segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Porta-voz do governo guineense: "herdamos um país completamente destruído"

A Guiné Bissau recorda hoje o 48° aniversário da sua independência. Um marco simbólico cuja celebração foi adiada para o Dia das Forças Armadas no próximo dia 16 de Novembro por decisão do Presidente da República actualmente ausente do país, o executivo destacando igualmente motivos sanitários, uma vez que o país tal como o resto do mundo continua a braços com a pandemia.

Em entrevista à RFI, Fernando Vaz, porta-voz do governo, abordou as actuais problemáticas do país, nomeadamente o contexto social, os Direitos Humanos, a economia mas igualmente a luta desigual contra a covid-19 que o país continua a travar. Este foi o primeiro aspecto evocado com Fernando Vaz.

RFI
Como tem sido a luta contra a covid-19 na Guiné-Bissau?

Fernando Vaz:

É um problema com o qual nós vivemos e com o qual vamos ter de aprender a viver. Nós tivemos um pico de taxa de positividade no último mês, mês e meio, em que foi decretado o Estado de pandemia. Os números têm decrescido, não quer dizer que esteja controlado. Está mais controlado. Há uma estratégia para incrementar mais e massificar a vacinação, uma vez que temos disponibilidade para isso. Neste momento está a ser feita a formação dos recursos humanos para o efeito e para a aplicabilidade dessa estratégia que irá atingir cerca de 75 a 80% da população num espaço muito curto de tempo.

RFI:
Tem havido, como em muitas partes do mundo, dificuldades em ter acesso às vacinas. Qual é a situação neste momento na Guiné-Bissau?

Fernando Vaz:

Como sabe, a partilha das vacinas com os países menos desenvolvidos não tem sido equitativa, embora hajam esforços. Nos agradecemos ao mundo e aos países que nos têm dado a mão. Temos neste momento um stock suficiente para arrancar com esta campanha de massificação da vacinação, coisa que iremos fazer e que já está em curso. Temos cerca de 650 mil vacinas neste momento no país para arrancarmos com a campanha e estamos à espera da chegada de várias outras. Foi rubricado um acordo com a Eslovénia para distribuir e contribuir com mais vacinas para a Guiné-Bissau.

RFI:
A seu ver, que aspectos poderiam ser melhorados tanto do lado do governo, como eventualmente dos intervenientes e da própria população na luta contra pandemia na Guiné-Bissau?

Fernando Vaz:

Primeiro é a questão da consciencialização porque esta doença, de facto, não escolhe alvos, a valorização desta doença, campanhas muito fortes neste sentido, porque há um certo cepticismo proveniente da variadíssima informação que se recebe, isto tem trazido alguns problemas perante os quais é preciso uma campanha muito forte para que todo o mundo se vacine e encare esta doença como uma doença mortífera. Para mim este é o principal problema. O outro, são os recursos humanos que devem ser adequados rapidamente e as estruturas. Neste momento o governo utiliza outras estruturas do departamento de Estado para serem adequadas a esta grande campanha de vacinação que iremos iniciar o mais rapidamente possível. Penso que num prazo de 2 ou 3 meses, nós teremos uma taxa de vacinados considerável.

RFI:
Como no resto do mundo, a pandemia teve também o seu impacto económico. Como se expressou esse impacto na Guiné-Bissau?

Fernando Vaz:

Nos três sectores fundamentais, temo um impacto, aliás as taxas de crescimento foram quase todas negativas, embora no sector primário tenha sido melhor eventualmente porque as pessoas, com o isolamento e a questão da obrigatoriedade de permanecerem com o confinamento nas suas residências, houve uma maior dedicação aos sectores produtivos do sector primário. O nosso PIB , já "per se" muito pequeno foi grandemente afectado, não houve dinheiro para fazer manutenção às infra-estruturas completamente destruídas, estradas, pontes, aeroportos, quase tudo... Os transportes que utilizam essas infra-estruturas rodoviárias destruídas, naturalmente também foram afectados. Transversalmente, a nossa economia também foi, não diria dizimada, mas completamente afectada. Estamos num processo de reerguer-nos e contamos com o contributo dos nossos parceiros tanto bilaterais como multilaterais.

RFI:

Entretanto e paralelamente, a Guiné-Bissau tem sido também palco nos últimos meses de uma crise social que se traduziu nomeadamente por movimentos de greve, a greve do sector da saúde, mas também dos funcionários públicos que reclamam aumentos salariais. Como é que se pode estancar essa crise segundo o governo?

Fernando Vaz:

Como sabe, este governo não deve um mês de salário. Este governo paga atempadamente. Aliás, este mês em que estou a falar consigo, o mês de Setembro já foi pago a todos os funcionários públicos. Não tem nenhum salário em dívida. Este governo herdou problemas estruturais, dívidas que passaram de governos anteriores para este e que têm estado a ser geridos. Estamos a enfrentar greves. Como sabe, os nossos sindicatos -basicamente temos uma central sindical- que emergem de um regime de partido único. Os sindicatos são altamente politizados, partidarizados, porque os nossos líderes sindicais no fundo estão nos sindicatos para fazer política, porque razões de fundo são poucas. Existem mas imagine o que é que acontece em relação ao último boicote na área da saúde. Faz-se um boicote, assumido pelo próprio sindicato, mas isto não é greve. Quando a lei exige a existência de um caderno reivindicativo prévio dirigido ao ministério da saúde, de acordo com a lei da greve... Isto não foi respeitado. O próprio sindicato incentiva o abandono total dos funcionários dos seus postos, nomeadamente nos hospitais e, em algumas situações, o encerramento dos centros de saúde... Há persuasão dos técnicos de saúde para abandonarem os seus postos até que a situação seja resolvida pelo governo, tudo isto à margem da lei. Há tudo menos um estado de legalidade. O que há aqui é uma subversão no fundo. Mas mesmo assim, o governo mostrou a sua abertura em dialogar por forma a ultrapassarmos esta situação.

RFI:
De que modo pretendem precisamente ultrapassar esta situação?

Fernando Vaz:

Em relação ao sector da saúde, o que reclamam são 4 pontos: a carreira dos médicos e das parteiras. O documento já esteve em discussão no conselho de ministros e foi devolvido para algumas correcções. Reclamam também a efectivação dos técnicos dos ingressos de 2015, documentos que também estão em tramitação na função pública com alguma morosidade e acerca do qual o governo já deu instruções para a celeridade deste processo. O pagamento de subsídios de vela de nove meses e -aqui- o que nos divide é que o governo tem pago o subsídio a quem efectivamente trabalha. Os que não aparecem, não trabalham, o governo não paga. A reintegração que é o último ponto que eles reclamam, a maior parte desses funcionários para a reintegração, não são funcionários efectivos, não têm vínculo com o Estado e muitos deles não exercem a actividade. Mas são questões que postas na mesa das negociações, nós iremos negociar e com certeza nós iremos chegar a um acordo com os sindicalistas.

RFI:

Há pouco, estava a falar do facto de os sindicatos a seu ver estarem ao serviço de ideias políticas que marcam oposição ao actual governo, como é possível instaurar um clima político mais pacífico na Guiné-Bissau? Acha que é possível a prazo instaurar um clima mais sereno entre os partidos que estão no governo e o PAIGC?

Fernando Vaz:

Acho que sim. Acho que a política é isto mesmo. O PAIGC faz o seu papel de oposição. Escolheu esta estratégia com a qual nós não concordamos, mas cada um escolhe a sua estratégia, tem a sua independência. Esta é a estratégia do PAIGC, mas isto não obsta que haja diálogo entre o PAIGC e o governo. Aliás, quando é necessário, tem havido e penso que continuará e o objectivo de ambos é procurar a paz para este país e para o seu povo.

RFI:

Contudo nos últimos meses, tem havido denúncias de alguns abusos, algumas situações anómalas de personalidades políticas ou da sociedade civil que foram perseguidas ou impedidas de sair do país. Qual é a visão do governo sobre esta questão em particular?

Fernando Vaz:

O governo, como sabe, não substitui o poder judicial. Se existe relativamente à questão que referiru de impedir alguém de sair do país, o governo não tem nada a ver com isso. Isso é o Ministério Público. Existindo, deve ter as suas razões com certeza absoluta. O Ministério Público não age sem factos, deverá ter as suas razões neste sentido e como o princípio de separação dos poderes diz que essa separação deve ser efectiva, nós não iremos pronunciar-nos. Penso que a essa questão deve responder quem de direito. Aquilo que eu gostaria de salientar é que a imagem segundo a qual a Guiné-Bissau é um país de sucessivas instabilidades, essa imagem deverá desaparecer, porque a Guiné vive em paz, vive em estabilidade. Aquilo que acontece, as guerras sindicais e estas divergências todas, isto traduz que existe uma democracia efectiva que respira, que pulsa na Guiné-Bissau.

RFI:

Há quem, pelo contrário, ache que há uma viragem autoritária no país.

Fernando Vaz:

Entendo. Num quadro democrático, não queremos que as pessoas estejam 100% de acordo connosco. Cada um tem a sua opinião e, como democratas, aceitamos que as pessoas pensem dessa maneira. Mas o povo é que depois dirá. O povo, aquilo que disse nas urnas, votou nas nossas teses e disse 'os senhores é que são a maioria' e o povo expressou-se maioritariamente. Nós acreditamos naquilo que o povo traduz nas urnas.

RFI:

Relativamente à actualidade regional e à Guiné Conacri que sofreu recentemente um golpe de Estado, quais são os comentários do governo guineense?

Fernando Vaz:

Defendemos a alternância democrática por via pacífica, por via das eleições. Nunca colaboramos com golpes de Estado. Condenamos, como a CEDEAO condena, o golpe de Estado ocorrido na Guiné Conacri. A nossa posição é a posição da CEDEAO. O nosso presidente tem participado activamente para intermediar esta situação. A sua deslocação a Nova Iorque enquadra-se em parte nestas preocupações regionais para se encontrar uma solução.

RFI:
Há algumas perspectivas à vista?

Fernando Vaz:

Não tenho até hoje nenhuma informação sobre isso. O Presidente ainda continua em Nova Iorque, mas já houve um prazo estabelecido de 6 meses para a realização de eleições e a libertação do ex-presidente. Julgo que estas coisas não acontecem de um dia para o outro. Com certeza iremos encontrar uma solução.

RFI:

Durante a Assembleia Geral da ONU em que o Presidente Umaro Sissoco Embalo se expressou, ele falou nomeadamente nos objectivos do executivo guineense de consolidação da paz e de oferecer melhores condições de vida à população guineense. Quais são os vossos planos a prazo, depois da pandemia, depois de se controlar um pouco melhor a situação?

Fernando Vaz:

Nós temos um plano nacional de desenvolvimento que foi aprovado pela Assembleia Nacional, pela maioria do povo. Esse plano está consignado nesse plano nacional, mas aquilo que é prioritário é a retoma de toda a actividade económica que foi completamente afectada por esta pandemia, quase todos os sectores, prioritariamente os sectores que nós consideramos essenciais e vitais para a economia guineense. Como sabe, nós dependemos basicamente da exportação da castanha de caju. Este ano, apesar da crise, batemos o Record de toda a exportação na história da Guiné-Bissau. Vamos exportar cerca de 220 mil toneladas. Por aí, não nos podemos queixar, antes pelo contrário. Mas em relação às infra-estruturas, o país foi-nos entregue completamente destruído. É preciso infra-estruturar o país transversalmente, em todos os sectores, saúde, educação, economia, turismo, transportes, todos os sectores. Isso será o programa de emergência e programa-base do governo.

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