Tenho o costume de rever os arquivos de imprensa da Guiné-Bissau.
Entre todos depoimentos lidos por mim, há um que deixa uma radiografia completa sobre o Estado guineense – o seu modus operandi, a anarquia, o machismo, a injustiça, a vulnerabilidade de quadros, a dependência, e, sobretudo, o apego à intriga e à conspiração.
Hoje, partilho uma dessas entrevistas, na pessoa de major-general João Monteiro, o antigo director-geral do Serviço de Informações e Segurança do Estado. No dia 24 Fevereiro de 2000, o jornal Diário de Bissau publicou alguns excertos da sua entrevista com João Monteiro. Nele, João Monteiro falava sobre os trabalhos da Comissão de Inquérito sobre o Caso 17 de Outubro.
JOÃO MONTEIRO: “Vou [vos] contar um episódio que se passou no quintal do Palácio. No decorrer do progresso [sic] do Caso de 17 Outubro, o Humberto [Coronel Humberto Gomes] e demais membros do Tribunal Militar aparecem no quintal [do Palácio da República] e o Humberto diz ao Presidente Nino: ‘Senhor Presidente, o resultado do inquérito mostra claramente que estes acusados não são culpados. O Tribunal e o acusador público disseram que as provas não existem contra estes acusados. As únicas provas são as confissões conseguidas sob [à] tortura, e por isso inválidas perante o Tribunal’. O Presidente Nino bateu com as mãos na cadeira dizendo que as provas tinham que ser inventadas, porque ele tinha informações seguras dos vizinhos de Paulo Correia, Manecas e Francisca, como provas suficientes do golpe de Paulo que recebia constantes visitas dos implicados. O Tribunal tinha que encontrar provas. Os olhos de Nino Vieira brilhavam de sangue vermelho.”
Todos os guineenses conhecem o desfecho trágico do “Caso 17 Outubro de 1985”.
Quero-vos lembrar dessa entrevista para chamar atenção à actual liderança do país, na pessoa do Chefe do Estado, Umaro Mokhtar Sissoco Embaló – na sua única qualidade do Representante da República da Guiné-Bissau e garante da Constituição -- de que devemos fazer tudo para evitarmos os trágicos erros de um passado recente. E evitar os tais erros implica, em primeiro lugar, promover, fazer prevalecer e defender a justiça social e a justiça legal.
Nesse quadro, a presunção da inocência até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória deve ser um princípio inegociável e insubstituível. Aliás, a presunção da inocência é um dos maiores traços das constituições de República de qualquer país moderno e civilizado, includindo a Guiné-Bissau.
Assim, todos os acusados de tentativa de golpe de Estado, ou seja, nos casos “1 de Fevereiro de 2022” e “1 de Dezembro de 2023” merecem ser tratados como inocentes até provado o contrario, merecendo assim todo o tratamento humano e assistência permissíveis dentro da lei, incluindo o direito de acesso ao tratamento médico adequado e às visitas regulares dos familiares e/ou dos advogados.
Mais importante: à luz da morte prematura de Papa Fanhe – que a sua alma descanse em paz – é urgente o tratamento destes casos com a obrigatória celeridade que a lei requer. Aliás, gostaria de lembrar ao Presidente da República a declaração feita em Março deste ano aquando do seu regresso de Israel e da Palestina. Nela, Sissoco Embaló prometeu que todos os casos judiciais deveriam ser julgados nos próximos tempos e que ia convocar (ainda essa semana) o presidente interino do Supremo Tribunal de Justiça, o presidente do Tribunal Militar Superior, o Procurador-Geral da República e o Chefe do Estado-Maior Geral das Forças Armadas. Perante à imprensa nacional e estrangeira, o Presidente da República afirmou que ia transmitir a sua orientação no sentido de se dar prioridade aos três casos judiciais.
Julgo ser imperativo o Ministério Público e o Tribunal Militar da Guiné-Bissau a urgente reconsideração dessa tal “orientação” de há quase três meses. Pois, na verdade, ninguém – seja ele civil ou militar -- merece ser preso e detido indefinidamente por culpa da própria inoperacionalidade, falhanço ou incompetência do sistema judicial do país.
Também gostaria de vos lembrar que a prisão preventiva dos cidadãos civis ou militares não deve ser por um tempo indeterminado. Há prazos legais que devem ser respeitados. E há também um tempo “tolerável” para que se mantenha uma pessoa privada da liberdade. Todos esses prazos já foram largamente ultrapassados! (ler os Artigos 37°, 38°, 39°, 40°, 41°, 42°, 43°, e 44° da Constituição da República).
Em suma, quando o Estado guineense não dispõe de suficientes elementos acusatórios contra um indivíduo, esse mesmo Estado não pode continuar privar o tal indivíduo das suas liberdades, sob o risco de ser classificado com um estado anárquico e ditatorial.
Uma vez, o conceituado abolicionista norte-americano e defensor dos nativos, Wendell Phillips, disse que “o primeiro dever de uma sociedade é a justiça.”
Portanto, sem uma verdadeira justiça não pode haver nenhuma garantia de segurança (social e económica) para indivíduos ou comunidades em geral.
É ainda o tempo de agirmos em base da legalidade, humanidade, civilidade e prudência, se a nossa intenção é pacificar, viabilizar e dignificar a Guiné-Bissau.
--Umaro Djau
Deputado da Nação (Grupo Parlamentar MADEM G-15)
1 de Junho de 2024
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