Karyna Gomes, cantora e jornalista guineense, em Setembro 2023, em Torres Vedras, Portugal. © Liliana Henriques / RFI
A Guiné-Bissau comemora este domingo os 50 anos da sua independência. Neste quadro, a RFI propôs ao longo da semana uma série de reportagens e entrevistas alusivas à História do país e em particular ao período da luta de libertação. Hoje, no 14° capítulo desta série, focamos a nossa atenção sobre a geração que veio a seguir à independência e o olhar que tem sobre o seu país e o legado da luta de libertação.
Ao saudarem o combate conduzido pelas gerações anteriores para conquistar a independência do seu país, o activista Sumaila Djalo, o antropólogo e dirigente da ONG Tiniguena, Miguel de Barros, assim como a cantora e jornalista guineense Karyna Gomes, não deixam de questionar os efeitos dos sobressaltos destes 50 anos sobre o desenvolvimento da Guiné-Bissau. O olhar também é crítico em relação à forma como Portugal se posiciona ainda hoje relativamente à Guiné-Bissau e às restantes antigas colónias. Emerge a partir destas constatações a necessidade de um novo modelo de desenvolvimento e de relacionamento com o mundo.
Olhares críticos sobre a situação vicenciada na Guiné-Bissau
Entrevistada em Portugal onde reside, Karyna Gomes que conviveu de forma íntima com o legado da libertação por pertencer à família de Amílcar Cabral, diz ter um misto de sentimentos relativamente ao caminho seguido pelo seu país depois da independência.
"Cresci com orgulho de ser sobrinha-neta de Amílcar Cabral que fui descobrindo ao longo da minha história; fui descobrindo primeiro pelas histórias que me contavam em casa, depois na escola, na formação militante e, mais tarde, como profissional a trabalhar na Guiné-Bissau, conhecendo o interior e descobrir que realmente Cabral não podia não se ter apaixonado pela causa do povo guineense e não ter feito a luta que fez (...). Cresci com isso, estou a viver com isso, mas por outro lado, a dor, a frustração de uma luta tão gloriosa, um processo tão glorioso ter sido abortado a uma determinada altura".
Também a residir actualmente em Portugal onde prossegue os estudos, o activista Sumaila Djalo também observa a história do seu país com algum cepticismo. Após recordar os principais episódios de violência que houve no país, com golpes de estado, perseguições e assassinatos, o activista refere que a construção da Guiné-Bissau resultou de "processos com muitas tensões, com muitas diferenças que ainda hoje marcam o percurso da Guiné-Bissau. Mas são tensões que embora não sejam acontecimentos desejados no percurso do nosso país, são em todo o caso normais no percurso de uma Nação que surgiu de uma luta que surgiu com muitas desavenças".
Sumaila Djalo, activista guineense, em Setembro de 202" em Coimbra, Portugal. © Liliana Henriques / RFIEmbora Sumaila Djalo considere que não é necessário haver consenso em tudo e que até é um indício de uma democracia saudável, ele também alerta para os riscos inerentes à radicalização de posições. "As diferenças não se devem radicalizar ao ponto de não nos podermos entender, de não podermos dialogar e estabelecermos prioridades para em conjunto construirmos um país em que vivamos de forma pacífica", sublinha Sumaila Djalo para quem interesses particulares se sobrepuseram, a dada altura, ao interesse colectivo da população do seu país ."Muitas vezes, essas diferenças radicalizadas que impedem a priorização de um projecto de construção do país, surgem de interesses localizados, de interesses que nada têm a ver com a prioridade da construção da Guiné-Bissau. Esses interesses localizados, esses interesses que não são partilhados, esses interesses que impedem o avanço do nosso país têm que ser combatidos".
Igualmente crítico sobre a evolução do país nestes 50 anos que acabam de passar, Miguel de Barros, dirigente da ONG Tiniguena, evoca um sentimento de orgulho pelo processo de emancipação "com muita dignidade" da Nação guineense e ao mesmo tempo um sentimento de frustração pelo fracasso dos modelos de desenvolvimento que se tentaram aplicar. "Há um sentimento de desalento, há um sentimento de sonho não cumprido, porque o país tinha tudo para ser um país próspero, para ser um país de bem-estar, para ser um país de dignidade e o país não consegue alcançar essas metas exactamente à conta daquilo que foram as derrapagens ideológicas e com consequências ao nível da governação que colocou a Guiné-Bissau numa situação de fragilidade do Estado e completamente vulnerável a situações, como por exemplo, de crime organizado, o narcotráfico e, ao mesmo tempo, colocando a Guiné-Bissau numa situação de dependência externa", aponta o activista social.
A nova geração também tem um olhar crítico sobre Portugal
50 anos depois da independência da Guiné-Bissau, resta também muito caminho a percorrer do lado de Portugal. Do outro lado do oceano, a antiga potência colonial continua a alimentar mitos sobre a sua História em África do ponto de vista de Karyna Gomes. "A forma paternalista de cooperação, a forma como se romantiza 'os descobrimentos', ainda falamos dos 'descobrimentos' como se fosse a melhor coisa que aconteceu em África. Ou seja, a nossa história não existia antes da chegada das caravelas. Nós sabemos que quando estamos a falar dos 'descobrimentos', estamos a falar de abusos, estamos a falar de racismo, estamos a falar de opressão, estamos a falar de estupro, estamos a falar de violação de mulheres, estamos a falar da escravatura que foi, da História moderna, o prior episódio", considera Karyna Gomes.
Igualmente testemunha directa das sequelas deixadas pelo colonialismo dentro da sociedade portuguesa, Sumaila Djalo fala também do enraizamento do racismo nos comportamentos e nas estruturas do estado português. "Não é, de todo, fácil ao negro, africano, veiver em Portugal. Não é como se pensa, que sejamos de uma comunidade em que existe uma suposta identidade lusófona. De forma muito concreta, há um racismo marcado na sociedade portuguesa. Um racismo manifestado por estruturas do próprio Estado português, pelas forças de segurança que abordam o negro africano de forma diferente da abordagem que é tida em relação a um branco, mesmo não sendo português. Hoje é ainda frequente nós contactarmos senhorios e, depois de repararem que afinal somos negros e termos dificuldades em encontrar um apartamento para vivermos (...). é uma relação difícil ainda marcada por uma presença forte de colonialidade e de subalternização de pessoas oriundas dessas realidades", diz o activista.
Um olhar das novas gerações sobre o futuro
No âmbito das reportagens da RFI sobre os 50 anos da independência do seu país, o realizador guineense Sana Na N'Hada colocou a seguinte pergunta: O que é que se faz com a independência? Esta é a pergunta à qual estão agora confrontadas as gerações que vieram depois da luta de libertação. É preciso construir outro tipo de relação com o mundo e consigo próprio, um modelo de desenvolvimento diferente, refere Miguel de Barros que é optimista quanto à capacidade do seu país cumprir o sonho que norteou a luta de libertação.
Miguel de Barros, dirigente da ONG Tiniguena, em Setembro de 2023, em Bissau. © Liliana Henriques / RFI"Nós, até aqui, temos sido vítimas de uma abordagem muito frágil em termos daquilo que é a concepção da transformação estrutural do nosso país. As entidades internacionais que têm acompnahado a Guiné-Bissau, sobretudo a partir dos anos 80, com o programa de ajustamento estrutural liderado pelo FMI e o Banco Mundial e depois, na liberalização política, muito condicionada por aquilo que é a posição do Clube de Paris em dar ajuda pública ao desenvolvimento através da democracia, mas não de uma construção de um processo democrático, mais pedagógico, mais educativo, acredito que isso complicou muito a construção da capacidade económica e o alargamento do próprio cânone democrático", constata este representante da sociedade civil.
"Nós temos que mudar o nosso modelo de pensamento e de estruturação das nossas políticas públicas. Isso terá impacto no nosso nível de funcionamento e da utilidade das nossas instituições" considera Miguel de Barros para quem "quanto mais os guineenses se concentrarem num esforço interno de construção de uma visão partilhada a nível nacional e articular a sua diáspora e grupo de actores com quem se interage em vários fóruns, isso dará maiores possibilidades de a Guiné-Bissau ser um país de maior segurança e também um país onde há uma visão internacional que projecta sobretudo uma melhor possibilidade de cooperação do que aquilo que se tem até agora".
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