quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

A percepção dos Bissau-guineenses sobre as religiões coloniais e o enquadramento das práticas espirituais endógenas

 


Tedse Silva soares da gama

Após ter visualizado nas redes sociais o vídeo em que um indivíduo que se identifica como muçulmano a fazer comparação da comida do Natal com a da prática ancestral, os cristãos saíram em defesa cristianismo elucidando vários comentários. Apesar de não concordar com a infeliz declaração, mas, no contexto desse debate cabe pontuar o seguinte: por que os cristãos católicos criticaram severamente essa comparação? Haveria a mesma reação caso a comida do Natal fosse comparada com a de festa de tabaski?

Apesar da resposta é nítida nos olhos de quem deseja enxergar o óbvio, porém faço questão de responder, mas, antes gostaria de frisar outro fato semelhante ao que nos possibilita entender a percepção dos guineenses sobre as religiões coloniais (cristianismo e islamismo).

Outro fato semelhante se refere a um cristão da igreja reino de Deus, que pela ousadia proferiu palavras que elucidam a intolerância religiosa diante da baloba conhecida como Ussai Katur no norte do país, concretamente na cidade de Caió. De salientar que, as reações a esse fato não se comparam com as do primeiro caso. Isso nos remete a ideia de que em Guiné-Bissau a laicidade é vista a partir do cristianismo e islamismo. 

 Ora, as duas inquietações acima apesentadas são pertinentes para compreendermos o nível de sensibilidade do guineense no quesito da religião/religiosidade. Entretanto, vê-se as discussões sobre a religião em Guiné-Bissau a partir do cristianismo e islamismo, as outras práticas não se enquadram como condicentes, nesse ensejo, tanto os cristãos de modo geral, assim os islâmicos vêm os cultos ancestrais como práticas diabólicas. A partir deste ponto, faz-se necessário destacar alguns aspectos.

Inúmeros guineenses professam o islamismo e cristianismo sem ter a ciência da sua chegada no continente africano, particularmente em Guiné-Bissau. As duas religiões surgiram no Oriente e se expandiram pelo mundo com intuito de difundir seus ensinamentos e controlar os pensamentos.

No contexto da difusão, a receptividade não foi cordial e harmoniosa por que nunca existiu e não existirá a homogeneidade cultural e religiosa. Devido à resistência, a imposição foi o caminho encontrado para o reconhecimento das religiões expansionistas em África, entretanto, não foi da livre vontade a aderência ao islão e cristianismo por parte dos nossos antepassados, portanto, estas religiões usaram as diversas formas de violências para efetivação dos seus preceitos e práticas, desta forma moldaram significativamente o modo de viver em África – vê-se nos escritos do senegalês Cheikh Anta Diop.

A partir de uma boa conduta a religião seria paz, infelizmente, foi necessário legitimar a “guerra santa” e “as cruzadas” como sinônimos de anunciação dos evangelhos. Como uma guerra poderia ser santa? A partir de que pressupostos legais a “santa inquisição” queimava pessoas na fogueira? Que Deus permitiu a legitimação da escravidão em nome da religião? Assim sendo;

– Me causa incomodo o silêncio do sagrado onipotente e onisciente perante as ações desumanas legitimadas em seu nome no período escravocrata, e ainda na contemporaneidade, segundo a lenda, o/a mesmo/a agiu nos tempos mais remotos atribuindo o pecado. Imagina-se que tenha perdido a visão do mundo, nisso, prefiro não acreditar na sua existência e cultuar as práticas espirituais dos meus ancestrais.

Com todas as atrocidades acometidas em nome do islão e cristianismo ainda no pensamento do guineense o diabo se encontra nas espiritualidades africanas, este é o lúcido pensamento de um alienado. Além do mais, a intolerância aparece quando as críticas são proferidas ao islão e cristianismo.

Devido a proliferação das ideias ilusórias da religião cristã e islâmica, ainda guineenses veneram as tais religiões criadas e os falsos profetas como únicos caminhos para a dita “salvação/glória”, por que, fatos maléficos das duas religiões são desconhecidos por um número significativo de guineenses e africanos de forma geral.

O colonialismo fez e ainda, na sua estrutura neocolonial, nos faz demonizar as nossas práticas culturais e espirituais, portanto, para se emancipar da colonialidade do ser e do saber, dentro do contexto guineense, é preciso abdicar do seguinte pensamento: mara mecinho, bai iran, bai djambacus i kusas di diabu. Ademais, é fundamental ter em mente que os poderes ancestrais que os muçulmanos e cristãos consideram de diabo, contribuíram significativamente para obtenção da liberdade que tanto desfrutam para declararem seguidores dessas religiões.

A nível do Estado vê-se a ausência/silenciamento na resolução dos problemas que envolvem a intolerância religiosa, senão demonização das práticas locais e os sagrados (ronia Iran, ianda cabaz, Djambacus, Baloba, etc). Perante os desafios da intolerância religiosa em Guiné-Bissau, compreende-se o silenciamento do Estado, pois, os governantes são reféns das religiões coloniais e cúmplices da intolerância.

Por fim é preciso ter mente que, a geração dos que tombaram pela nossa independência tem sua continuidade na contemporaneidade, cujas ações visam a continuidade da salvaguarda dos valores cívicos e morais das sociedades africanas, de modo particular, Guiné-Bissau.

A ascensão dessa classe não se tardará por vir.

Em suma, nos chamam de diabos num mundo em que os dignos matam em nome da religião.

Nkanande Ka, mestrando em História Social na Universidade Federal do Ceará – Brasil.


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