quinta-feira, 30 de abril de 2015

FRONTEIRAS ABERTAS AOS CAPITAIS. E AOS SERES HUMANOS?


Para o conservadorismo europeu, a União Européia tem as mãos limpas. Não é culpada pelas guerras das quais fogem os náufragos que morrem em suas fronteiras.

“Que a vida humana seja prioridade nas ações de controle das fronteiras,” exortou a Anistia Internacional, semana passada, aos chefes de estado europeus reunidos durante quatro horas, em Bruxelas, para discutir a questão das migrações maciças em direção à UE. Passada a grande comoção com os mais de mil imigrantes africanos, na sua maioria sírios, somalis e eritreus mortos nos naufrágios nas costas da África no tempo de apenas uma semana, são os terremotos no Nepal, a erupção do vulcão Calbuco, no Chile e as manifestações de repúdio por ocasião do centenário do genocídio armênio que desalojaram rapidamente do noticiário principal “a crise humanitária mais grave, desde a Segunda Guerra Mundial,” como insiste em anotar Geneviève Garrigos, presidente da Anistia Internacional na França. Era de se esperar na era midiática de hoje, da descartabilidade e da aceleração de eventos que se sucedem vertiginosamente. O Alto Comissariado para Refugiados da ONU, porém, calcula em 1 776 imigrantes mortos, este ano, no Mediterrâneo. O que parece também esquecido.

Para Garrigos, a política da UE de fechar suas fronteiras terrestres favoreceu a criação de redes mafiosas de traficantes de seres humanos que procuram entrar na Europa pelo Mediterrâneo. “Os contrabandistas proliferam e exploram o desespero dessas pessoas que atravessam mais de mil quilômetros de deserto para chegarem aos embarcadouros na maioria na Líbia.”

Garabulli, um dos principais portos onde os imigrantes são embarcados, situado a 30 quilômetros de Trípoli, é onde os africanos que chegam do Saara vindos de Gana, do Senegal e da Nigéria, notadamente, trabalham durante meses ou anos na construção de casas de veraneio de um resort para famílias ricas da Líbia (!) e reúnem os euros necessários para pagar a temerária viagem. Benghazi, Kammash, Bouri, Musrata e mais alguns outros são mais do que conhecidos pontos onde o tráfico dos boat people deste século opera.

“Os governos e os partidos políticos contribuíram para a atual situação dramática,” diz a presidente da Anistia Internacional na França. Eles não podem abdicar da sua responsabilidade nas tragédias que vêm ocorrendo, denuncia um documento publicado por essa ONG intitulado 'Os náufragos da vergonha na Europa'.

Apenas a rigorosa política de repressão ao tráfico, com uma frota de navios de guerra prontos para destruir os precários barcos de contrabandistas, como propôs François Hollande na recente reunião de Bruxelas (para se tornar efetiva a proposta dependerá de uma Resolução do Conselho de Segurança da ONU que poderá demorar meses e até anos para ser anunciada) parece – parece? – mesmo equivocada.

O objetivo é diminuir o fluxo migratório e impedir que os africanos deixem a África. No entanto, as fronteiras nunca foram tão seguras e tão vigiadas como hoje, em terra e mar; e nunca as tragédias foram tão frequentes, observa Garrigos que acrescenta: “As medidas planejadas na cúpula são requentadas.” Ou seja: blá-blá-blá – e o perfume do cinismo está no ar.

Mas há também novos argumentos e estudos independentes já realizados no sentido de encontrar uma solução humanitária e generosa para esses que fogem da tragédia da África e do Oriente Médio e que ao mesmo tempo caminhe com a economia do velho continente sem piorar o combalido mercado de trabalho dos europeus. Mas também parece que as pesquisas feitas não estão sendo levadas em conta pela União Europeia, conglomerado de 28 países dos quais apenas cinco carimbam vistos, em conta gotas, nos passaportes de imigrantes - o que estimula o tráfico de pessoas e a clandestinidade.

Os outros 23 governos fingem que o assunto não é com eles e se fazem de surdos, como o atual presidente do clube, o conservador Jean-Claude Juncker, e o presidente do Conselho Europeu, o polonês Donald Tusk – um dos padrinhos do caos ucraniano -, que gargarejou: “A Europa não causou esta tragédia, mas não quer dizer que ela lhe seja indiferente”. Para ele, a União Européia tem as mãos limpas. Não é culpada pelas guerras das quais fogem os náufragos.

Já Frederic Leggeri, diretor-geral da Operação Frontex, criada para substituir a Operação Mare Nostrum, dos italianos, em andamento, lembra que esse corpo de agentes “não tem por missão salvar vidas”, e se assim o faz é pela imposição do “direito marítimo”. “O objetivo da Frontex é controlar e triar as entradas de imigrantes irregulares,” ele declara, instalado na sua zona de conforto.

Um dos estudos apresentado pelo Centro de Estudos e Pesquisas Internacionais em Paris mostra, no entanto, que autorizar as migrações para limitá-las pode ser interessante. “Uma fronteira fechada não detém um imigrante que pagou cinco mil dólares a um traficante e está prestes a arriscar sua vida,” diz a cientista política Françoise Gemenne. “Em Ceuta e em Melilla uma pessoa pode tentar cinco, dez, cem vezes a passagem.” Sangrando, ferida nas paliçadas de ferro, mas tenta. “A interdição não impede nada. Só aumenta o risco de vida.”

Esta ONG ressalta as políticas negativas desenvolvidas pela UE nos anos recentes e deplora a falta de generosidade europeia. Enquanto quatro milhões de sírios se encontram refugiados em países vizinhos, Líbano e Jordânia, a Europa acolheu 40 mil pedidos de asilo nos dois últimos anos. Deles, 30 mil foram aceitos pela Alemanha.

Para a Anistia a única solução seria a retomada da operação dos italianos, a Mare Nostrum, em nível europeu, mais eficiente que a Triton, da Frontex, porque além de fiscalizar as fronteiras marítimas ela resgata imigrantes náufragos - salvou 170 mil vidas humanas entre outubro de 2013 e outubro de 2014. Para duas economistas da Universidade de Toulouse e da City University de Londres, Emmanuelle Auriol e Alice Mesnard, estudiosas do tema, a proposta é a de vender vistos de entrada mais baratos que os valores estipulados pelos traficantes e ao mesmo tempo reprimir severamente o mercado negro do trabalho de ilegais nos países europeus. Ambas reconhecem que esta ideia não é de agrado dos patrões, é claro. Para ser colocada em prática ela exige coragem política para enfrentar governos liberais e conservadores e mesmo os outros, dos tímidos socialistas.

Já o grupo Migreurop, composto de militantes e pesquisadores europeus e africanos, propõe usar a Tunísia como laboratório para testar a estratégia da abertura de fronteiras. Os governos da UE não estão dando atenção a essa outra ideia assim como se abstêm de analisar os diversos estudos realizados pelos que integram a ONG Mobglob. Eles já provaram que os que entram, participam do aumento da riqueza econômica do país que os acolhe mesmo não sendo os chamados “imigrantes econômicos” – os que convêm a cada país.

Entre os grupos progressistas a voz geral é a de que, assim como os capitais, bens e serviços circulam livremente, no mundo, os seres humanos devem ter o mesmo direito. É o que recorda até o The Economist. Mais uma utopia de um mundo sem terrorismo onde os países não precisariam se fechar e se defender agressivamente?

A cúpula da semana passada, porém, forçou os governos do continente a admitirem, ao menos em parte, que a sua política de asilo é um fracasso moral e político. Decidiu-se triplicar o orçamento de três milhões de euros por mês para a Operação Triton. Prometeu-se revisar o pesadelo e o descalabro da situação de alguns centros de detenção de ilegais (com os sobreviventes do êxodo), semelhantes em alguns casos a campos de concentração. Recentemente, um jovem se suicidou num deles, na Grécia. O fato ocasionou um pedido público de desculpas do governo que depois do incidente trágico está liberando, aos poucos, milhares de refugiados confinados ilegalmente durante longos períodos contrariamente ao que reza a Declaração de Direitos Humanos. 

O orçamento da UE para este ano é de 161.800 milhões de euros. Apenas a Itália, sozinha, gasta o mesmo valor com a sua Mare Nostrum - nove milhões de euros prometidos agora para a Frontex. São números sovinas que constrangem aqueles europeus que lutam para manter um estado de bem estar social em casa e fora dela.

Como escreveu o experiente jornalista português José Goulão no seu site, Jardim das Delícias, se referindo à cúpula de sete dias atrás: “Deixo-vos a pérola patética do impagável Hollande: Eu gostaria que tivéssemos sido mais ambiciosos… Então, o que os impediu?” indaga Goulão.

cartamaior

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