sexta-feira, 21 de março de 2025

Reconquista do Palácio Presidencial do Sudão “não significa início do fim da guerra”


No Sudão, esta sexta-feira, o exército anunciou ter retomado o controlo do Palácio Presidencial em Cartum que estava nas mãos das Forças de Apoio Rápido, há mais de dois anos, desde o início da guerra civil que provocou a maior crise humanitária do mundo. Esta é “uma guerra pelo poder” entre o chefe do exército, Abdel Fattah al-Burhan, e o comandante das Forças de Apoio Rápido, o general Hemedti, explica a especialista no Sudão, Daniela Nascimento, para quem a reconquista do Palácio Presidencial do Sudão “não significa necessariamente início do fim da guerra”.

RFI: O que significa a retoma do controlo do Palácio Presidencial pelas forças do exército?

Daniela Nascimento, Professora de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra: “Não sabemos exatamente o que significa, no sentido em que o controlo do Palácio Presidencial - que é obviamente importante do ponto de vista daquela que tem sido a estratégia militar das Forças Armadas sudanesas contra as Forças de Apoio Rápido com quem disputam o poder nos últimos quase dois anos - é um passo apenas no sentido de retomar o controlo da totalidade do território sudanês.

É obviamente importante, mas as implicações desta reconquista, por assim dizer, ficam ainda por esclarecer porque dependerá da forma como as Forças de Apoio Rápido também responderão a esta perda de controlo de uma parte importantíssima do território porque simbolicamente o Palácio Presidencial é a representação do poder. Portanto, teremos agora que aguardar qual será o desenvolvimento e a resposta a esta alteração naquilo que é o jogo militar entre as duas partes.”

Este pode ser o início do fim da guerra? Está confiante?

“São um pouco mais pessimista. Não considero que este seja o início do fim do conflito, no sentido em que os últimos desenvolvimentos nesta guerra que, de alguma maneira, também permitiram este passo importante na tomada do controlo do Palácio e da capital sudanesa, nos dão alguns indícios de que do lado das Forças Armadas sudanesas, e em particular do general al-Burhan, não parece haver grande vontade de negociar um eventual cessar-fogo ou criar condições para um eventual cessar-fogo, partindo exactamente desta posição mais privilegiada agora do ponto de vista deste controlo territorial.

Aqui há umas semanas, um mês talvez, o general al-Burhan tinha anunciado - também na sequência de uma conquista importante de uma parte do território da capital, Cartum - a sua decisão de criar aquilo a que se chama um governo tecnocrático que iria ficar responsável pela gestão do país em tempo de guerra e que isso serviria também para alavancar aquela que era a sua estratégia de reconquista do controlo do país. Mas deixou muito claro, nessa altura, que não iria haver qualquer tipo de inclusão das Forças de Apoio Rápido e do General Hemedti neste processo, a não ser que se alterassem as condições militares e estratégicas no território.

Portanto, pode ter até o efeito contrário, no sentido em que as Forças de Apoio Rápido podem usar esta derrota no sentido de se reforçar. Reforçar trincheiras e levar a um recrudescimento da resposta militar. Não nos podemos esquecer que, do ponto de vista militar, as Forças de Apoio Rápido são fortes e conseguiram manter uma posição importante nesta guerra durante estes últimos dois anos, em virtude também de um apoio que tem tido de forças externas, nomeadamente o Grupo Wagner.”

Quem são estas Forças de Acção Rápidas e como é que elas têm conseguido controlar quase todo o Oeste do país?

“Há aqui uma circunstância muito particular que é o de estas Forças de Apoio Rápido, lideradas pelo General Hemedti, serem forças que foram criadas há anos e estiveram até envolvidas naquele que foi um episódio dramático da vida do Sudão - o genocídio no Darfur em 2003. O general Hemedti foi um dos responsáveis pelo genocídio no Darfur, patrocinado pelo então Presidente Omar al-Bashir. Desde essa altura que estas forças se mantiveram com alguma capacidade de intervenção militar no território sudanês.

Com a queda do regime de al-Bashir em 2019, em resultado das várias manifestações até da sociedade civil e que contaram com o apoio do Exército, com o apoio do general al-Bhuran, e desta figura que, entretanto, se foi destacando que é o general Hemedti…”

Aliados na altura, não é?

“Exatamente, que se aliaram numa primeira fase, num processo que idealmente teria dado lugar a um processo de transição democrática, de transição do poder militar para o poder civil, portanto de criação de um governo civil no Sudão, que era a vontade da maioria da população. Os militares alinharam com esse objectivo, mas a dada altura afastaram-se desse processo e boicotaram-no, assumindo novamente o controlo militar do país em 2023.

É nessa altura que estas duas figuras se desentendem também do ponto de vista daquilo que era a sua ideia de poder e, sobretudo, do papel e do lugar que estas Forças de Apoio Rápido poderiam vir a ter no quadro das Forças Armadas sudanesas.

Desde essa altura escalou-se para uma guerra civil com dois líderes que disputam o poder a todo o custo, numa guerra brutal, que criou aquela que é considerada, pelas Nações Unidas, como uma das maiores crises do momento. E, portanto, nós estamos aqui claramente com dois lados com uma capacidade militar significativa.

Esta reconquista importante pelas Forças Armadas sudanesas pode ter aqui efeito de reajuste da estratégia militar de ambos os lados, mas, a meu ver, não significa necessariamente que seja o início do caminho para o fim da guerra.”

Falou na maior crise humanitária do mundo, algo que foi reconhecido pela ONU. Como é que está a população e o país, dois anos depois do início desta guerra?

“Está numa situação dramática. Do ponto de vista da crise de deslocação forçada, da crise alimentar, as consequências desta guerra têm sido devastadoras. Estamos a falar de milhões de pessoas deslocadas e directamente afectadas por esta guerra. Condições de segurança muitíssimo frágeis, que impedem inclusivamente as organizações humanitárias, em particular as organizações internacionais de âmbito humanitário, de actuar no terreno.

Quer dizer, em termos de números, os números são assustadores. Estamos a falar de cerca de 13 milhões de pessoas forçadas a deslocar-se, quase 10 milhões de deslocados internos, milhares de refugiados que se vêem forçados a fugir para países vizinhos, onde as condições de segurança, de estabilidade, de sobrevivência, não são as melhores: o Sudão do Sul que também tem uma guerra; o Chade, que vive ainda um período de bastante instabilidade. É, de facto, uma situação devastadora.”

Mais a fome, não é?

“Mais a fome. É das maiores crises de fome da actualidade e dos últimos anos, que obviamente se agravará na sequência destes últimos desenvolvimentos do ponto de vista de política norte-americana e de corte significativo nos fundos. É uma situação dramática do ponto de vista humanitário, a que acrescem também situações absolutamente trágicas do ponto de vista de violações sistemáticas dos direitos humanos. As acusações de alegadas campanhas de limpeza, de genocídio até, na região do Darfur, pelas Forças de Apoio Rápido, são várias e têm sido reportadas por inúmeras organizações.”

E depois vão-se encontrando valas comuns…

“Exactamente. É uma guerra pelo poder que se faz à custa claramente da população civil, que é usada como arma de guerra, como alvo, como moeda de troca e que coloca a população sudanesa, mais uma vez, numa situação absolutamente dramática do ponto de vista humanitário e das violações a que tem sido sujeita. Há relatos de violação como arma de guerra contra mulheres, meninas e até bebés. Os últimos relatos de organizações humanitárias dão-nos conta de violação de crianças com menos de um ano, o que é, obviamente, uma campanha de terror que é levada a cabo no contexto da guerra no Sudão.”

No meio deste terror e desta guerra de poder, qual é a solução para o conflito?

“A solução para o conflito - para este e para tantos outros que nunca estão claramente ou parecem nunca estar no centro das prioridades - é o apoio por parte dos actores externos, no sentido de se conseguir um cessar-fogo. Ou seja, tentar chamar as partes à negociação, tentar que efectivamente se baixem as armas e se inicie um processo negocial que permita efectivamente condições para que a guerra tenha fim e que se inicie um processo de transição, de reconstrução pós-violência e que, de alguma maneira, coloque no centro das prioridades as expectativas muito legítimas de paz da população do Sudão e não as condições das partes beligerantes.

Eu sei que isto pode parecer um pouco utópico, inviável, mas verdadeiramente uma guerra com esta dimensão - uma guerra com estes contornos, que é semelhante a outras guerras com as mesmas características e para as quais tem sido extremamente difícil chegar a um fim formal da guerra como ponto de partida para o fim verdadeiramente estrutural da guerra e criação de condições para a paz justa - parece-me que esse investimento sério, do ponto de vista de criação de condições para cessar-fogo e, a partir daí, condições para a paz, é essencial.

Mas isso implica, obviamente, vontade política também de quem tem alguma capacidade de influenciar estas dinâmicas de violência, de assumir essa posição e esse compromisso. Pouco se fala de organizações regionais envolvidas na tentativa de resolução. As várias tentativas que tivemos, neste caso, falharam em grande medida também por ser difícil convencer as partes a negociar, mas tem que haver pelo menos tentativa e iniciativa nesse sentido, caso contrário, entramos numa espiral de guerra que nunca termina.”

A agenda diplomática mundial é dominada por outras guerras, mas dá a ideia que não se fala do Sudão. Há guerras de primeira e de segunda? Por que é que não se fala do Sudão? Ou tão pouco?

“Não se fala do Sudão, não se fala do Sudão do Sul, não se fala de tantas outras realidades de violência. Pouco se tem falado, por exemplo, na guerra e na instabilidade que se tem visto também recrudescer na zona dos Grandes Lagos, no Congo, onde têm morrido milhares de pessoas. Pouco ou nada se fala sobre essas situações de violência e de guerra. Isso explica-se pela falta de importância política, de importância estratégica de muitos destes conflitos relativamente àquelas que são as prioridades de agenda dos actores com mais capacidade de se afirmarem e de investirem nestes contextos.

Estamos claramente com as atenções focadas na Ucrânia - e bem, ou seja, não significa que deixe de se falar e de se investir na paz na Ucrânia - mas isso não pode ser à custa da negligência e do esquecimento, do ignorar de circunstâncias de guerra que são igualmente dramáticas e, eventualmente, até mais, com consequências humanas mais devastadoras neste momento e que exigiria, obviamente, um reequilibrar das atenções políticas e mediáticas destas guerras.

O Sudão já foi muito importante na agenda internacional. Deixou de ser importante a partir do momento em que há um acordo de paz entre o Norte e o Sul em 2005. A partir desse momento, nem a guerra no Sudão do Sul interessou ou importou aos actores que estiveram tão investidos na tentativa da busca de paz no Sudão. Parece-me que há aqui esta circunstância infeliz de estarmos perante uma guerra em contextos que verdadeiramente não interessam à maioria dos actores da comunidade internacional.”

Por:Carina Branco
rfi.fr/pt/

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