segunda-feira, 4 de março de 2019

O CARNAVAL DA PARIDADE

MULHER GUINEENSE: sonhos, aspirações, expetativas… Esperanças que do trabalho conjunto resultasse o empoderamento das mulheres guineenses em agentes da construção da paz, da estabilidade e do desenvolvimento. Apostámos na luta comum contra a disparidade do género, que existe a todos os níveis da sociedade e instituições do Estado, em violação do espírito de igualdade supremamente firmado como alicerce da Nação, na senda dos objetivos traçados por Amílcar Cabral, líder precursor neste âmbito, para quem era fulcral «convencer as mulheres da nossa terra de que a sua libertação deve ser obra delas mesmas, pelo seu trabalho, … respeito próprio, personalidade e firmeza diante de tudo quanto possa ser contra a sua dignidade…». Em seguida, neste século XXI, seria preciso aproveitar a brecha e a oportunidade, para afirmar e FAZER VALER O NOSSO PAPEL, mesmo tendo em conta todas as limitações, no sentido de fazer evoluir e de renovar a sociedade.

Acredito, e já o afirmei publicamente, que as mulheres não deveriam precisar de quotas para se afirmarem, que a nossa competência deveria emergir por si própria, confiante no valor acrescentado de género. Contudo, reconheço, e perdoem-me se estou a lembrar-me da minha experiência pessoal, que muitas vezes não basta o mérito próprio para vencer os obstáculos seculares, para fazer face ao receio dos homens, muitas vezes inseguros e fortemente ciosos do seu poder, de ver uma mulher aceder a lugares de relevo, perante a qual se possam ver em situação de inferioridade hierárquica. Por isso, admito que às vezes, como neste caso, pode ser estratégico colocar o carro à frente dos bois. Foi um grande passo chegar às quotas, como coisa muito séria para que os partidos políticos cumprissem, na expectativa de ver surgir um grupo de mulheres, obreiras de uma renovação social com base numa fértil FEMEANDADI, que soubesse constituir-se num forte contrapoder aos vícios históricos de uma política de exacerbada MATCHUNDADI. Este desiderato foi unanimemente aplaudido, quando genericamente proposto: parecia que os homens não só respeitavam, mas sobretudo concordavam com as mulheres. Um sonho! Esperem para ver, avisaram-nos, no entanto, as/os mais céticas/os e atentas/os.


Conseguimos a Lei da Paridade, cujo Preâmbulo engrandece a importância de as mulheres serem colocadas na agenda dos partidos, ainda que, no seu âmbito, a paridade resulte apenas para os cargos eletivos à ANP (poder legislativo) e às autarquias locais (poder local, que passados quase trinta anos de estar previsto, ainda não existe), tendo ficado de fora o poder executivo e o poder judicial. Foi o que nos saiu! Sem dúvida uma iniciativa inovadora, no sentido de REFORÇAR O PAPEL DA MULHER no nosso parlamento, pois passaríamos a ser obrigatoriamente pelo menos uma em cada três. O que representava, na ANP, quase que quadruplicar o seu número. Pelo que a Lei estava em conformidade com o sonho da mulher guineense: dar um GRANDE SALTO na sociedade, através do órgão supremo legislativo.

Todavia, aquilo a que assistimos de facto foi, em primeiro lugar, ao desvirtuar da Lei: retirou-se-lhe a alma, a essência, o espírito. Apesar de aprovada na generalidade pelos deputados, foi depois adulterada, para que o dispositivo de eficácia, a alternância de sexo na composição das listas candidatas, fosse removido e, em sua substituição, se introduzisse o preceito de que as listas não podem ser constituídas apenas por candidaturas do mesmo sexo - o que não tem nada a ver! As mulheres podem assim ser colocadas no fundo das listas, em lugares não elegíveis, sem qualquer penalização. Uma cabala estruturada! Ou seja, à partida, a Lei aprovada ficou seriamente afetada, bem como os objetivos da paridade. Enfim, é o que temos: os partidos não são capazes de se entender; é preciso ir ao estrangeiro assinar acordos alienando a nossa soberania, mas não têm qualquer problema em juntar-se para subverter uma lei progressista, quando julgam afetados os seus bem entranhados interesses corporativos, sempre gravitando em torno de uma liderança machista não amenizada pela sensibilidade feminina.

Seguidamente, veio o golpe de misericórdia, ao desacreditarem por completo o processo, por incumprimento da Lei, mesmo quando considerada esta simplesmente na sua versão amputada. Enterrava-se assim a DECLARAÇÃO DE CANCHUNGO, esfumava-se todo o trabalho das organizações de mulheres e de organizações da sociedade civil para o empoderamento político das mulheres via ANP. Declaração que visava a aprovação de uma lei de quotas mínimas, abraçada por todas as instituições estatais, incluindo órgãos de soberania, e que defendia a premente necessidade da adoção de estratégias conducentes à mudança de mentalidades com vista a uma maior participação das mulheres na política e nas esferas de tomada de decisão. Primeiro desvirtuam a lei, depois desacreditam-na. Mais valia que tivessem honesta e consistentemente votado contra. Para quê votar leis que depois os próprios violam, mesmo nas suas interpretações mais incipientes e incaraterísticas? É um péssimo exemplo, um verdadeiro atentado ao Estado de Direito, por parte de quem maior obrigação tem de o fazer respeitar e acreditar!


Promoveram-se mesmo, imagine-se, eleições de base para candidatura nos círculos, num país onde a mulher atua sobretudo na informalidade produtiva e comercial, sustenta a imensa maioria dos agregados familiares, mas nem sequer pode aceder à propriedade da casa onde vive, ou da terra que maioritariamente cultiva. Os lugares na lista são para aqueles que têm capacidade para investir, regra geral aqueles que já exerceram cargos políticos e/ou se movem no sistema, historicamente os homens! Mais triste ainda é saber-se que houve mulheres que, contra todos os prognósticos, se saíram bem, conquistando as bases, tendo sido posteriormente preteridas por decisões superiores. Trabalhar as listas e floreá-las com algumas mulheres, foi bicho de sete cabeças, com esta hipocrisia. Eram cerca de uma em três, na quota adulterada, mas mesmo assim, incumpriu-se à primeira. O STJ devolveu e alertou para que se cumprisse com a paridade. Ainda assim, foi pior a emenda do que o soneto! Nenhum dos partidos cumpriu sequer com a interpretação avançada pelo STJ (quota a aplicar círculo por círculo, tanto aos efetivos como aos suplentes), ficando-se pela versão altamente redutora de pelo menos uma mulher, a qual obviamente, nem sequer em potência garante qualquer presença mínima, tal como os resultados eleitorais não deixarão infalivelmente de demonstrar.

No entanto, como se nada fosse, sem qualquer pudor, entraram confiantes em campanha eleitoral, na sociedade machista que se preza e resiste à mudança. Pois sabem que a maior das penalizações da Lei da Paridade, em país de impunidade, ficará tão simplesmente pendurada. PERDA DE BENEFÍCIOS FISCAIS? Um desses benefícios é o da isenção de direitos aduaneiros. Foi verificado o manifesto de carga de todo o material importado e exposto à vista de toda a gente, nesta campanha eleitoral? Duvido. Serão apresentadas as prestações de contas esclarecendo as origens e aplicações de fundos, para transparente publicação no Boletim Oficial? Seria novidade! Por onde andam as recentes preocupações com o branqueamento de capitais? Tudo não passa de um Carnaval! Aliás, não é difícil incumprir essa Lei, num país onde se banalizou a violação da própria Constituição da República, onde existe elevado índice de corrupção, descontrolo de contas públicas e desorganização do sistema fiscal. Pior: quem ganha o poder, imediatamente se auto-isenta de todas as obrigações, quanto mais de impostos. Por onde andará quem cuide do interesse público? Convenientemente de olhos vendados, de ouvidos entupidos e de boca calada, tal como, aliás, todos e todas nós, perante o SISTEMA? Quem queira ver, neste meu exercício, um lavar as mãos dessa responsabilidade por inércia, não andará longe da verdade. É de facto uma recusa em pactuar com este Carnaval de fingimentos. As manifestações de estudantes antes do início da campanha eleitoral (que podiam ter descambado para algo bem mais grave), foram um claro sinal de aviso para a totalidade da classe política.

Era suposto, com base na Lei da Paridade, alterar e renovar o sistema político e eleitoral do país e torná-lo mais sensível à desigualdade de género, mas somos infelizmente levadas/os a concluir que este processo foi uma verdadeira farsa. Pelo contrário, apenas servido para confirmá-lo pela negativa. A próxima legislatura, a décima, terá tudo, menos uma representação aceitável de mulheres, pois temos em lugares elegíveis (tomando as legislativas de 2014 por referência) apenas 3 (em 41) mulheres para o PRS e 13 (em 57) para o PAIGC. Ou seja, não podemos esperar ter mais de uma mulher em cada seis deputados, muito aquém daquilo que a Lei se propôs. No presente caso, em abono da verdade, e como responsável da Organização das Mulheres do PRS, tenho apenas a lamentar que tenha sido o meu Partido a ficar pior na fotografia, perdendo para o seu principal adversário tanto ao nível da visibilidade (quota de 3,4% em termos de cabeças de lista, com 2 em 29, contra 24,1% do PAIGC), como da elegibilidade (quota de 7,3% em termos de mulheres colocadas em lugares elegíveis, contra 22,8% do PAIGC). Ao nível global, olhando para as listas tanto de efetivos e como de suplentes, ambos os partidos apresentam valores semelhantes, ficando-se por uns manifestamente insuficientes 27%, quando comparados aos 36% exigidos na Lei.

Não há dúvidas de que perdemos a oportunidade de implementar uma estratégia clara para uma LEGISLATURA DE RENOVAÇÃO, através da inclusão da mulher, alterando dessa forma o MODO DE FAZER POLÍTICA na Guiné-Bissau. A X Legislatura, para além de outros senãos, que não são difíceis de adivinhar, arranca manca. Continuaremos a coxear do lado feminino. Não gostaria de terminar este apontamento num tom negativo e pessimista. Por isso, deixo um desafio a todas as que recentemente tentaram dar cartas por esta Lei (Militantes partidárias, Fórum das Mulheres, Movimento Mulheres Mais, PPM, UNIOGBIS, ONU Mulheres, Candidatas e lutadoras Assumidas e Anónimas) para que façam a leitura desta ingrata realidade e que retirem as suas conclusões. Para mim, não há dúvidas que fomos enganadas e que se justifica uma tomada de posição, exigindo das direções partidárias que se arranjem formas de compensar as mulheres pelas ESPERANÇAS TRAÍDAS. Nomeadamente ao nível da composição do Governo a emanar destas eleições. É antes da sua formação que devemos sensibilizar para que se consiga um balanceamento de género consonante com as aspirações não só das mulheres, mas de todo um povo, cansado das fórmulas e esquemas políticos que conduziram o país ao aparente beco sem saída em que se encontra. CONTINUEMOS A ACREDITAR. Não podemos desmoralizar. Ainda não é tempo de lavar os remos; se não nos deixam usá-los para remar, usemo-los para desencalhar a canoa!


Boa Sorte para as Candidatas.





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