sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O FILME DE UMA VIDA EM BISSAU EM QUE TUDO CORRE MAL, MAS DESISTIR É PROIBIDO



A vida de Mamadu Candé é como um filme de tudo o que pode correr mal na Guiné-Bissau e da persistência em lutar contra os obstáculos, com a ajuda de amigos .

Se num país despedaçado pela instabilidade a vida já é difícil, é ainda pior para uma pessoa deficiente, com as pernas quase paralisadas e sem rendimentos.

Mamadu, 24 anos, tem um objetivo: quer ser jornalista. Para lá chegar, o ponto de partida deixou-o logo em desvantagem: não só por nascer na Guiné-Bissau (a taxa de pobreza é de 70 por cento, segundo dados das Nações Unidas) e ainda por cima longe da capital (em Galomaro, Bafatá), mas por perder a mobilidade.

“Quando tinha quatro anos comecei a sentir um formigueiro” nas pernas, conta. O incómodo era tanto que, certa vez, saiu da cama e caiu. Já não se conseguiu levantar mais.

A mãe levou-o para Bissau, mas os médicos cubanos do Hospital 3 de Agosto nunca conseguiram explicar do que sofria.

Aos sete anos voltou para o interior, fez a escola primária e frequentou uma escola corânica. Habituou-se a viver numa cadeira de rodas e nunca mais sequer procurou ajuda médica.

Em 1999, no fim da guerra civil na Guiné-Bissau, mudou-se para a casa do tio, na capital. “Vim para Bissau para estudar. Sonhava ser jornalista e para isso tem que se estudar”, conta à Lusa.

E acrescenta duas motivações chave para ambicionar exercer a profissão e ter o seu programa de debates na rádio: por um lado, quer “defender as pessoas vulneráveis” e, por outro, pensa que a deficiência só lhe permite ter emprego “na ciência ou no comércio”.

Mamadu Candé não tem rendimentos. Fala revoltado do único apoio que recebe do Estado: 10 mil francos CFA (15 euros) trimestrais.

A vida é um puzzle de ajudas de familiares e amigos.

Em 2002, o tio que o acolhia morreu, mas ficou a viver com os primos. Ao mesmo tempo, um amigo espanhol que estava em Bissau colocou-o em contacto com uma escola privada da capital que lhe permitiu estudar até ao 12.º sem pagar propinas.

Hoje tem uma amiga portuguesa que em conjunto com um escritor guineense lhe paga o curso na área da Comunicação na Universidade Amílcar Cabral. Um dos primos, taxistas, leva-o todos os dias em parte do percurso e dá-lhe uma moeda para o restante.

É preciso atravessar um mar de lama na época das chuvas, que molda as valas em que se transformam os caminhos na época seca.

Esses trilhos desfazem a cadeira de rodas em que circula, oferecida por outro amigo – antes era uma missão religiosa que as oferecia, mas esse apoio acabou.

Há uma rede que impede Mamadu Candé de cair na realidade guineense da falta de apoios sociais, mas que não chega para tapar todos os buracos.

“Tenho fome. Faço refeição todos os dias às 08:00 e não como até voltar às 14:00. É por isso que nos últimos dois tempos fico saturado com o professor”, conta à Lusa.

A refeição é arroz cozido com qualquer coisa – às vezes misturado apenas com um caldo – sabendo-se de antemão que a fome não tarda.

Cada dia de Mamadu arranca assim: num quarto pequeno de adobe, com uma janela minúscula, onde a única porta dá para a rua (não há abastecimento de água, eletricidade, nem saneamento) e depois de ter estudado à luz da vela durante a noite: “é tudo muito difícil”.

E torna-se também difícil de ter aproveitamento a todas as disciplinas do curso.

Mas Mamadu insiste e enfrenta a discriminação todos os dias.

Ora são os cobradores de toca-toca (furgões de transporte público) que o mandam apanhar táxi porque não querem perder espaço para a cadeira de rodas, ora é o próprio Estado cuja ausência se nota ao longo do dia.

Faltam passadeiras, falta formação profissional, falta alguém que se preocupe.

“Há muitas pessoas deficientes que foram abandonadas pelos seus familiares, porque não têm condições de produzir”, lamenta.

Mamadu queixa-se e diz que as 15 cadeiras de rodas que as autoridades oferecem anualmente a uma associação de deficientes são uma ajuda demasiado pequena – ele próprio está inscrito, mas nunca recebeu ajuda.

Por isso, anseia pela oportunidade de fazer jornalismo e falar de tudo isto nos órgãos de comunicação social.

“Antes ia a concertos, ia lá divertir-me”, com amigos, lembra, mas refere que agora só pensam no futuro, sabendo que só o trabalho lhe pode garantir um rendimento.

É com esse dinheiro que conta para garantir que, um dia, vai poder viver com aquele que for o amor da sua vida.

“Tenho namorada, mas aqui temos uma cultura complicada”, indica.

“As pessoas pensam monetariamente. Como não trabalho, sou estudante (…) as meninas ainda andam a duvidar. Mas eu tenho fé”, remata.

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