sábado, 25 de abril de 2020

"A CEDEAO DÁ COM UMA MÃO E TENTA TIRAR COM A OUTRA" - DR. JULIÃO SOARES SOUSA


Por: Julião Soares Sousa
Num comunicado de apenas nove (9) pontos, datado de 22 de Abril último, a CEDEAO “matou” como se diz num provérbio, vários “coelhos de uma só cajadada”. Em primeiro lugar, legitimou os resultados eleitorais da segunda volta das eleições presidênciais, que a CNE tinha anunciado provisoriamente no dia Primeiro de Janeiro do corrente ano e proclamados definitivos por três vezes. Numa dessas ocasiões (a última) por solicitação da própria organização regional. 

Em segundo, a CEDEAO deslegitimou por completo o STJ que, se não quisermos ser parcimoniosos, é subetendidamente visto por aquela organização como uma força de bloqueio. Basta ler nas entrelinhas o ponto 5, quando se enfatiza a divisão que impera no interior da própria Corte Suprema. Aliás, ficou patente ao longo de todo o processo que havia juízes que tinham um entendimento diverso dos seus pares quer relativamente à forma como decorreu o processo eleitoral quer no que tange ao chamado contencioso eleitoral. Até nisso se nota os reflexos da grande divisão que está a corroer a sociedade guineense e que fez com que a CEDEAO emergisse como árbitro. Com o reconhecimento da vitória de Umaru Cissoko Embaló e da justeza do processo eleitoral (veja-se o ponto 2 do comunicado da CEDEAO) a organização regional veio condicionar e colocar sob pressão qualquer futura decisão que o STJ viesse a tomar no pós-surto pandémico. Recordo que no seu último comunicado, datado de 2 de Abril, antes de se remeter ao silêncio absoluto, o STJ tinha prometido tomar uma decisão sobre o contencioso eleitoral depois do levantamento do Estado de emergência. Pergunto: será que vai mesmo tomar alguma decisão? E se sim, que decisão? Estas duas perguntas deixam a Corte Suprema num beco sem saída e numa posição muito incómoda com a machadada final da CEDEAO que já começou a motivar reações à escala internacional. 

É que ninguém com juízo (e mesmo sem ele) consegue imaginar que a decisão sobre o contencioso eleitoral venha agora a ser diferente da posição assumida pela CEDEAO e que começa a ser sufragada pela comunidade internacional. Cremos mesmo que não terá coragem para sequer voltar a mandar repetir o apuramento nacional dos resultados e muito menos ainda equacionar (não sei se alguma vez equacionou) anular o pleito eleitoral. 

Se quiséssemos levar ao limite a nossa análise, poderíamos até subentender igualmente que a organização regional estivesse, com o comunicado acima referido, a escancarar as portas para uma eventual demissão da direção superior do STJ e até para uma ampla reforma do sector da Justiça na Guiné-Bissau. É uma leitura que não é de todo despicienda. 

A reforma da Justiça caminha ao lado da questão da revisão constitucional sugerida pela organização regional e que há décadas não passa da retórica. Não conseguimos imaginar uma a ser feita sem a outra. Ambas, associadas à corrupção, constituem o “calcanhar de Aquiles” (a mancha negra) da Guiné-Bissau e o maior bloqueio a qualquer agenda transformativa nacional.

O estranho em tudo isso é o facto de, num mesmo comunicado os chefes de Estado e de Governo da CEDEAO exigirem ou pedirem (repare-se na ambiguidade da própria expressão demandé) ao presidente reconhecido que nomeie um novo primeiro-ministro em conformidade com os resultados das eleições legislativas de Março último.  Sendo certo que assim deveria ser em circunstâncias normais a questão é que na Guiné-Bissau não estamos propriamente a viver uma circunstância normal. 

O próprio comunicado deixa transparecer essa anormalidade que levou a que só agora a CEDEAO e os respetivos chefes de Estado e de Governo tivesse tomado a decisão que tomaram. 

Assim sendo, a pergunta que se impõe é se Umaru Cissoko Embaló (agora presidente de jure et de facto) vai acatar mais uma ambiguidade dos seus pares da CEDEAO e demitir o Governo de Nuno Gomes Nabiam. Bem... Sejamos sérios na análise. Só se Cissoko quisesse abrir no seu primeiro ano de mandato uma ou várias frentes de batalha com  a coligação de partidos e demais candidatos que o apoiaram. Há até (não vou é detalha-lo aqui) uma solução para isso, mas em qualquer circunstância provocaria sempre discenso no sector que o catapultou para a presidência da Guiné. Esta crise pós-eleitoral  ao arrastar-se no tempo deixou mossa, o que inviabiliza, à partida, como em muitas situações anteriores a solução “demandé” pelos chefes de Estado e de Governo da CEDEAO. Sinceramente, acho que este ponto do comunicado abre é uma porta para o livre arbítrio do Presidente da República. Isto é o mesmo que dizer “faça V. Ex.ª o que entender”. 

Mas para isso a CEDEAO não precisava de deitar mais achas para a fogueira que já vinha ardendo desde 1 de Janeiro de 2020. Irá Umaru Cissoko comprometer o seu exercício presidencial logo no primeiro ano de mandato nomeando um novo primeiro-ministro do PAIGC e abrindo brechas na coligação que o catapultou para poder? 

A nossa resposta definitiva (a não ser que venha a haver surpresas) é que duvidamos muito. Mas tem pelo menos uma solução que o comprometeria menos. Esperar, por exemplo, que o Parlamento bloqueasse como no passado a convocatória da sessão parlamentar para a discussão e aprovação/não aprovação do Programa de Governo ou que aquele orgão legislativo chumbasse o Programa de Governo. Em ambas as situações recorreria então à apodada muitas vezes de “bomba atómica”. Isto é, à dissolução do Parlamento e à convocatória de eleições legislativas, mantendo na mesma Nuno Nabiam à frente do Executivo. O próprio Cissoko já ameaçou com a utilização da “bomba atómica” para resolver de imediato qualquer situação vinda do Parlamento que ameaçasse o seu exercício presidencial, evitando assim os transtornos de que o seu antecessor no cargo, José Mário Vaz, foi vítima. Bom, com a dissolução do Parlamento e a convocatória de eleições legislativas, Cissoko apostaria na tática do desgaste do PAIGC que, como os restantes partidos, seria forçado a convocar um congresso em que, eventualmente até, poderia emergir uma nova liderança.

Não estou a imaginar os partidos e as personalidades que se agruparam em torno da candidatura presidencial de Cissoko na segunda volta a aceitarem outra saída que não fosse essa, sob pena de regressarmos ao passado recente e às dificuldades de coabitação que de alguma maneira têm cimentado a nossa instabilidade política. 

A CEDEAO estendeu uma flor com uma mão e logo de seguida tentou tirá-la com a outra, numa atitude pouco série e em si mesma fautora de novo impasse político-constitucional que longe de gerar a estabilidade que apregoa vai agora abrir (ainda que por pouco tempo) uma nova frente de batalha. Mas, uma vez legitimado, Cissoko tem a faca e o queijo na mão e ainda por cima um baralho de cartas. Dois grandes presentes outorgados pela CEDEAO com essa atitude de dar com uma mão e tentar tirar com a outra. Falta saber como vai gerir os presentes e quem serão os amigos que convidará para jogarem à bisca enquanto comem queijo. Quanto a nós, ao ouví-lo há dias a escolha já estará feita.

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