições necessárias do ponto de vista político, para que essa decisão se tome baseado naquilo que foi a luta de libertação na Guiné-Bissau. Outro elemento importante é que esse processo abriu o caminho para o próprio reconhecimento da independência de São Tomé e Príncipe, que não teve uma luta de libertação nacional. O terceiro elemento que é mais simbólico, no meu ponto de vista de uma forma implícita, o regime fascista português decapitou-se a partir do processo da luta de libertação na Guiné-Bissau. O facto de o 25 de Abril ter acontecido depois da proclamação da independência na Guiné-Bissau abriu espaço às negociações para depois se dar o reconhecimento de independência de outros países, que vieram demonstrar por um lado, aquilo que era a máxima da acção política a curto prazo ao médio prazo do direito à auto-determinação dos povos.

Hoje, na memória histórica política desses Estados, tanto na Guiné-Bissau, em Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe, por exemplo, essa data não tem relevo nenhum, nem do ponto de vista político constitucional, nem do ponto de vista popular. Se olharmos, por exemplo, para as questões da independência, mesmo havendo disputas de memória entre correntes políticas partidárias, procuram trazer a sua versão daquilo que é a independência. Nós encontramos no campo popular, na sociedade civil, aquilo que é uma espécie de reposição da verdade histórica. Quanto mais conseguirmos avançar nessa perspectiva de uma maior apropriação de elementos históricos ao nível das novas gerações e de instituições não estatais, teremos, de facto, a conseguir, pelo menos fazer prevalecer não só a questão da memória histórica, mas também aquilo que são as memórias do futuro. E perceber como é que esses povos constroem a sua própria identidade baseada naquilo que é a sua representação histórica.

Desde a sua independência, a Guiné-Bissau experimentou vários golpes de Estado, instabilidade política, uma democracia frágil, qual é que é o legado político dos últimos 50 anos?

O legado político dos últimos 50 anos tem que ser completamente separado do ponto de vista histórico. O processo da luta de libertação que levou à independência permitiu efectivamente à construção de uma sociedade mais livre, uma sociedade pluralista e, ao mesmo tempo, onde é possível que os guineenses determinam a sua própria condição. Do ponto de vista da construção do Estado, nós não conseguimos construir o Estado naquilo que são as funções vitais, em termos de capacidade de prestação de serviços à população, em termos de capacidade da salvaguarda da segurança humana em termos de capacidade daquilo que é representação do Estado a partir daquilo que são as convenções, os protocolos e também como é que esse próprio Estado foi conceptualizado no sentido de permitir, numa primeira linha, a construção de uma ideia endógena de como é que esse Estado se imerge no pós-colonialismo.

Por outro lado, também, como é que a sua estrutura económica favorece, de algum modo, a coordenação de políticas públicas que levam a capacidade de decisão com autonomia. A construção desse Estado, olhando tanto para a questão histórica da independência como para a questão, por exemplo, da construção do Estado, há uma terceira linha, que é como é que nós construímos a democracia, que é o grande elemento. Aí nós também não fomos felizes, porque, por um lado, nós partimos para o processo democrático, sem consolidação daquilo que seriam os pilares da própria democracia, uma sociedade com maior nível de educação e de instrução, uma sociedade com maior capacidade de construir o seu pilar de infra-estrutura económica e uma sociedade que tem a capacidade de primar pela liberdade para favorecer a possibilidade de construção pública da capacidade crítica e, ao mesmo tempo, de permitir aquilo que seria a construção de organizações cívicas e políticas que iriam inspirar, a partir desse pressuposto, a independência da autonomia de liberdade. Desse ponto de vista, nós não conseguimos construir uma sociedade com esses pilares, de todo esse processo da Guiné-Bissau e da sociedade guineense, aquilo que são elementos de maior resiliência.

Alguns desses pilares chegam-nos através de Amílcar Cabral e é por isso que também estamos aqui em Cabo Verde. Esta segunda-feira arrancou o Simpósio Internacional "Amílcar Cabral, um património nacional e universal", que decorre aqui em Cabo Verde, mas também na Guiné-Bissau. Dois países que um dia estiveram para ser um só?

Do ponto de vista da conceptualização de um único país, Cabral foi muito claro na perspectiva de que o pós independência ia dar lugar a um referendo para que os povos se posicionassem. Mas isso não aconteceu, o que também, no meu ponto de vista, colocou o próprio projecto político em causa. Por outro lado, havia condições históricas e políticas para que essa união se justificasse. Os cabo-verdianos estavam na administração pública portuguesa, tinham uma maior possibilidade de acesso ao sistema de ensino e, ao mesmo tempo, isso poderia favorecer uma luta política do ponto de vista diplomático, mas também a própria capacidade de contrabalançar aquilo que eram os efeitos da colonização, porque conheciam a máquina administrativa colonial, os guineenses não só tinham um território profícuo para a própria luta de libertação, mas tinha também a densidade humana para essa luta. Tinham as tais tecnologias sociais e culturais que permitiam resistir nesse contexto.

Ao mesmo tempo, tinha, por um lado, nos dois povos a capital de resistência e bravura que favoreciam a uma luta colectiva. Porque, por exemplo, levar a derrota do colonialismo no território da Guiné-Bissau implicitamente ia levar a derrota do colonialismo português nos outros países e acabou por acontecer. Mas, por exemplo, levar a derrota do colonialismo em Cabo Verde não ia levar a derrota do colonialismo na Guiné-Bissau, porque Portugal incutiu uma matriz extremamente segregacionista e que criou uma ideia identitária a partir do território que hoje é Cabo Verde, que não se conectava com outras realidades e colocava como se fosse uma classe intermediária que também apoiava o serviço da própria colonização e instrumentalizou isso enquanto elemento também divisionista. Felizmente, Cabral conseguiu posicionar-se, tirou as mais valias desse processo e levou a uma luta conjunta que favoreceu as independências.

Hoje, aquilo que têm sido os pontos de encontro entre a sociedade cabo-verdiana ou a população que os guineenses têm sido, sobretudo a nível de colectivos activistas de movimentos africanistas que não estão limitados só a partir de uma visão binacional. Mas olhem como é que as suas experiências, como é que os modelos culturais, como é que os modelos de solidariedade podem favorecer intercâmbios e diálogos é que projecta a questão do pan africanismo no Brasil como uma possibilidade de reconstrução identitária, mas também de reorganização de formas de participação de formas de criação de instituições que respondem à capacidade efectivamente da agenda pública nacional e que criam a tal autonomia que leva ao progresso que Cabral tanto advogava.

Ainda há marcas dessa segregação criada pelos portugueses aqui em Cabo Verde, por exemplo?

Sim, sim, há bastante. As questões identitárias não se esgotam a partir, por exemplo, de decretos. As questões identitárias não se esgotam a partir daquilo que são as memórias que as pessoas têm mais próximas ou não dos fenómenos sociais. As questões identitárias colocam-se sobretudo em formas de convivência. Como é que essas formas de convivência favorecem acesso a determinados níveis de privilégio e ou a determinados níveis de segregação? Em Cabo Verde posso dar dois exemplos interessantes. Quando uma cabo verdiana se casa, por exemplo, com um emigrante do Norte global, o termo que utilizado em crioulo é kompu raça , ou seja, construir a raça, arranjar a raça. Mas quando, por exemplo, há um casamento entre uma cabo verdiana e o imigrante, por exemplo oeste africano, o termo que utilizar straga raça estragar a raça, então esse é o elemento do colonialismo. Esse é o elemento da segregação, porque se criou essa ideia efectiva na construção dessa sociedade crioula.

Uma outra ideia importante, por exemplo, aqui em Cabo Verde, quando as pessoas têm acesso ao dinheiro ou ao capital económico e têm alguma possibilidade de influência, de alguma decisão, de alguma escolha ou alguma capacidade aquisitiva. O termo que utilizar dja mbranku dja, ou seja, já estou branco. Quando ouvimos essas narrativas, quando há essas práticas, quando há essas representações, isso demonstra, de algum modo, que o processo colonial que levou à segregação e à construção da ideia do branco superior ou preto é algo que ainda tem que ser desconstruído e tem que ser desmistificado para criar formas mais inclusivas que favorecem depois a tal integração social. Essa integração favorecer todas as manifestações não só de norte global, mas também das pessoas do Sul global e das pessoas oeste africanas que constituem parte importante dessa sociedade cabo-verdiana.

É preciso levar a cabo um trabalho sociológico ou que a mudança aconteça através da educação?

É um trabalho político no qual entra a dimensão sociológica entre a dimensão educativa, entre a dimensão sociocultural, entre a dimensão económica, entre a dimensão geográfica e espacial e entre, sobretudo aquilo que são a capacidade de construir compromisso inter-geracional para permitir com que se dispa todo esse elemento de segregação e que pairam e trazem novas formas de racismo, de exclusão na sociedade cabo-verdiana.

Não há comemorações oficiais em torno do centenário de Amílcar Cabral na Guiné-Bissau. Os eventos são organizados pela sociedade civil. Faz parte da organização que leva este simpósio e que o traz aqui a Cabo Verde?

Nós estamos há dois anos a trabalhar sobre esse processo. Lançamos inicialmente à celebração do simpósio em 2022. Em 2023, começámos o processo de intervenção muito mais localizado ao nível de conferências, debates, estruturas, mas também no meio do processo discutimos com Cabo Verde sobre qual seria a possibilidade do evento ter uma coordenação. Essa coordenação levou-nos à ideia, perfeitamente partilhada e com unanimidade, que deveríamos ter uma iniciativa conjunta, entre as organizações académicas e organizações da sociedade civil, mas também onde entra a Fundação enquanto elemento que trabalha sobretudo na preservação do legado da memória de Amílcar Cabral. 

E funcionou. Funcionou, por um lado, porque havia muita gente que queria ter um nível de debate orientado com o método e que favorece a melhor compreensão dos vários ensinamentos teóricos e práticos de Amílcar Cabral, mas também porque há uma preocupação agora das memórias do futuro, de como é que as novas gerações que não conviveram com Cabral, que não tiveram luta de libertação, estão a conceptualizar Amílcar Cabral? 

E depois, como é que Cabral nos dá elementos que nos permitem interpelar a nossa condição no momento actual e que tecnologias que nos oferece para orientar também face ao futuro.

Nessa perspectiva, mais de 50 comunicações foram apresentadas e iniciativas socio-culturais, movimentos, por exemplo, nas comunidades da diáspora africana a nível do mundo. Isso demonstra não só a vitalidade do pensamento do Cabral, mas mostra em que medida Cabral continua a inspirar processos de construção do Estado e a construção do processo de participação. 

Como dizia Pedro Pires, se o Cabral estivesse vivo, acho que estaria feliz porque ele não está sitiado nem pelos militares, não está sob controlo nem dos partidos políticos, mas está efectivamente junto do povo. As questões que Cabral traz, por exemplo, sobre o lugar do povo na construção da sua história enquanto sujeito da sua historia e como é que o povo deve estar vigilante face os processos que levam a derrapagens políticas e como é que o povo deve ser entidade que deve estar na vigilância da acção pública.

Chegar aos 100 anos de Cabral e encontrar toda essa panóplia de iniciativas ao nível do mundo em celebrar esses 100 anos é algo que nós devemos ficar não só orgulhosos e contentes, mas encoraja-nos a continuar esse debate e a questionar o passado, a desafiar o presente e acreditar que o futuro será muito melhor.

É impossível responder a esta questão, mas se Cabral estivesse vivo, de que forma é que ele olharia para Cabo Verde e Guiné-Bissau?

Fazer futurologia é difícil, mas mais complicado é estar no futuro e olhar para trás. Ele faria uma leitura diferente, porque ele, mais do que ninguém, compreendeu as dinâmicas socioculturais e históricas dos dois povos, dos dois países. Creio que Cabral estaria não só numa situação difícil em termos de encarar aquilo que são hoje as possibilidades de construção de uma governança autónoma com capacidade de prevalecer a soberania dos países. 

Cabo Verde é um país que tem muita dependência económica na condução das suas políticas públicas, no seu posicionamento internacional. Isso foi claramente comprovado, por exemplo, com a oposição de Cabo Verde em relação à guerra na Ucrânia, em relação, por exemplo, ao massacre de Israel na Palestina. Mas também estaria numa situação muito complicada com a Guiné-Bissau, para ver, por exemplo, a questão de como é que a falta de ética na política e na governança levou a Guiné-Bissau a autoritarismos ou à questão do narcotráfico. Muito mais difícil ainda será como, por exemplo, lutar pela independência, pela liberdade e hoje encontrar o país também dependente da ajuda externa e onde os jovens têm que enfrentar muitos desafios para conseguirem protestar. A posição de Cabral perante essas circunstâncias desses países não seria de lamento, seria, em primeiro lugar, de confronto e, ao mesmo tempo, da busca das alternativas que poderiam levar a novos caminhos. Hoje, por aquilo que são as manifestações vindas sobretudo de colectivos não partidarizados da sociedade civil, acredito que acabará. Estaria a encontrar se exactamente nesses movimentos, nesses colectivos, as bases para uma nova revolução.

O Presidente do Pedro Pires, que participou neste primeiro dia do simpósio em torno do centenário Amílcar Cabral, dizia que "ninguém falhou porque ninguém sabia e que a falha foi a ignorância". Concorda?

Por um lado, sim, eles foram jovens, foram muito, muito novos para o processo da luta e tiveram pouco contacto com aquilo que era a realidade social urbana desses países e também por aquilo que era a máquina necessária em termos de funcionamento. Mas, por outro lado, havia também ameaças, embora militarmente o regime colonial foi derrotado, mas o regime colonial, derrotado militarmente, não abdicou das influências políticas para condicionar também o destino desses países e ou para pôr em causa a própria revolução e voltar a tomar o poder. 

A partir do momento que essas questões existiram, não permitiu também uma maior abertura desses regimes para algo que podia favorecer uma entrada de tecnocratas de jovens e que não tivessem estado no processo de luta, de libertação. Agora, a partir do momento que se toma a decisão e se pensa que se está em condições de decidir em nome do povo, tem que se avaliar como é que essas medidas permitirão efectivamente cumprir aquilo que foi o compromisso e o engajamento das partes. Como é que a condução dos destinos do país levou aquilo que o camarada dizia à dignidade e ao progresso. Temos sempre que ter esses elementos como uma bússola no sentido de permitir uma maior justiça social, uma maior equidade entre comunidades, entre povos, entre territórios e que favorecem a emancipação que hoje nós estamos a discutir nesse simpósio.

Por :Lígia ANJOS
Conosaba/rfi.fr/pt

Sem comentários:

Enviar um comentário