terça-feira, 5 de setembro de 2023

"Há uma corrida tão grande a ter influência em África que acaba por desestabilizar os países", Suzi Barbosa

© Filipe Amorim / Global Imagens
Ex-ministra dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau anunciou a candidatura à presidência da Comissão da União Africana. O DN conversou em Lisboa com Suzi Barbosa sobre os seus projetos, mas também sobre o ciclo de golpes no continente e o papel das potências.

Foi ministra dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau, vai ser agora conselheira presidencial e tem também uma candidatura muito importante à Presidência da Comissão da União Africana cuja eleição só decorrerá em 2025, mas que é uma grande aposta. O que é que a levou a essa candidatura e que apoios espera ter?

Na verdade, eu procuro novos desafios internacionais. Penso que a nível interno já dei o meu melhor e como responsável pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau nos últimos quatro anos foquei-me muito nas suas participações internacionais, na mediação e sobretudo na Presidência da CEDEAO [Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental]. Penso que para mim, agora, é o momento de apostar a nível internacional e também para mostrar que a Guiné-Bissau, apesar de ser um pequeno país, tem capacidade para dirigir uma organização tão complexa como a União Africana. Até porque até à data não houve nenhum presidente da Comissão que fosse lusófono. É um desafio. Só houve uma mulher e acho que é a oportunidade de eu também entrar nessa corrida e demonstrar a nossa capacidade.

O apoio dos países africanos lusófonos é importante?

Sem dúvida. É importante e eu posso dizer que esta é uma candidatura que tem o pleno apoio do presidente da República, que é uma pessoa, como sabem, que é um diplomata de excelência, com uma capacidade de alcance muito grande que demonstrou nos últimos três anos. A Guiné-Bissau, que nos últimos anos como país praticamente não tinha atividade internacional, recebeu 23 chefes de Estado e acima de 20 ministros dos Negócios Estrangeiros, para além das visitas oficiais que ele fez a vários países que foram inéditas. Isso permitiu que ele tivesse contactos muito importantes para este tipo de candidatura. Penso que tudo isso vai contribuir, sem dúvida, para facilitar ou ajudar a candidatura da Guiné-Bissau à presidência da Comissão.

O alcance da influência do presidente vai além dos países lusófonos, pode chegar até fora da área da lusofonia?

Sim, sem dúvida, o presidente Umaro Sissoco Embaló é uma pessoa que não só tem influência nos países lusófonos como, sobretudo, nos países francófonos. Tem também, a nível do continente africano, um grande impacto em praticamente todos os países, pelo facto de ter convivido e trabalhado com vários dirigentes no passado antes de ser presidente da República. Também a forma como demonstrou que faz a diplomacia permitiu que tivesse essa influência a nível internacional, que lhe permitirá e facilitará o lóbi para a Guiné-Bissau chegar à presidência da Comissão.

A imagem da Guiné-Bissau tem vindo a melhorar. As últimas eleições legislativas decorreram num processo normal e, neste momento existe um partido e um presidente que não são da mesma cor política. Esta melhoria da imagem institucional da Guiné é também decisiva para a sua candidatura?

Sem dúvida. Penso que num outro momento não seria exequível, mas neste momento sim. A Guiné-Bissau tem outra imagem, razão pela qual os tais 23 chefes de Estado aceitaram vir ao país. É um país onde se pode apostar porque tem estabilidade e vontade política. Essa vontade política demonstrada pelo presidente Umaro Sissoco Embaló vai nos ajudar sem dúvidas, graças à sua grande capacidade de alcance diplomático, que é já reconhecida e respeitada internacionalmente. 

O presidente Sissoco Embaló já recebeu manifestações de apoio à minha candidatura, tanto da CEDEAO como de países lusófonos. Será também, de certa forma, um lóbi lusófono. Um pequeno país lusófono conseguir presidir a uma União Africana com 55 países seria, sem dúvida, um grande alcance para a lusofonia.

"Um pequeno país lusófono como a Guiné-Bissau conseguir presidir a uma União Africana com 55 países seria, sem dúvida, um grande alcance para a lusofonia."

Muitas vezes fala-se de África como se fosse mais do que um continente, um país. No entanto, a África é muito diversa. Um dos problemas que por vezes se sente em África é a sua incapacidade para ser mais unida. Esta União Africana pode ser mais união do que tem sido até agora?

Eu penso que sim. A razão da minha candidatura enquanto mulher é precisamente essa. Nós, as mulheres, temos essa capacidade, temos esse dom de unir e somos menos bélicas. Eu penso que podemos ter uma gestão mais sensível e que olhe mais para a realidade africana cuja composição é maioritariamente feminina. Podemos ter políticas talvez mais humanitárias. Acho que esta candidatura será apoiada, não porque há sempre esse apoio às candidaturas das mulheres, mas sobretudo pela qualidade demonstrada. Eu sou apologista da representatividade feminina, mas com qualidades, com apoios. Acredito que, nos últimos quatro anos em que fui ministra dos Negócios Estrangeiros, desenvolvi múltiplos laços com muitos outros dirigentes que me reconhecem essa capacidade e que reconhecem sobretudo que posso ter um contributo importante para dar ao continente africano.

Esta é uma eleição africana, mas a Guiné-Bissau também vai assumir agora a presidência da CPLP. Países como Portugal ou como o Brasil podem ajudar diplomaticamente a sua candidatura ou, pelo contrário, não se devem envolver?

Eu penso que podem ajudar, e muito, até porque esta é uma candidatura à União Africana que vai beneficiar todos os países lusófonos incluindo Portugal. Terá muita influência porque estará a ser liderada por uma mulher lusófona e que tem excelentes relações tanto com Portugal como com o Brasil. Portanto, eu acho que é uma forma de projetar a própria CPLP. Todos os países da CPLP têm interesse em ver um membro da CPLP a gerir a União Africana. Como nós sabemos, a União Europeia tem excelentes relações com a União Africana, é um dos financiadores da UA e tem todo o interesse tanto para Portugal como para o Brasil que a Guiné-Bissau esteja neste posto.

Sei que quando foi chefe da diplomacia da Guiné chegou inclusivamente a fazer parte de uma tentativa de mediação após um golpe militar no Burkina Faso.
Sim, efetivamente. A Guiné-Bissau era, nesse momento, quem presidia à conferência dos chefes de Estado da CEDEAO e eu, como ministra dos Negócios Estrangeiros, era a presidente do Conselho de ministros. Portanto, nessa capacidade, acompanhei o mediador, o ex-presidente do Níger Mahamadou Issoufou, para que nós, logo nos primeiros dias após o segundo golpe de Estado realizado no Burkina Faso, nos fôssemos encontrar com as novas autoridades para tentar que cumprissem realmente o calendário que já estava previsto pela CEDEAO para o retorno à ordem constitucional.

Segundo a sua experiência, essa sucessão de golpes em África em países tão diferentes como o Mali, o Níger, o Burkina Faso, agora no Gabão também, contribui para aquela ideia de África como um continente de golpes o que lhe dá uma péssima imagem. Como é que analisa esta sucessão de golpes?

É lamentável, até porque é uma situação que nós pensávamos que já estava ultrapassada. De há três anos para cá temos tido realmente uma sucessão de golpes de Estado em países francófonos e que nós pensávamos que já não se justificariam. Esta atitude pode ter muito que ver com as injustiças sociais sentidas pela população, mas também são sempre provocadas por militares... Eu continuo a dizer que tem de haver talvez uma abordagem da nossa sociedade de uma forma humana, de forma a tentar entender as causas que levam a estas reações. O importante aqui é dizer que o golpe de Estado nunca é a solução e que as pessoas têm de respeitar as escolhas que são feitas nas urnas e que os mandatos só são avaliados através das urnas. Nós, enquanto CEDEAO, somos completamente contra este tipo de ataque à ordem constitucional e tentamos voltar à normalidade, ao que se espera, e tentamos chamar à razão não reconhecendo de forma nenhuma as autoridades saídas destes golpes. O ideal era que as mudanças fossem sendo feitas pela via constitucional. Quando isto acontece, afeta não só o país em causa como também toda a região, a instabilidade paira sobre toda essa região. Neste momento, em toda a CEDEAO, temos quatro países em situação de golpe de Estado; em período de transição confirmada são três; o quarto, que é o Níger, ainda estamos a ver a forma de reformar sem passar por esse período de transição, mas sem dúvida que é uma situação complexa que afeta a normalidade dos outros países. Se nós não tivermos capacidade de resolver pela via constitucional e de forma legal esses atentados, acaba por ser quase o chamariz para os outros países, no sentido em que podem dizer: aconteceu, não se resolveu, então nós também podemos fazê-lo. O ideal é que nunca se chegue a essa situação. Nós também temos de fazer o mea culpa, no sentido de estarmos alerta para entender os sinais antes de essas coisas acontecerem.

Apesar destes golpes, em África também há os casos de sucesso não só económicos como, por vezes, até na persistência da democracia. Por exemplo, Cabo Verde é um país que é muito elogiado. É importante também para os africanos darem a conhecer o que de bom existe em África?

Eu continuo a dizer que é, sem dúvida, importante. Há muitos casos de êxitos, há Cabo Verde, há o caso do Ruanda que é um país que esteve numa situação muito complexa, quase a chegar ao fundo do poço, e que hoje é um exemplo em termos de democracia, de governação, de desenvolvimento. Eu penso que a solução prática passa sobretudo pelo desenvolvimento económico. O grande problema de África é a fome, é a luta pelo poder, mas isto acontece porque as riquezas não estão distribuídas igualmente. Então, compete, sem dúvida, a nós governantes criar as condições para haver um crescimento económico real. Enquanto ele não existir, haverá sempre a possibilidade de haver um golpe, porque a maioria da população, se não tem acesso à riqueza e ao desenvolvimento, vai estar sempre ansiosa por mudar e se não o consegue pela via normal acaba por recorrer a este tipo de golpes. Portanto, eu penso que a solução passa por ter uma fórmula de criar riqueza através dos recursos que temos, e que são muitos, sobretudo através da agricultura, por exemplo, criar postos de trabalho, criar produtos que serão exportados e, a partir daí, haver uma paz social para que não estejamos constantemente em risco de fazer atentados e golpes de Estado.

"O grande problema de África é a fome, é a luta pelo poder, mas isto acontece porque as riquezas não estão distribuídas igualmente. Então, compete, sem dúvida, a nós governantes criar as condições para haver um crescimento económico real."

Fala-se muito de as potências estarem sempre interessadas em África, sejam os grandes países da Europa, os Estados Unidos, a China ou a Rússia. Este interesse das grandes potências que tem muito que ver com os vastos recursos naturais de África pode, de alguma forma, ser transformado em algo positivo?

Eu espero que sim, porque muitas vezes esses interesses das grandes potências acabam por ter um impacto negativo. Há uma corrida tão grande a ter influência em África e a poder ser o beneficiário desses recursos de África, que acaba por desestabilizar os países. Eu penso que essas potências poderão ter realmente um papel importante no sentido de acompanhar o desenvolvimento dos nossos países, sem interferência, sem ingerência e ajudando a criar esse crescimento económico criando postos de trabalho e ajudando à estabilização desses países.

Esta guerra na Ucrânia é uma guerra europeia, mas também se diz que afeta África, nomeadamente na questão da segurança alimentar. É ou não uma guerra que afeta África?

É uma guerra que afeta África, sem dúvida. Afeta o mundo inteiro. Como consequência, posso dizer que o incremento dos bens de primeira necessidade é flagrante. O preço da comida subiu imenso, subiu na Guiné-Bissau e subiu nos outros países. Posso dar o exemplo concreto da Serra Leoa quando no exercício da nossa presidência da CEDEAO houve uma manifestação em que, inclusive, mataram agentes de segurança porque a população estava revoltada com o aumento do custo de vida. Isto é consequência da guerra na Ucrânia, mas durante a nossa presidência - e é também por isso que eu digo que a Guiné-Bissau tem um grande desafio, mas tem toda a capacidade - uma comissão chefiada pelo presidente Embaló deslocou-se à Rússia para falar com o presidente Vladimir Putin, exatamente pelas consequências que esta guerra estava a ter em África, mas também estivemos na Ucrânia onde fomos recebidos pelo presidente Volodymyr Zelensky. Nós tentámos fazer a mediação e entregar, inclusivamente, um acordo para a exportação dos cereais. Muitos países africanos são grandes consumidores de cereais e isto levou-nos a pensar que temos de começar a diversificar a nossa agricultura e passarmos a ter uma maior produção, pois não temos essa segurança. Hoje, um dos grandes problemas do nosso continente é essa dependência e África não tinha de ser isto, nós podíamos produzir alimentos tanto para a nossa população como ainda para exportar, dadas as condições que possuímos.

Nasceu em Bafatá, mas fez toda a sua educação em Portugal onde estudou Relações Internacionais na Universidade de Lisboa. Essa sua experiência de vida em Portugal, o facto de conhecer bem a Europa, pode ser uma mais-valia para a União Africana?

Eu acredito que sim. O facto de conhecer novas culturas enriquece sempre a nossa experiência. Eu vivi 30 anos na Europa, onde fiz toda a minha formação escolar e académica e, depois, também trabalhei. Portanto, acho que essa experiência pode enriquecer de certa forma, acredito que sim. Acho que outra coisa que as pessoas têm de ter em conta é que as democracias africanas não têm de ser uma cópia das democracias europeias ou ocidentais. Nós temos de ter uma democracia adaptada à nossa realidade. Muitas vezes as coisas não funcionam porque tentamos implementar um modelo que não é o adequado à nossa realidade. Acho que um bom político é aquele que é capaz de fazer uma análise sobre qual o modelo adequado da política ou da gestão para o seu país. Isso é fundamental e talvez assim se evitem situações de desagrado ou de insatisfação por parte da população.

leonidio.ferreira@dn.pt com o Conosaba do Port0

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