terça-feira, 9 de julho de 2024

Guiné-Bissau: "Realização, neste ano ainda, de presidenciais é única via de retorno à normalidade"


Circulação no centro de Bissau, Setembro de 2023. © Liliana Henriques / RFI

O Presidente da Guiné-Bissau anunciou nesta segunda-feira que tenciona marcar eleições legislativas antecipadas no próximo dia 24 de Novembro e que quando regressar da visita que efectua esta semana à China, vai conduzir consultas políticas no sentido de formalizar a marcação do escrutínio.

Esta decisão surge numa altura em que o país deixou de ter um parlamento a funcionar desde a dissolução decidida por Umaro Sissoco Embaló em Dezembro do ano passado, depois de acontecimentos que ele qualificou de "tentativa de golpe de Estado".

Esta decisão surge também e sobretudo depois de os chefes de Estado e de governo da CEDEAO terem recomendado, em cimeira no passado fim-de-semana na Nigéria, que o executivo guineense "acelere o processo de realização de novas eleições legislativas para restabelecer a Assembleia Nacional Popular e permitir a eleição de membros da Comissão Nacional de Eleições".

Uma recomendação que vem, de certo modo, contrariar os pedidos de esclarecimentos dos partidos guineenses com assento parlamentar que, para além de reclamarem -sim- a realização de presidenciais ainda este ano, argumentando que o mandato presidencial termina oficialmente em Fevereiro de 2025, também pretendiam obter um posicionamento da CEDEAO sobre a eleição de uma nova direcção para a CNE e para o Supremo.

Estes foram alguns dos aspectos que focamos com Sumaila Djaló, membro da plataforma da sociedade civil 'Frente Popular' com quem abordamos igualmente a situação de divisão no seio do PRS, bem como as iniciativas que a organização a que pertence tem vindo a tomar ultimamente.

RFI: Quais são os seus comentários à decisão presidencial de marcar legislativas antecipadas para o dia 24 de Novembro?

Sumaila Djaló: É, mais uma vez, um sinal da continuidade da crise política na Guiné-Bissau, iniciada em Dezembro de 2023, com a dissolução inconstitucional da Assembleia Nacional Popular, por um decreto assinado por Umaro Sissoco Embaló, que vai contra todas as orientações da Constituição da República da Guiné-Bissau. Como se disse na altura, a Assembleia não podia ser dissolvida a menos de 12 meses das últimas eleições legislativas, nem poderia, nos últimos seis meses do mandato do Presidente da República em que estamos agora a entrar também. Mas Umaro Sissoco Embaló fez o que fez, e o país há seis meses está com a Assembleia Nacional Popular a não funcionar por uma decisão ilegal, e a crise política a agudizar-se cada vez mais, com consequências na vida das populações. Mas agora, marcar eleições legislativas para o mês de Novembro coincide com um outro acto também importante, no sentido de agravar a situação política e social no país, que é a CEDEAO adoptar uma resolução vinda da última cimeira dos chefes de Estado e do Governo, a também orientar para a realização das eleições legislativas antecipadas ainda neste ano, o que é uma forma de a organização sub-regional homologar a dissolução contra constitucional da Assembleia Nacional Popular, e mais uma vez, a não contribuir para a democratização de um Estado-Membro e a demonstrar-se cada vez mais incapaz de monitorar os Estados membros, a consolidar as suas democracias e também a debater-se com diferenças com outros países da sub-região. E a Guiné-Bissau é um caso que se torna cada vez mais paradigmático, porque a CEDEAO tem vindo a revelar-se incapaz de, de facto, ajudar o país a orientar-se para a democratização.

RFI: Relativamente a outro anúncio feito ontem, o Presidente da República, uma vez mais, deu a entender que as presidenciais seriam no ano que vem e não ainda este ano, conforme é reclamado por uma série de partidos políticos. Quais são os seus comentários?

Sumaila Djaló: Estamos, mais uma vez numa situação em que Umaro Sissoco Embaló reafirma o seu desdém para com a Constituição da República e a legalidade democrática. A Constituição ordena que o mandato do Presidente da República cesse depois dos cinco anos em que esse mandato deve acontecer. Em Novembro próximo, nós vamos entrar nos cinco anos desde a realização das últimas eleições presidenciais que conduziram Umaro Sissoco Embaló à Presidência da República, embora a tomada de posse tenha sido em Fevereiro, dia 27, de forma unilateral, devido a um contencioso eleitoral que estava a decorrer no Supremo Tribunal de Justiça. No entanto, é preciso também dizer aqui que Umaro Sissoco Embaló não se preocupa muito em infirmar acções que vão contra a Constituição da República e a legalidade democrática na Guiné-Bissau. Se não houver uma oposição política à altura dos desmandos de Umaro Sissoco Embaló e que consiga convocar o povo e outras forças vivas, políticas e cívicas da Nação Guineense para enfrentar a deriva absolutista de Embaló, as eleições vão se realizar em 2025 e teremos um Presidente com mais de cinco anos no poder. E depois, não sabemos quando é que isso vai terminar. E é preciso dizer que tudo isto acontece numa altura em que na Comissão Nacional de Eleições, temos uma direcção caduca e, mais grave ainda, no Supremo Tribunal de Justiça, temos um presídio fora da legalidade constitucional, porque o presidente legitimamente eleito pelos seus pares, foi destituído de forma abusiva das suas funções, e desde então não houve legitimação da presidência do Supremo Tribunal de Justiça através de uma eleição que deveria ser livre e imune a qualquer interferência política, como tem acontecido neste momento na Guiné-Bissau. Portanto, mais uma vez, a única forma de a Nação Guineense, toda ela reunida pela salvação da democracia e pela reposição da constitucionalidade no país, ultrapassar esta questão é as lideranças políticas, organizações cívicas e movimentos sociais encontrarem mecanismos de mobilização popular internos que consigam influenciar na retoma da ordem constitucional e regresso à democraticidade através da realização de eleições no Supremo Tribunal de Justiça, através do retorno do funcionamento da Assembleia Nacional Popular e, a partir daí, eleger-se uma nova direcção da Comissão Nacional de Eleições e só após a realização, neste ano ainda de eleições presidenciais, porque é a única via verdadeiramente democrática e constitucional de retorno à normalidade democrática no nosso país.

RFI: Relativamente ao desempenho do Supremo Tribunal de Justiça, ele acaba de validar a eleição do presidente do grupo dos "Inconformados" dentro do PRS. Portanto, ele considera que este é o líder legítimo do PRS. O que é que se pode dizer sobre este parecer, uma vez que a outra ala do PRS rejeita esta decisão e considera-a ilegal?

Sumaila Djaló: Há duas notas a tomar aqui: duas notas muito importantes, porque o PRS tinha sido um partido que ajudou Umaro Sissoco Embaló a chegar à Presidência da República, mesmo sabendo que, enquanto Primeiro-ministro entre 2017 e 2018, tinha sido muito autoritário e já tinha revelado o seu apetite para o absolutismo e para o exercício de violência como forma de restringir liberdades democráticas. Depois, houve, sim, um período relativamente curto de ruptura entre a actual direcção do PRS com Umaro Sissoco Embaló, que é o período que antecedeu as eleições legislativas de Junho de 2023, para o período que culminou com a dissolução do Parlamento que veio dessas eleições. Quando se dissolveu o Parlamento de forma claramente inconstitucional, o presidente do Partido da Renovação Social, apesar de ser jurista e de conhecer muito bem a Constituição da República e de ter informações suficientes para saber que aquela dissolução tinha sido contra a Constituição da República, não se posicionou de forma clara contra esse acto abusivo do Presidente da República. Neste momento, estamos perante, por outro lado, a afirmação de uma estratégia de caos de Umaro Sissoco Embaló no seio dos partidos políticos com assento parlamentar, de modo a que esses espaços de mobilização política se esvaziem e ele se afirme como o único salvador do país. Uma espécie de interferência nos partidos que não se alinham com a sua ditadura. Está a acontecer com o PRS. Está a acontecer no MADEM-G15 que é o partido que curiosamente ajudou a fundar, mas do qual se desvinculou. Está a acontecer no PAI Terra Ranka, nomeadamente no PAIGC que é o maior partido desse espaço, mas também no APU-PDGB, que foi outro partido que o ajudou a chegar à Presidência da República e que teve o seu líder no governo ilegal instituído por Umaro Sissoco Embaló, desde Março de 2020 até as últimas eleições legislativas de 2023. Portanto, o caso do PRS é mais uma demonstração de que o Supremo Tribunal de Justiça está ao serviço de Umaro Sissoco Embaló e não a funcionar dentro do quadro da legalidade. Porque, repare, a direcção interina do PRS liderado por Fernando Dias, veio de uma escolha do Conselho Político Nacional do PRS, que é o órgão que funciona entre congressos para a tomada de decisões nesse espaço político. A tal direcção, eleita num dito congresso extraordinário dos "Inconformados", não teve nem anuência do Conselho Político do Partido da Renovação Social, nem teve caminhos estatutários no quadro do mesmo partido para a realização desse Congresso. Fê-lo em paralelo a um Congresso convocado pela direcção legítima do Partido da Renovação Social, para instalar uma onda mais aguda de confusão no seio do Partido da Renovação Social e possibilitar que Umaro Sissoco Embaló construa o seu caminho, sem oposição política contundente no sentido de obrigar a respeitar os ditames constitucionais e a legalidade democrática no país. Mas também é uma forma de dizer aos partidos políticos que a defesa da Constituição e da legalidade democrática, não pode ser feita por conveniência. Esses valores têm de ser defendidos independentemente dos interesses localizados, independentemente das conveniências partidárias. São valores que nos podem assegurar a justiça, a equidade e a igualdade de circunstâncias, tanto na mobilização política, como no exercício de cidadania em geral no nosso país. O PRS tem-se demonstrado titubeante na realização do seu compromisso com esses valores democráticos e hoje está a pagá-lo na sua pele, através de interferências do tipo que estamos a verificar nesta altura do Supremo Tribunal de Justiça, orientado por um interesse político claramente identificado.

RFI: É neste contexto que a Frente Popular anunciou há dias que não só interpunha uma acção contra o Estado e membros do Governo da Guiné-Bissau pelos acontecimentos do passado mês de Maio, mas que também tenciona lançar acções no exterior. O que é que nos pode dizer exactamente sobre a vossa iniciativa e, sobretudo, sobre as vossas expectativas relativamente a estas acções?

Sumaila Djaló: Nós estamos a preparar um conjunto de acções, tanto de protestos, como de resistências de outras formas, a partir do próprio território guineense e a partir de outras instâncias internacionais. Há uma queixa-crime a ser preparada através da Frente Popular, com assistência da Liga Guineense dos Direitos Humanos e apoio de um conjunto de advogados franceses, especialistas nestas questões de justiça internacional. Uma queixa que se vai apresentar a partir dos tribunais franceses para outras instâncias que se venham a identificar como sendo possibilidades nesse sentido. Trata-se de denunciar ataques de que os nossos colegas foram alvos na nossa última manifestação, a 18 de Maio, em que 93 pessoas foram presas e torturadas de forma brutal nos cárceres do Ministério do Interior, a mando do regime instituído no país e encabeçado por Umaro Sissoco Embaló. Mas no próximo dia 27 de Julho também temos uma manifestação a acontecer em Bissau, mais uma manifestação popular para exigir o retorno à ordem constitucional, a realização de eleições presidenciais ainda neste ano, a legitimação do Supremo Tribunal de Justiça, mas também da Comissão Nacional de Eleições e, por outro lado, a resolução de graves problemas sociais na saúde, na educação e de uma população que perde poder de compra a cada dia que passa. Também essa manifestação estender-se-á a várias localidades da diáspora, como aconteceu na manifestação de 18 de Maio passado em Portugal, na França, possivelmente no Brasil e noutras localidades. Temos colegas a se mobilizarem nesse sentido para denunciar a ditadura encabeçada por Umaro Sissoco Embaló, para defender os valores da República e da democracia, porque a República da Guiné-Bissau está ameaçada pela instituição de um absolutismo, um autoritarismo encabeçado por uma única pessoa que se autodenomina de único chefe. E nós não podemos ficar passivos perante todas estas situações de violações gritantes da Constituição da República e de perigos ao multipartidarismo e ao processo de fortalecimento da democracia no nosso país.

Por: Liliana Henriques
Conosaba/rfi.fr/pt/

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