terça-feira, 28 de junho de 2016

ARISTIDES PEREIRA : UM CONTURBADO DEPOIMENTO - 08-06-2016



[i] Aristides Pereira, Minha vida, nossa história, de José Vicente Lopes, Edições Spleen, 2012 (2a edição)


autor do Artigo é Norberto Carvalho ( Kote)

Commentaire posté par "O Cote"(Guiné-Bissau) le 29-06-2016
Caros amigos, este texto foi escrito por mim (Norberto Tavares de Carvalho)e é curioso que o meu nome não apareça em nenhuma parte do artigo. Agradeço pois que redimem isto, indicando o meu nome como autor do artigo. Aguardo e desejos de continuação de um bom jornalismo.

No seu Minha vida, nossa história[i], o ex-Presidente da República de Cabo-Verde confirma o perfil de alguém que à priori nada predestinava a endossar os altos cargos que finalmente  acabou por ocupar. Secretário-Geral do PAIGC por obrigação, Presidente da República à força, sem a ambição que engloba necessariamente tais desafios, o homem foi arrastado pelos ventos hesitando sempre entre os seus mais profundos desejos e o que a história o reservou.

Puxado pela língua, na mesa do jornalista cabo-verdiano José Vicente Lopes (JVL), Aristides revela, de maneira aparentemente inócua,  um montão de atributos: o caso de dirigentes do PAIGC que participaram na orquestração do complot onde Amílcar Cabral perdeu a vida e que depois, para se cobrirem, liquidaram os inocentes que eles próprios tinham mobilizado ; da grave quebra de confiança que se seguiu entre guineenses e cabo-verdianos ; dos constantes erros de Nino Vieira e do Osvaldo ; da conduta refractária de Luís Cabral de nunca o ter reconhecido no seu posto hierárquico ; da frustração e desespero de Chico Té ; do projeto da unidade  Guiné e Cabo-Verde, escavado por dentro ;  e do golpe de Estado de 1980 que acabou por esmagar o Partido de Cabral.

No tocante à Guiné, eis alguns extractos da entrevista (o melhor seria ler esta fantástica obra de José Vicente Lopes).

DA FUNDAÇÃO » DO PAIGC  (p. 95).
… a data de 19 de Setembro de 1956 foi escolhida por nós – Amílcar, eu e o Luís -,  já em Conakry, para apaziguar o Senghor, que nos via com muita desconfiança. Achava que nós éramos  um ramo guineense do PAI que havia no Senegal, criado em 1957;
(…) também decidimos que o ano da nossa fundação tinha sido 1956, por coincidir com uma das passagens do Amílcar por Bissau para ver a mãe. Nessa tal reunião, (…) apenas estiveram presentes quatro pessoas e não seis : o Amílcar, o Fortes, o Luís e eu.

SG ADJUNTO DO PAIGC (p. 147-148)
Mas também estive na China em 1964. Até foi nessa altura que apareceu o cargo de secretário-geral adjunto porque os chineses queriam, à toda a força, que Cabral fosse lá. Mas eu não sei porquê, havia qualquer coisa e ele não podia. Como os chineses insistiam muito, ele decidiu : « Nâo posso ir, mas pode ir um próximo meu ». Mas havia uma questão : os chineses são muito meticulosos nestas coisas. « que nível é que ele tem na nomenklatura ? », quiseram saber. E eu só podioa ir como membro do Bureau Político. (…) Portanto é nessa altura que aparece o lugar de secretário-geral adjunto. (…) « … põe lá que és o secretário-geral adjunto e pronto. »

A MORTE DE AMÍLCAR CABRAL - O dedo de Spínola (p.157-164)
JVL : « (…) a conspiração ganha tal dimensão sem que os cabo-verdianos se tivessem apercebido daquilo » (p. 158).
… havia uma patrícia nossa que nessa altura vivia maritalmente com o Cruz Pinto, e o Cruz Pinto também «complotou» - tinha grandes ligações com o Momo Turé e os outros implicados. (…) Pelo seu comportamento, estimulava aquilo e as reuniões dele com o Momo eram na casa dele, Cruz Pinto.

JVL : « O Oramas diz que ficou com a impressão de ter visto o Osvaldo nos matagais ou atrás de umas árvores » (p.177)
Isso, não nego, é possível. O que recuso é que o Osvaldo estivesse a comandar fosse o que fosse.  Já não tinha essa faculdade. (…) O Osvaldo estava com o Otto. O Otto, diante do que aconteceu, procurou pôr-se à distância, mas ele estava ligado ao Osvaldo. São coisas que nunca mais foram esclarecidas. Houve a barafunda toda, fui para Moscovo, houve « julgamentos », em que se procurou  liquidar toda a gente que pudesse falar e ficou tudo assim. (…)

Quer o Nino, quer o Osvaldo – eu não disse que eles estivessem implicados em matar – sabiam do que se estava a passar. Sabiam do descontentamento que existia em relação a uma série de assuntos, que, do ponto de vista deles, estava errado. Moviam-se no sentido de levar Cabral a ceder perante eles.  Essa gente –o Inocêncio Kani e outros-, não se mexeria sem falar primeiro com o Osvaldo, …. O Kani teve uma convivência forte com o Osvaldo durante anos na Frente Norte, depois esteve com o Nino também no Sul. (…) De maneira que gente como Nino, Osvaldo e outros sabiam do problema, chegado o momento, o que fizeram foi não se envolver directamente. (…) Acontecendo, poderiam sempre alegar a sua inocência, e se possível retirar proveito disso.

(…) Havia gente, também, interessada em ceifar uns tantos pra não falarem. Como disse, o Osvaldo, o Nino… sabiam do que se estava a tramar. O próprio Chico também sabia, tanto é assim que ele tinha rebates de consciência. Outro que sabia é o Carlos Correia, que se deu por doido naquela altura. Isso devia dar-lhes um certo peso na consciência porque eles sabiam da conspiração e nada fizeram para travá-la (p. 181).

… o Fidélis foi o homem que dirigiu o inquérito, apresentou o relatório das investigações, mas um relatório fraquíssimo, em que não se explica quase nada. (…)  … ninguém estava verdadeiramente interessado no que realmente aconteceu. O grau de implicação dos guineenses era grande (p. 182).

(…) Inslusive, o Víctor Saúde Maria, que fez parte do inquérito, também sabia do que se estava a tramar, mas ele estava interessado em « cortar » uns tantos que sabiam que ele sabia. Foi nessa base que se liquidou  muita gente logo a seguir ao 20 de janeiro, que nem havia razão para liquidar. (…) Os homens já estavam todos mortos, não podiam falar… (p. 183).

O Vítor Saúde Maria deve ter morrido com este peso na consciência. Porque houve gente que ele mesmo mobilizou nesse processo e que ele mesmo condenou à morte. (p. 177)

JVL :… ao fim e ao cabo não se podia desenterrar muita coisa… (p. 183)
… senão a coisa desconjuntava-se. Se tivéssemos que ir para as denúncias, isso seria o fim de tudo. (…) De todo o modo, a cofiança entre nós, guineenses e caboverdianos, nunca mais foi a mesma.

EN DEFESA DE SEKOU TURÉ  (p.160)
AP : (…) Eu não posso afirmar de forma categórica, que ele não estivesse. No entanto, dentro duma certa lógica, e dos próprios interesses do Sékou, não vejo porque razão haveria ele de estar interessado que Cabral desaparecesse. Na altura em que o Amílcar foi morto, a imagem do Sékou, estava em franco declínio e um dos elementos que ainda lhe dava algum prestígio era ter, como retaguarda segura, um movimento de libertação, considerado brilhante em África, o PAIGC. Portanto, não estou a ver o Sékou a ser tão estúpido para acabar com essa réstia de credulidade que ainda conservava. Aliás, é justamente nessa altura que notei nele muto mais atenção a nós. Viu que éramos uma mais-valia para ele. Graças a nós podia continuar a arvorar-se em defensor da causa africana, projetando a sua imagem em todo o continente.

A ANGUSTIA DE SUBSTITUIR CABRAL (p. 175-176)
Eu via os colegas da direcção do partido – o Luís Cabral, o Chico Mendes, o Osvaldo Vieira, o Nino, o Pires, os principais membros do CEL. Eu via que difícilmente qualquer um deles iria reunir consenso, sobretuto, da parte dos guineenses. Naquela altura tínhamos que ter em conta os guineenses, sobretudo os combatentes, que estavam todos revoltados com o assassinato de Cabral,…

Da parte cabo-verdiana, principalmente aqueles que estavam em Conakry e que sofreram vexames, humilhações etc, … eu também não via como é que eles iriam suportar bem um guineense como secretário-geral.

Porque eu, desde o início – sempre assumi a posição que eu era cabo-verdiano. (…) mostrando sempre que eu não estava interessado no poder, principalmente na Guiné. Portanto, neste aspecto, os guineenses estavam claros a meu respeito. (…) De maneira que eu via a possibilidade, de facto, de os guineenses derem mais assentimento a mim do que ao Luís, por exemplo, para liderar o PAIGC. Ao contrário de mim, o Luís sempre foi considerado guineense, porque nasceu na Guiné e apresentava-se como sendo cem por cento guineense. Mas, é claro, há a questão da cor, que contradiz tudo, e o guineense é sensível a isso ainda hoje.

Além disso, eu tinha uma vantagem suplementar : eu estava em permanência ligado ao Amílcar.

JVL : Mas o grupo que o Fidélis tentou mobilizar ? (p.178)
O grupo de Fidélis… só se manifesta no congresso… mas ele não fez campanha…
Chegou a circular antes do congresso, em surdina, essa conversa :
« É preciso cuidado, não vamos cair na asneira de escolher um cabo-verdiano, porque vimos que não dá certo, portanto vamos colocar um guineense, não importa quem, mesmo que haja cabo-verdianos capazes por trás para suportá-lo. »

E tanto assim que foi ele (o Fidélis) que apresentou a candidatura do Nino no congresso e que não passou. Até porque o Nino na altura não queria saber de coisa nenhuma.
JVL : Em Madina do Boé, é eleita uma nova direcção do PAIGC, tendo-o na frente do Luís Cabral agora como o seu adjunto. Tendo havido todo aquele problema com o Amílcar, voltava-se, ao fim e ao cabo, a repetir o mesmo esquema.  O senhor como cabo-verdiano, o Luís um guineense que não era assumido por todos. Não era repetir o erro ?(p. 186)
(…) A questão é a seguinte : havia uma certa hierarquia antiga entre nós e alterá-la não era fácil, até porque se o Luís não ficasse em segundo lugar quem ficaria ?

JVL : Um guineense assumido.
Mas quem ?
JVL : O Chico Té…
Não, o próprio Chico não ía lá.
JVL : O Nino …
Também não. Nenhum deles.
JVL : O Fidélis, muito menos ?
Muito menos.

ARISTIDES RECUSA SER PR DA GUINE (p. 186)
JVL : (…) Chegou-se a colocar a questão de ser o senhor o chefe de Estado da Guiné ?
… em conversa com o Luís, ele pôs-me a questão. Apenas nós dois. E eu respondi-lhe : « Nem pensar ! » « Como é que eu agora vou ser presidente da Guiné ?! O que estou a fazer é por Cabo-Verde ! » Fui claro. (…) Diante da minha resposta, ele disse-me : « Se tu não avanças, então tenho eu de avançar ». Isto porque nós dois éramos fundadores do PAIGC.

INDEPENDÊNCIA DE CABO-VERDE (p. 223)
AP : O consenso a que chegamos é que havia que preservar o cargo de SG do partido. Havia a conveniência que o partido, para que continuasse a ter a força que tinha, a pessoa que estivesse a dirigi-lo pudesse de facto exercer influência nos dois países, era preciso não estar à frente nem num nem noutro Estado, embora residisse num deles.
A reviravolta ficou a dever-se a uma razão muito simples. (…) O Luís soube da posição que ia ser levada de Cabo-Verde, isto é, eu ficar SG do partido, o Pires o PR de Cabo-Verde, e depois se iria ver quem seria o primeiro-ministro e tudo o resto. No entanto, o Luís não aceitava isso, sem eu saber. Ele nunca me disse abertamente, que era contra. Às tantas, quando a decisão estava à beira de ser tomada, eu recebi mensagem dele por interposta pessoa.. (…)
… o Araújo…
« Deves lembrar-te, vocês é que são os fundadores do partido, ele está como presidente da Guinié e se o Pires aparece como presidente de Cabo-Verde, automáticamente, o Luís torna-se colega do Pires. Isso não é razoável. Pelo contrário, o Luís acha que tu é que deves ser o primeiro presidente de Cabo-Verde. »
(…) Houve mais gente que me veio falar…Não, não foi o Nino… O Chico Té…
Sim, ele (o Chico Té) foi um dos que foi falar comigo. « Camarada Aristides, veja bem… Vocês é que são os fundadores que estão aí. Está também o Abílio, mas ele sabemos qual é a situação dele neste momento. De maneira que a única solução é você aceitar que fique como presidente de Cabo-Verde e isso não lhe impede de ser o secretátio-geral. »

E eu, também levado por uma certa relutância em, sendo cabo-verdiano, parecer que não queria protagonismo em Cabo-Verde, preferindo em vez disso ficar na Guiné, país na altura com muito mais peso internacional que Cabo-Verde, possívelmente, tomei esta posição : « Vou deixar isso andar. Vamos ao CSL[ii], vem o projeto e decide-se pelo melhor ». Mas é claro, no CSL havia uma esmagadora maioria de guineenses, que foram todos mobilizados pelo Luís. E o resultado só podia ser o que foi.

Para mim o melhor era não estar nem numa coisa nem noutra. Ou seja nem SG nem PR. Só que aparece a questâo e eu acabei por ter que mudar de ideia.

A DESGRAÇA DO PAIGC – O princípio do fim  (p. 259-260)
Eu ia périódicamente à Guiné…era nessas reuniões que normalmente havia oportunidade de estar mais perto das coisas e das pessoas… Nessa altura eu tinha não só os relatórios escritos , mas também os relatórios directos que eu podia pedir aos diversos responsáveis, para ter uma ideia de como a situação andava. Mas, na Guiné,… o Luís Cabral sempre teve uma posição independente em relação ao secretário-geral. Ele era o presidente da Guiné-Bissau e dava-me a entender que o SG não tinha nada que se meter pelo meio. Procurou sempre demonstrar isso. (…)
De maneira que, às tantas, passei também a me marimbar, tenho de o admitir. (p.259)
De todo o modo, em relação à Guiné, a minha única esperança era, na altura das reuniões binacionais, que a malta guineense falasse e se procurasse, em conjunto, o remédio para o que estava mal. (…) Mas justamente esse era o mal dos guineenses : … podiam ir contar-me tudo, mas chegávamos a uma reunião e ficavam calados, mesmo que eu dissesse : « Você tem que contar as coisas que me disse em privado ».
Ainda por cima, … não havia a cooperação do Luís.

JVL : Havia uma paz podre, então no PAIGC ?

Com certeza. Aliás, isso dá-se em quase todos os partidos únicos, quando a coisa se prolonga por muito tempo…. como por exemplo neste caso, é o fim.

JVL : Isso prova… que o PAIGC estava armadilhado pela sua própria história.
Com certeza. Mas isso poderia ser ultrapassado se o Luís tivesse uma outra atitude, mais aberta e colaborante comigo.

A FRUSTRAÇÃO DE CHICO TE… (p.267-268)
Por exemplo, na altura da formaçâo do primeiro governo da Guiné – embora nessa altura, (…) o Nino não tivesse grandes ambições – o Chico foi escolhido pelo Luís paran comissário-prinicipal. Em vez de fazer uma consulta ampla, a nível dos primeiros responsáveis guineenses, sobre quem devia ficar à frente do governo, o Luís resolveu sózinho o assunto e perverteu, já aí, a situação de quem era realmente o chefe de governo. Passou ele a ser o chefe do governo e o Chico nada. (…) O Chico era um fulano sóbrio, esclarecido, eu tive sempre melhor impressão dele. Às tantas, ele passou a sentir-se frustrado.
O Chico, que era também um indivíduo que tinha sido levado um bocado pela bebida com o Osvaldo…, só que ao contrário do Osvaldo, o Chico tinha a tendência de pôr a bebida de parte e fazer a sua vida como deve ser. Era um indivíduo extremamente estudioso. O divertimento dele era ler. O Chico, … a partir duma dada altura, passa a beber, mas beber, beber, para cair.

JVL : Antes ou depois da independência ?
Depois da independência. Porquê ? A frustração que ele tinha. Aliás, é nessa altura que o Luís surgiu com essa tirada, quando confrontado com a questão de o Chico  ser o comissário-principal e, portanto, ele é que tinha que ser o  chefe do governo : « Não, não, isso é como os ministros ; ele é o primeiro dos ministros ». Portanto, «  é o primeiro dos ministros mas sem ser primeiro-ministro ». O Chico, talvez pour uma questão de feitio, parecia não querer contestar isso, mas sofria e bebia.

NINO VIEIRA, COMISSARIO-PRINCIPAL (p. 271)
Em relação ao Nino, procurei sempre tirar partido do relacionamento que estableleci com ele quando trabalhamos juntos na Frente Sul. Mas, depois que passa a comissário-principal, ele retraiu-se, evitava encontratr-se comigo. Eu só sabia dele por terceiras pessoas. (…) Quando ía a Bissau… via-o à chegada no aeroporto… Se eu o mandasse chamar, difícilmente aparecia.

Eu era dos dirigentes com quem o Nino se abria um pouco mais. Eu sabia das suas limitações, por isso sempre procurei incutir nele que era preciso aumentar o seu nível de instrução e ter mais conhecimentos para que aquilo que a Guiné ainda esperava dele. (…) De facto ele arranjou explicadores. Mas as preocupações dele eram outras.

Mal chegamos, dos primeiros problemas que tivemos foi a questão das casas. Por exemplo. O Juvêncio Gomes, que nós tínhamos mandado à frente, trabalhou com Carlos Fabião. O Fabião arranjou-lhe uma casa, que era a antiga casa do presidente da Câmara Municipal de Bissau. Chegando a Bissau, das primeiras coisas que o Nino reclamou foi a casa do Juvêncio. (…) O Nino pôs o problema de tal forma, tanto pressionou, que o Luís teve de ceder. Desalojou o Juvêncio, mandando-o para outro sítio, para o Nino ir para lá.
O grande mal de Nino, sempre, foi a acumulação de erros e erros em relação àquilo que ele já estava prevenido. (…) O José Sanhá estava preso e tinha uma moça, (…). Afinal, o Nino já tomara conta da moça do Sanhá. Cabral quase ia caindo de costas. « Mas como é possível ? »(p. 266)

Por causa da sua conduta, o Nino estava sempre a receber observações por parte de Cabral e atribuía isso ao Luís, quando, na maior parte das vezes, nem era isso. Era por causa da póípria conduta dele.

Muitas vezes, a nível da cúpula, apresentavam-se problemas que o que apetecia fazer era mudar tudo. Houve situações em que quer o Nino quer o Osvaldo, principalmente, pelas coisas que fizeram, era para serem expulsos ou então deixarem de pertencer ao nível de responsabilidade que tinham.

O Nino sempre persistiu nessa via. Aliás, até depois, como chefe de Estado, ele fez coisas incríveis e o resultado só podia ser o que acabou por ser.

Eu sabia que o Luís estava a governar à vontadae porque o Nino não ligava para as suas responsabilidades. (…) Fazia de conta que não era nada com ele.

JVL : Apenas tirava benefícios do cargo.
Com certeza. E depois, com o golpe, veio pôr os problemas do lado exactamente contrário.

GOLPE DE ESTADO DE NINO VIEIRA (p.265)
A minha primeira impressão é que estava a acontecer aquilo que eu já tinha previsto. E havia também a maneira como as coisas estavam a ser conduzidas. (…) Sendo o Nino a dar o golpe, parti do princípio que era uma revanche dele em relação ao Luís. A questão entre eles não começa depois da independência mas muito antes. (…).

Aquilo era uma situação terrível, principalmente para o Luís que tinha de gerir o problema, sabendo que nem todos aceitavam a autoridade dele, a começar pelo Nino. Só se relatavam os desatinos que o Nino cometia em relação a mulheres e outras coisas do género.

Decidiu-se atribuir patentes altas a uma série de gente – Úmaro e outros – que tinham trabalhado sempre debaixo das ordens do Nino.
Houve a cerimónia, no interior da Guiné, em que ele chorou até, mas não foi por causa do Pires. O problema dele era o Tchutcho, o Úmaru… O Nino não admitia que o Úmaro tivesse a mesma patente que ele naquela altura, pelo menos. (…)

A situação chegou a um ponto em que toda a gente dizia que « o melhor é ver se o Nino vai estudar », e ele próprio, às tantas, convenceu-se disso também, felizmente. (…) Para ser oficial superior, ele tinha que estudar, e é assim que ele foi estudar em Cuba.
JVL : O certo é que depois do golpe, (…) O Nino disse que o mandaram estudar a Cuba quase como um castigo ou desterro.
Isso são conversas.

A minha esperança fixava-se mais na possibilidade de eu falar directamente com o Nino e propus-lhe isso através do Silvino. Ficou assente que ele viria ao Sal, mas depois ele nega-se a vir. (p. 272)

JVL : Algum dia chegou a sentar-se a sós com o Nino para discutirem esses problemas todos ? (p.284)
Ele fugiu sempre a isso. Mesmo em Maputo tentou-se avançar para essa via, mas ele pôs-se a repetir as mesmas coisas que tinham sido ditas durante o golpe. (…) Ele apenas dizia que havia uma situação que poderia dar em guerra civil, Luís estava a arranjar o seu grupo… Eu disse-lhe : « Tínhamos os orgãos do partido, onde podias denunciar isso. Por que não o fizeste ? » E ele : Eu já sabia que se o fizesse eu  seria abafado. »

UNIDADE ADIADA (p. 280-282)
… a unidade era um processo longo, e que antes de falar na unidade política tinha de haver interesses, principalmente do ponto de vista económico, de mentalidades etc., e foi o que procurámos fazer.
Mas é preciso verificar que as iniciativas nesse sentido foram todas de Cabo-Verde. Da parte da Guiné nunca surgiu uma palha. Mas tudo o que fazíamos era mal interpretado. Por exemplo, quando a gente procurou fazer uma companhia mista de navegação marítima (Naguicave) e outras coisas mais, partiu-se do princípio que, sendo mais pobre, Cabo-Verde estava a procurar o encosto na Guiné, para subir. Todas as iniciativas foram nossas, mesmo o Conselho da Unidade, que se devia reunir, discutir as coisas, etc.
Mantinha-se no espírito dos dirigentes guineenses de que a luta tinha sido feito lá, a maior parte dos combatentes eram guineenses, portanto, tinham de ter uma certa preponderância, que nisso Cabo-Verde era a cauda. (…)
Por exemplo, estando a Guiné independente, evidentemente que havia responsáveis nossos que viajavam com passaporte diplomático guineense mas, com a independência de Cabo-Verde, esses passaportes foram postos de parte e emitimos os nossos. Os guineenses zangaram-se. (…) Com a criação da nossa moeda estranharam o facto dela continuar a chamar-se escudo em vez de peso como era na Guiné. E outras coisas mais que, para nós eram normais, para eles eram incomodativas.

Tudo que implicasse a unidade os guineenses diziam « sim senhor, sim senhor », mas não passava disso. »

Hoje, quando todos os países procuram unir-se, na Europa, na América e na África, vê-se melhor que, afinal, a unidade entre Cabo-Verde e Guiné não era nenhum absurdo.

MAPUTO : REECONTRO COM NINO (p. 283)
Quando o Samora apareceu com o seu gesto (…) no nosso encontro em Maputo, você não imagina as barbaridades que não ouvi do Nino. O que ele disse a meu respeito era de um inimigo figadal.

Ele classificou-me de tudo, traidor, que confiou em mim e que eu lhe dei as costas a favor do cabo-verdiano Luís Cabral, enfim aquela coisa de sempre contra os cabo-verdianos. Samora ficou a olhar atónito para nós com o que estava a ouvir, como a não querer acreditar.

COMO EGAS MONIZ (p. 275)
JVL :… há quem ache que se tivesse havido uma liderança forte sua, tanto em Cabo Verde como na Guiné, não teria havido o 14 de Novembro…
… admito que a minha liderança fosse fraca… Também reconheço que não tenho as características de uma autoridade forte. (…) … houve falhas, porque a minha capacidade não chegava ao nível que seria de desejar, mas que culpa tenho eu ? 
Sentia-me uma espécie de Egas Moniz com a família.  É como se Cabral estivesse vivo e eu tivesse que lhe dizer : « Olha, afinal, fiquei com isto mas vê lá a situação a que chegámos. Mas eu não podia fazer muito mais ». 
Fin de citação.

Cada um vai certamente apreender as revelações de Aristides Pereira, à sua maneira. Quanto a mim : Creio que a verdadeira desgraça começou na distorção da hierarquia do Partido, com a escolha de Aristides Pereira para o cargo de presidente de Cabo-Verde. Desta feita, embora conservasse o cargo de SG,  a impulsão que tal responsabilidade necessitava no momento, escapou-se-lhe naturalmente. É claro que naquela posiição, era para ele impossível ser árbitro, simplemente porque resolveu vestir a camisola de jogador.
-       Aristides Pereira alinhavou o seu alibi como pode, encontrando no seu colega, Luís Cabral, a ode apropriada. No entanto, não é uma justificação que se pode aceitar com equanimidade. O que estava em jogo eram os interesses superiores do partido. Creio que ao ficar de pés atrás e esperar que os guineenses se espairassem à volta da unidade, faltou-lhe tomates.
-       E resolveu marimbar ! Fantástica dialética numa mísera aplicação.  Trocar as rédeas de Presidente da República pelas migalhas de um Secretário-Geral, acrescido do risco de continuar a não ser respeitado, não deve ser apanágio do comum dos mortais. Mesmo o « santo » Aristides, não escapou à regra. Enfim, tant mieux por ele et tant pis pelo resto.
-       Aprende-se no livro que, afinal, o cargo de secretário-geral adjunto do PAIGC, não obedeceu a uma consulta prévia no seio do partido mas sim duma décisão pessoal de Amílcar Cabral, sómente para tirar os chineses da sola. Hoje, nada passaria dessa forma. Mas hoje é hoje e ontem … era Cabral !  (p.148)

-       Em relação ao vasto complot que vitimou Amílcar Cabral, longe de insinuar que o Spínola fosse inteiramente alheio ao caso, compreende-se no entanto as razões porque os dirigents do PAIGC tudo fizeram para transformar o general português num ogro à defaut de poder desvendar o ogro que existia no próprio Partido. Eu ainda acredito que, algures no fundo, asfixiada sob montões de secretismos, a verdade existe. E Portugal deve tornar público as circunstâncias do assassinato de mais um dos seus. Na mesma linha que o general Humberto Delgado, Amílcar Cabral, nacionalista, morreu como português, não é ?

-       Dispostos a ferir mas ainda relutantes em golpear,  no 2° Congresso, a inércia dos guineenses tornara-se insensata. Ou os cabo-verdianos foram ingénuos ao acreditarem nesse fazer de contas que não quer dos guineenses ou estes foram mais inteligentes para mais tarde virem a justificar o que  iria acontecer numa sexta-feira de Novembro de 1980. Pire, os guineenses mostraram de novo uma centelha de compaixão por um deles, o Luís Cabral, tornando-o Presidente da República… da Guiné-Bissau. Hipócritamente,  para « compensar » a morte do irmão, - como uma vez me disse um alto dirigente do Partido, de passagem por Genève. E de novo os dirigentes cabo-verdianos engoliram a isca.

-       Com todos os riquisitos que o Aristides o atribui, Chico Té não reunia condições para o cargo de SG ; e por não corresponder à hierarquia do Partido, nem tãopouco o do SG Adjunto. Daí a ser Comissário Principal e a não ter tido a responsabilidade de governar, vai um passo…
-       Não sou a pessoa mais indicada para transformar o tigre em avestruz…mas a César o que é de César ! Pela força das circunstâncias, Nino era um mito. Na tese da atribuição das altas patentes militares, utilizaram-se fontes niilistas para apagar o mito. Infelizmente, as consequências deste acto viriam a marcar uma outra desgraça para os guineenses, que foi o golpe de Estado do 14 de Novembro de 1980, camuflada em concórdia nacional !
-       Afinal, faltava um « capítulo » na história da fundação do PAI-GC. A saber que foram quatro as pessoas que estiveram presentes na reunião do 19 de Setembro de 1956, que foi recuperada posteriormente para servir de farol à fundação do movimento. Pode-se concluir, entre-linhas, que o acto própriamente dito, da fundação do PAI-GC, nunca existiu enquanto tal. Tomando esse Setembro como referência (de qualquer maneira não há outra !) eis os fundadores do PAI-GC : Amílcar Cabral, Fernando Fortes, Luís Cabral e Aristides Pereira. Ponto final.

-       Vê-se que, desde a morte de Cabral, o Partido não conseguiu encontrar um rumo novo. Forçados a avançar juntos, guineenses e cabo-verdianos criaram entre si a tal paz podre, dormindo, cada um do seu lado, com um olho aberto. O lado que acabou por pagar e paga ainda hoje, é a Guiné. Entre o Nino que sempre adotou uma atitude sintomática de indolente desinteresse pela questão pública, o Chico Té jogando com a sua capacidade libatória,  o Luís Cabral anelando a independência de acção face ao SG, e esse mesmo à se marimbar, o ritual da destruição não podia deixar de se cumprir. Basta também ver a « rapidez » com que os cabo-verdianos criaram o PAICV…
-       E, assim, enqunto  Cabo-Verde escrevia o seu futuro em letras de forma, na Guiné apostava-se mais nas azedas divisões  e na sede de sangue.

Hoje, volvidos mais de trinta anos, o país enfrenta um bom desafio : optar por um regime presidencialista ou inclinar-se ao parlamentarismo. Em todo o caso, para sobreviver, já não tem outra escolha do que avançar nas novas direcções que a experiência da actual crise permite desbravar para finalmente alargar a sua cintura, erguendo a cidadania como dever e a República como necessidade.
Enquanto há vida …há esperança !

Fonte: http://www.gaznot.com/?link=details_actu&id=1367&titre#.V26PL8IBBqE.facebook

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