A literatura científica no domínio das Relações Internacionais está repleta de exemplos em como a diplomacia é usada em tempos de guerra, em conflitos de vária ordem e em períodos de paz.
Entre vários casos elucidativos, não posso deixar de mencionar a difícil ligação que Portugal (como Estado) teve com várias representações da UNITA durante a guerra angolana, particularmente na sua primeira fase (1976-1988). Os angolanos do MPLA (i.e., o Estado em vigor) olhavam com extrema repulsão a “idoneidade” portuguesa em permitir o desenvolvimento da acção político-diplomática por parte da UNITA, tanto em Portugal, como no resto da Europa.
Até hoje, Portugal, pela sua dimensão geoestratégica e/ou presença de uma significativa população diaspórica (de angolanos, guineenses, cabo-verdianos, são-tomenses e moçambicanos) continua a ser um espaço estratégico importante nas lutas políticas internas entre vários actores nas suas antigas colónias, particularmente no continente africano.
Tentar influenciar o “pensamento” de Lisboa (por extensão, o da Europa) é o que tem justificado as frequentes acções de protestos contra figuras políticas, governamentais e diplomáticas africanas nas suas passagens ou estadas pela capital portuguesa. O que aconteceu ontem no aeroporto de Lisboa com o Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário junto do Reino da Bélgica, Dr. Hélder Lopes Vaz, é um exemplo da continuação dessa guerra de repulsão e/ou legitimação política.
Num contexto mais generalizado, apesar do ambiente de polarização política e social, em parte, fruto de retrocessos democráticos que se têm registado em vários países, raramente diplomatas são vítimas da violência política. Isto porque muitos cidadãos do mundo estão minimamente cientes sobre os compromissos assumidos no quadro da Convenção de Viena (1961) e da imunidade diplomática e doutras protecções especiais que ela confere às personalidades que exercem funções diplomáticas, independentemente das diferenças constitucionais que possam existir entre os respectivos países. Aliás, no seu Artigo 26, o tratado acima citado garante que “o Estado receptor assegurará a todos os membros [diplomatas de um outro Estado] a necessária liberdade de circulação e de deslocação no seu território”.
Daí que o caso de Dr. Hélder Vaz mereça uma análise mais ponderada e fria, mesmo que discordemos com o nível do tratamento que os guineenses sofrem das mãos do regime em vigor na Guiné-Bissau. Em consequência disso, aos meus conterrâneos guineenses, convido à uma reflexão mais alargada sobre o importante papel que o corpo diplomático do nosso país desempenha por este mundo e, nalguns casos, em situações de muita vulnerabilidade financeira, social e humana.
Pessoalmente, num passado recente, conheci situações onde os nossos diplomatas eram obrigados a pedirem auxílios doutros países congéneres e demais organizações para a manutenção das suas missões, assim como satisfazer outras responsabilidades e imposições contratuais e salariais nos seus respectivos países de acreditação. Uma vez, um diplomata confidenciou-me: “parecendo incrédulo, por vezes, pedimos esmolas aos amigos para conseguirmos pagar as despesas da nossa missão”.
Mesmo assim, muitas dessas pessoas de elevado grau de patriotismo continuaram a assumir um compromisso difícil com o nosso país, apesar das suas sujeições ao esquecimento nos confins dos corredores diplomáticos, num país alheio, longe de Bissau.
Se analisarmos os vínculos técnicos e profissionais desses indivíduos no quadro da definição de carreira diplomática, chegaremos à conclusão que as nossas missões diplomáticas (Embaixadas, Consulados, outras organizações regionais e internacionais) não são necessariamente os “rostos de regime” em exercício. Antes pelo contrário, são os amargos rostos do nosso Estado Soberano e Independente, a República da Guiné-Bissau – com todos os privilégios, defeitos e dificuldades.
Mesmo transparecendo serem os “rostos de regime,” muitos guineenses não compreendem o facto de muitos diplomatas jogarem, com extrema discrição, um papel fundamental na consciencialização e sensibilização de pessoas e instituições estrangeiras sobre as formas de lidar gradualmente com determinadas situações na Guiné-Bissau. Muitas vezes, as tais discrições acabam, na calada da noite, por proporcionar mudanças (políticas, económicas ou sociais) mais favoráveis, apesar de condicionalismos iniciais – graças ao chamado “soft power” que muitos diplomatas exercem em maior segredo possível.
Assim, independentemente da posição política de cada um de nós face à situação actual na Guiné-Bissau, não podemos assumir que o inteiro corpo diplomático guineense está completamente silencioso e imune ao eventual sofrimento do seu povo. A minha pouca experiência político-diplomática e a minha convivência social levam-me a acreditar que essa classe em questão merece também o nosso benefício de dúvidas, mesmo que limiarmente nos pareça que nenhuma palha esteja a mover à nossa volta – interna e externamente.
Na abertura deste texto, citei o caso da Angola e as divergências que existiram entre o MPLA e o Estado Português sobre a permissão conferida à UNITA no auge da guerra civil angolana. Todavia, são poucos os países que contribuíram para o fim da guerra civil em Angola como o próprio Portugal, apesar de todas as desconfianças históricas.
A própria Guiné-Bissau está coroada de exemplos que ilustram o papel histórico da diplomacia interna e externa num contexto difícil da nossa luta para a independência nacional. Aqui lembro-vos a importância da Conferência de Roma (1970) nos tempos do Papa Paul VI, a 27ª Assembleia Geral da ONU e o próprio acto do reconhecimento de jure da República da Guiné-Bissau em Argélia, como Estado Soberano, pelo Estado Português (1974). Tudo isso contra a vontade do Ocidente e da NATO. O último acontecimento fora testemunhado, entre outros, por Luís Oliveira Sanca, na sua qualidade do Embaixador, aliás, um dos seus co-signatários.
Tal como ontem, os nossos diplomatas estão sempre na linha de frente, na procura de uma maior legitimidade para o Estado da Guiné-Bissau, em termos das relações internacionais, da política externa, da manutenção de linhas de comunicação em prol de interesses nacionais (económicos, segurança, circulação de pessoas e de bens) e até na facilitação de provas documentais para os emigrantes. Tudo isto, independentemente das características do regime em vigor no país ou da figura periódica no leme do poder político.
Assim, gostaria de terminar com um apelo aos guineenses para terem uma avaliação mais ampla, global, serena e menos emocional quanto ao papel da nossa diplomacia e dos nossos diplomatas. Permitamos a continuação de livre desenvolvimento de actividades político-diplomáticas e assim como o permanente estabelecimento de contactos entre estados. Até porque o poder político muda, mas o conhecimento e a experiência institucional ficam.
Permitamos também o livre exercício da expressão e vontade de cada um, dentro de limites que várias leis nos conferem, salvaguardando sempre a dignidade, a integridade física e a vida humana.
P.S.: Hoje também é o meu aniversário. Aceito comentários e prendas.
Com amizade e estima.
--Umaro Djau
Deputado da Nação
10 de Maio de 2025
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