O Presidente português defendeu que Portugal “assume total responsabilidade” pelos erros do passado, e disse que esses crimes, incluindo massacres coloniais, tiveram “custos” e que há que pagá-los. "Este debate é muito fácil de se fazer, transferindo de alguma forma a questão para a realidade dos países no continente africano. Creio que se deve aproveitar esta oportunidade para trazer para a agenda política nacional a situação dos afro-descendentes", defende Yussef, activista pan-africanista.
RFI: Como é que interpreta estas declarações?
Yussef: Eu penso que há uma parte que é importante do discurso do Presidente Marcelo, na medida em que há uma tentativa de fazer uma análise histórica concreta do que é que foi o tráfico transatlântico e do que é que foi o colonialismo. Isto, contrariamente à ideia dominante em Portugal, que é de uma romantização tanto da escravatura transatlântica como do colonialismo. Eu creio que, neste sentido, é importante este passo em frente, até porque isto pode ter repercussões na sociedade portuguesa, na forma como se entende o fenómeno transatlântico da escravatura e o fenómeno colonial. Existe a ideia, ainda hoje de que foi uma escravatura transatlântica que não foi iniciada pelos portugueses, de que foi diferente comparativamente a outros Estados que praticaram a escravatura transatlântica, quando na verdade estamos a falar de negação da humanidade, tanto neste fenómeno como relativamente ao colonialismo. Eu acho que a nível da história, a nível do entendimento, o que é que foi a história, estas palavras do Presidente Marcelo têm a sua importância.
Existe uma outra dimensão desta sua intervenção que deixa alguma dúvida relativamente à sua pertinência. Quando falamos, por exemplo, de compensações históricas e aqui eu coloco a questão, nós estamos a falar do que exactamente: Estamos a falar de restituição de objectos que foram apropriados pelo Estado português e que devem ser devolvidos?
Estamos a falar de transferência de valores de trabalho da classe burguesa para as classes trabalhadoras de países como Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique? Estamos a falar do quê concretamente?
Eu creio que há necessidade de saturar este debate para que nos possamos entender, porque eu creio que tem que haver uma certa sensibilidade quando tentamos, de alguma forma, inculcar um sentimento de culpabilidade a descendentes de grupos que participaram tanto na escravatura transatlântica como no colonialismo e que, de uma forma ou de outra, penso eu, não tem nenhuma responsabilidade nesse fenómeno passado. Então é preciso ter algum cuidado neste inculcar um sentimento de culpa que não deve existir.
Eu creio que deve existir sim uma consciência do que foi a história, o que é que aconteceu na história. Ter noção de que a escravatura transatlântica e o colonialismo impactaram e mudaram o mundo no qual nós vivemos hoje. Existem heranças, sim, por parte daqueles que beneficiaram de um avanço das suas sociedades, fruto da escravatura atlântica e do comunismo. Existe uma herança também de subdesenvolvimento, de atraso civilizacional, mesmo também fruto da herança da escravatura transatlântica e do colonialismo. Mas a questão é: será que a transferência de valores como reparação e forma correcta no mundo actual de alguma forma não reparar, porque acho que é um termo não exacto, mas mitigar o que aconteceu no passado. Eu, muito sinceramente, enquanto militante e activista que tenta construir um outro projecto de sociedade, tenho, no mínimo, as dúvidas que seja esse o caminho.
Fala da análise da história que não foi feita até agora. Muitos portugueses ainda se orgulham da época das descobertas e dos feitos dos navegadores, esquecendo tudo o que estas descobertas ocidentais implicaram. Entre os séculos XV-XIX, perto de 13 milhões de africanos foram raptados e vendidos como escravos. Só Portugal traficou quase 6 milhões de africanos, mais do que qualquer outro país europeu. Até agora não conseguiu enfrentar o seu passado. Hoje atribui se a culpa aos antepassados.
No entanto, ainda há actos de racismo em Portugal, como é que se explica este antagonismo?
Em última análise explica-se o projecto de sociedade que existe. Enquanto não existir uma modificação das estruturas políticas e económicas, não pode existir nenhum idealismo em acreditar que o racismo deixará de existir para o racismo. Nasce no campo do trabalho, no campo da divisão social, do trabalho. Estamos a falar da exploração económica e, quer queiramos quer não, esta sociedade tem como estrutura, como pilar, a exploração económica de um grupo sobre os demais. Enquanto esta exploração económica institucionalizada existir, enquanto existir uma divisão social e racial do trabalho, será puro idealismo acreditar que discursos poderão fazer face ao racismo.
Esta é uma herança, sem dúvida alguma, da escravatura transatlântica e do colonialismo e tem que ser entendida, tem que ser entendida na sua profundidade, nas suas dimensões complexas, porque realmente precisamos de dar um passo em frente. E não acredito que o mero debate sobre as reparações possa fazer face. Pode dar um contributo. Muito a nível intelectual a nível de tentativa de criar uma crítica mais arrojada ao que foram esses fenómenos. Mas não tenhamos ilusões, enquanto não houver uma mudança a nível das estruturas do trabalho nesta sociedade e diria eu, a nível mundial, o racismo existirá.
O racismo tem estas dimensões; tem dimensão a nível nacional que tem a ver com a divisão social e racial do trabalho e tem a sua dimensão internacional, que tem a ver com a divisão internacional e racial, também do trabalho, em que existem sociedades que exportam matérias-primas ou são obrigadas a exportar matérias-primas e existem outras sociedades que se transformam e depois exportam. Esse projecto de sociedade profundamente desigual é que forja esta mentalidade racista de que existem povos que não têm capacidade de fazer nada mais do que exportar matérias-primas e que existem outros povos que, por uma inerência, uma inerência biológica, têm a capacidade de transformar e de criar valores e que depois exportam para povos que não conseguem essa mesma transformação.
Eu creio que temos que mudar as premissas do debate, mesmo quando falamos do racismo, no sentido realmente de entender que não é um problema de mentalidades ou antes, ser um problema de mentalidades, tem a ver com a nossa vivência imaterial, tem a ver com a produção da vida material na sociedade, tem a ver com a divisão social do trabalho e tem a ver com a divisão internacional do trabalho.
Em comunicado, o executivo português, liderado por Luís Montenegro, afirma que, "a propósito da questão da reparação a esses Estados e aos seus povos pelo passado colonial do Estado português, importa sublinhar que o Governo actual se pauta pela mesma linha dos governos anteriores. Não esteve e não está em causa nenhum processo ou programa de acções específicas com esse propósito". O governo português a reagir este fim-de-semana passado e afastar se das afirmações de Marcelo Rebelo de Sousa.
Pergunto lhe, quando o há pouco dizia que era necessário dar um passo em frente foi isso que Marcelo Rebelo de Sousa tentou fazer ou tentou demarcar se politicamente?
Eu não quero fazer interpretações subjectivistas de quais foram as intenções do presidente Marcelo, mas eu reconheço que o facto é que ia falar consigo sobre este tema, significa que abriu aqui um debate que eu acho que é importante relativamente ao posicionamento do governo português.
Eu creio que falar de reparações ou mitigar as consequências da escravatura transatlântica ou do turismo deve incidir sobre a condição material dos descendentes desses homens e mulheres que foram traficados e desses homens e mulheres que passaram pelo colonialismo, osso deveria começar, talvez, em Portugal. Não são coisas contraditórias, o debate tem de ser feito em Portugal, tem que ser feito nos países que foram colonizados pelo Estado português, mas começando em Portugal, porque também precisamos ter algum grau de exigência.
O professor Marcelo, como um agente político, certamente terá noção que existem movimentos da afro-descendente em Portugal que têm um caderno de reivindicativo desde as coisas básicas, como por exemplo, a mudança da lei da nacionalidade para permitir que quem nasça em Portugal, tenha nacionalidade portuguesa e ao mesmo tempo também permitir que aqueles que foram vítimas desde a década de 80, aquando da mudança da Lei de nacionalidade que nasceram cá, viveram toda a sua vida em Portugal, não puderam ter a sua nacionalidade, para que a lei da nacionalidade, de forma retroactiva, permitir que esses homens e mulheres hoje possam ter a nacionalidade portuguesa. Ao mesmo tempo, também fala se da recolha de dados étnico raciais que, por exemplo, deveria ter estado nos censos no sentido de se saber exactamente como é que vive a população portuguesa afro-descendente, se tem acesso ao ensino superior ou não? Quais são os trabalhos nos quais são mais representados? Têm acesso, por exemplo, a carreiras, por exemplo, na área do jornalismo, da comunicação social.
Ou seja, este debate é muito fácil de se fazer, transferindo de alguma forma a questão para a realidade dos países no continente africano, mas não se fazer aqui em Portugal e creio que deve se aproveitar esta oportunidade também para, mais uma vez, trazer para a agenda política nacional a situação dos afro-descendentes. Porquê?
Porque se falamos em reparação, ou se quisermos ser mais concretos a mitigar as consequências desses fenómenos dos quais estamos a falar aqui. Comecemos por entender a situação concreta, material, dos afro-descendentes e, ao mesmo tempo, ouvir essas mesmas organizações da afro-descendentes, estes mesmos militantes activistas com os seus cadernos reivindicativos no sentido de realmente se poder dar um passo em frente relativamente a este debate de forma séria e com um compromisso concreto.
Por:Lígia ANJOS
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