domingo, 24 de setembro de 2023

Historiador Julião Soares Sousa: “DEPOIS DA INDEPENDÊNCIA A GUINÉ-BISSAU TRANSFORMOU-SE NUM ESTADO ESQUIZOFRÉNICO”

 

[ENTREVISTA] O historiador guineense e investigador no Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra, Julião Soares Sousa, explicou que o que falhou no cumprimento do programa é que depois da independência, começaram a aparecer alguns problemas, com a assunção do regime ao poder. Esses problemas transformaram o Estado num Estado quase esquizofrénico, que tinha inimigos em quase toda a parte. Acrescentou que as perseguições às pessoas e os fuzilamentos que foram feitos até aos momentos mais recentes levaram à quebra da paz social.

 “Uma revolução implica um processo transformativo, transformar a sociedade, o que não acontecia nessa altura e isso foi gerando problemas atrás de problemas não só de ordem política, mas também de ordem económica e social, que empurraram muitos jovens para a emigração forçada para Portugal, onde muitos deles vão tentar reorganizar-se para lutar contra o regime que se implantara.

A conquista da independência devia significar a transformação radical da estrutura económica, social e política para resolver os problemas das populações e quando isso não aconteceu, houve um afastamento das massas. Aliás, se acontecer algo agora em Bissau certamente ninguém vai à rua por causa desse afastamento”, disse o historiador na entrevista ao jornal O Democrata, que realiza uma série de entrevistas com diferentes personalidades políticas, historiadores, economistas e ativistas sociais, no âmbito da comemoração do 50º aniversário da independência nacional da Guiné Bissau, proclamada a 24 de setembro de 1973.

Sobre o assassinato de Amílcar Cabral, que muitos investigadores atribuem diretamente ao antigo Presidente da Guiné-Conacri, Sékou Touré, declarou que é verdade que o Ahmed Sékou Touré era muito crítico à liderança de Amílcar Cabral, sobretudo pelo fato de ele ter dado muita primazia às relações externas do PAIGC do que à luta armada propriamente dita, mas disse duvidar que tivesse coragem, no seu próprio território, de assassinar o Amílcar Cabral.

 “Sékou Touré criticou os problemas étnicos no PAIGC e pressionou-o a mudar a sua sede para o interior da Guiné, uma ideia que Cabral já vinha ponderando desde há muito, porque sabia que a queda do regime de Ahmed Sékou Touré significaria também o fim do PAIGC”, explicou, para de seguida avançar que o facto de ele ter sido crítico a Cabral não significa que tivesse tido condições para agir ou assassinar o Cabral.

 “Pode ter sido negligente e não ter contribuído para proteger Amílcar Cabral do seu assassinato, mas duvido que tivesse coragem de fazê-lo no seu próprio território, de assassinar o Amílcar Cabral”.

O Democrata (OD): A independência é a soberania do povo no plano interno e externo, de acordo com Amílcar Cabral. Passados 50 anos e olhando para a atual realidade económica, social e política da Guiné-Bissau, a independência seria ainda um mito ou uma realidade?

Julião Soares Sousa (JSS): Concordo e não concordo. Acho que não há motivos nenhuns para questionarmos a independência que conquistamos com algumas dificuldades e sacrifícios de milhares de pessoas que deram as suas vidas para essa causa. O que podemos questionar é se essa independência foi tangível do ponto de vista económico, político e social, sobretudo na defesa dos interesses das populações e das suas aspirações. Isso podemos questionar, porque o país tem vivido à sombra de ciclos de instabilidades ao longo de décadas. Não se deve questionar essa ideia da aspiração do povo guineense sobre a independência que conquistou em 1973, com a proclamação unilateral e depois formalmente em 1974, quando Portugal, depois de várias sessões de negociações, reconheceu a independência.

OD: A independência é tangível a nível político e social?     

JSS: Sim. Isso nós podemos questionar. Como dizia logo no início, a Guiné-Bissau viveu sempre à sombra de conflitos, às vezes têm a sua génese em termos pessoais, depois são catapultados para a esfera política, o que provocou uma grande instabilidade ao longo de várias décadas. Isso sim podemos questionar. De fato, esses conflitos internos não ajudaram em nada. O próprio Cabral dizia isso: “as populações querem o estômago cheio e mentes iluminadas. Precisam de pão”.  Era isso que estava a ser discutido nessa altura, mas que não se discutia porque houve sempre instabilidade política em todas as dimensões da vida nacional.

A Guiné-Bissau tem deficiências crónicas a nível de infraestruturas e não tem uma boa rede rodoviária. Se tivesse uma boa rede rodoviária, isso teria imediatamente implicações na esfera económica e comercial e traria mais emprego, certamente, criaria as condições para que as pessoas se autonomizassem em relação ao Estado, mas isso não tem acontecido, infelizmente. Porque há essa instabilidade crónica, que se transformou em assassinatos em alguns casos, como nós conhecemos ao longo da história em vários centros do país. Tudo isso não abona a favor da nossa independência. Agora a independência em si advém do fruto de uma entrega e sacrifícios dos nossos avós, pais, tios, as nossas famílias que deram as suas vidas para que hoje possamos arvorar a nossa bandeira e cantar o nosso hino nacional. A independência deve levar o povo a um processo de transformação local   para resolver aquilo que são as suas aspirações.  

OD: Professor, na sua opinião e de acordo com os elementos históricos das ideias de Cabral, este era o Estado que se sonhou criar há 50 anos?

JSS: Provavelmente não é. Amílcar Cabral pensava que quando se sacrificava de maneira como nós nos sacrificamos a nós, aquela geração que deu o seu todo pelo país que temos hoje, era para provocar uma revolução social que tivesse impactos em todas as esferas da vida social, económica e política. Quando tudo isso não acontece, põe em coisa muitas coisas. Com Cabral, certamente, não sei dizer agora se seria diferente, mas ia continuar a lutar para que as coisas fossem verdadeiramente diferentes. Amílcar Cabral tinha consciência que não se luta, nem se faz sacrifícios em vão. Esses sacrifícios devem catapultar-nos para outra dimensão ou fase de desenvolvimento. Quando isso não acontece hoje, começa até colocar-se dúvidas se realmente merecíamos   essa independência, embora creio que as coisas não devam ser colocadas nessa perspectiva.  

OD: Existem vozes críticas na Guiné que acham que era possível conseguir a independência por via de diálogo. Essas vozes acreditam ainda que a violência vivida pelos guineenses na luta e no período pós-independência mal gerida é uma das razões que levaram o país à estagnação, à constantes sobressaltos e golpes de estado?

JSS: É verdade. Nós conhecemos vários movimentos de libertação que queriam negociações com o governo colonial e houve tentativas no sentido de conversarmos com o governo português, à margem de outros movimentos como o PAIGC. O PAIGC também tentou essa via negocial, mas o regime colonial português, nessa altura não aceitou negociar com os movimentos independentistas. Foi isso exatamente que levou ao início do processo da luta armada. Se o governo português não aceita negociar… A luta armada começou com a perspectiva de que, com o início da guerra o governo colonial iria recuar e tentar negociar, mas isso nunca aconteceu, como sabem.

As primeiras negociações com o governo português vão ocorrer em 1974, em Londres, depois em Argel. Houve uma tentativa em 1971, mas era um grupo marginal de cá, em Portugal que queria tentar negociar a partir de Londres. Ninguém sabia se a ideia envolvia o Estado português, mas as negociações nunca tiveram lugar. A ideia era que se chegasse às negociações. Apenas a rigidez do regime colonial é que não permitiu que se avançasse. Aliás, a maior parte dos países africanos conseguiria aceder às independências por via negocial com os respetivos regimes coloniais. O único que não aceitou seguir as linhas pisadas foi o governo colonial português.

OD: Podemos admitir que a luta de libertação nacional que se fez na Guiné foi o resultado de vários sobressaltos e os golpes de Estado que se viveram no país também?

JSS: Sim. Só conhecendo a natureza do regime colonial, a violência física, armada e psicológica, pode-se concluir que sim. Isso levou o PAIGC a radicalizar as suas posições e todos os países africanos das antigas colónias portuguesas vão radicalizar as suas posições, porque houve essa negação por parte do regime colonial português, de sentar-se à mesa para negociar.  Portanto, foi isso que catapultou os movimentos para a luta armada, que mais tarde provocou essa necessidade de negociar, mas já na sua fase avançada da guerra, fase final.

O colonialismo, por causa dos seus mecanismos de coerção e das suas políticas, engendrou movimentos de luta de libertação que eram contrários, que depois catapultaram a luta de libertação para a independência nacional. Nas guerras de pacificação, houve muita violência sobre os nossos compatriotas. Portanto houve uma resposta anticolonial da parte dos movimentos a essa violência. A natureza da colónia portuguesa e as suas violências sobre as nossas populações e sobre os movimentos/grupos que queriam, de algum modo, implementar alguma igualdade dentro do sistema é que conduziu todo esse processo à luta de libertação nacional.

OD: O PAIGC completou, a 19 de setembro, 67 anos da sua criação este ano. É verdade que o PAIGC foi criado em 1956 ou tem outros dados históricos sobre esse assunto?

JSS: Toda gente sabe   qual é a minha opinião, que foi expressa no livro sobre o Amílcar Cabral, embora com algumas dúvidas. Aqui podemos admitir uma fundação formal e outra informal, mas creio que não é um assunto tão relevante. O que é importante é o papel que o PAIGC desempenhou nesse processo de liberdade. Tudo o que conhecemos e acompanhamos desde os finais dos anos 50 até à independência do país, um trabalho que vale a pena sempre revelar… Quem acompanhou a evolução do PAIGC, mesmo no processo de mobilização e de preparação para a luta armada? Tudo que se fez e todas as conquistas foram alcançadas, temos que dar o mérito ao PAIGC.

Acredito que não há nenhum movimento de libertação em África que tivesse sido criado nas condições que o PAIGC engendrou, quer em Canacri para levar o armamento do porto de Conacri   até às fronteiras da Guiné-Bissau, a criação de bases no interior da Guiné, as escolas e as bases nas tabancas e nas zonas libertadas,  todo  esse processo de idealização das massas e crianças  foi notável e devemos reconhecer  o extraordinário, que não estava ao alcance de todos os movimento de libertação que conhecemos em África. É um aspeto que nos deve orgulhar.

Acho que é muito mais importante do que saber se o Cabral nasceu ou não na Guiné, devido ao trabalho e dimensão que ele atinge. Há cerca de três anos, a BBC organizou um processo de eleições para a escolha de líderes mais importantes a escala global e o Amílcar Cabral figurou na segunda posição, mas ninguém quis perguntar se tinha nascido em Cuba ou na China ou onde quer que fosse, embora nós saibamos que efetivamente nasceu na Guiné. Porque se não tivesse nascido na Guiné, os colonialistas iam figurar isso para dividir ainda mais os guineenses e cabo-verdianos nesse processo.

Se os próprios colonialistas portugueses dizem isso e o regime colonial também que Cabral nasceu na Guiné, porque é tão relevante as pessoas estarem a discutir esse mesmo assunto. Temos um exemplo concreto de Che Guevara, que muita gente pensa que é cubano, não é. Mas à saída do aeroporto de Cuba vais encontrar uma grande estátua de Che Guevara como se fosse um cubano. Portanto devemos ultrapassar esse debate e penetrar naquele que me parece todo relevante, que foram as grandes conquistas que o PAIGC teve nesse processo de luta de libertação nacional, aí sim temos que dar mérito a esse grande trabalho feito por Amílcar Cabral.  

OD: O PAIGC sob a liderança de Cabral tinha um horizonte, o programa maior. Nisso teve grandes apoios diplomáticos de vários países. O que terá falhado de concreto no cumprimento do “programa maior” na edificação da nação depois da independência?

JSS: O que falhou, foram os próprios guineenses. No fundo, às vezes nós temos tendência para nos desresponsabilizarmos das coisas. Nós podemos responsabilizamo-nos por omissão, mas o que falhou é essa aproximação na altura entre o partido/Estado e as massas. Depois da independência, começaram a aparecer logo alguns problemas, que transformaram o Estado num Estado quase esquizofrénico, que tinha inimigos em quase toda a parte. As perseguições às pessoas e os fuzilamentos que houve até aos momentos mais recentes levou à quebra da paz social.

No início, parecia haver um entrosamento entre as massas e o partido/Estado, mas tudo desmoronou e a medida que o tempo foi passando, gerou uma rotura epistemológica, o que acabou por conduzir o alheamento do Estado completamente das massas e dos seus problemas. Uma revolução implica um processo transformativo, transformar a sociedade, o que não acontecia nessa altura. Isso foi gerando problemas atrás de problemas não só de ordem política, mas também de ordem económica e social que empurrou muitos jovens para a emigração forçada para Portugal, onde muitos deles vão tentar reorganizar-se para lutar contra o regime que se implantou.

A conquista da independência devia significar a transformação radical da estrutura económica, social e política para resolver os problemas das populações. Quando isso não acontece, há um afastamento das massas, aliás, se acontecer algo agora em Bissau certamente ninguém vai à rua por causa desse afastamento. O Estado não quer saber dos cidadãos, os cidadãos parecem afastar-se do Estado e não querem saber nada do que se passa a nível das lutas pelo poder na esfera política, isso é preocupante.

É preocupante, porque havendo alguém que queira regimentar essa massa, pode gerar outro tipo de violência. Para evitar isso, é preciso que rapidamente o Estado volte a reencontrar-se com os cidadãos, assumir a resolução dos problemas das populações para evitar que haja violência gratuita. Reparem que esse afastamento conduziu o Estado a um isolamento, esqueceu-se de tudo, do seu papel de resolver os problemas das massas e isolou-se nas suas lutas pelo poder na esfera política.

OD: O PAIGC foi um partido revolucionário ideologicamente virado para as massas populares. Acha que o atual PAIGC ainda mantém essas ideologias e estará em condições de corresponder aos desafios atuais do país, da África e do mundo?

 JSS: Espero que sim. O PAIGC continua a ser aquele partido que todos conhecemos, que tem raízes bem assentes no seio das massas populares e não deve ser uma tarefa única do PAIGC. Qualquer partido que queira ascender ao poder deve estar muito próximo das massas e assumir as suas preocupações, caso contrário não terá futuro.

OD: Continua em debate, a nível interno e externo, o assassinato de Amílcar Cabral.  Algumas vozes apontam que a dificuldade de coabitação entre as alas cabo-verdiana e guineense no seio do PAIGC terá facilitado o assassinato de Amílcar Lopes Cabral. Por exemplo, em 2014, um escritor cabo-verdiano acusou Ahmed Sékou Touré, ex-presidente da Guiné-Conacri de ter facilitado e encomendado o assassinato de Amílcar Cabral. O que apurou no seu estudo sobre o assassinato de Amílcar Cabral?

JSS: O assassinato de Amílcar Cabral pode ser analisado de forma leve. Não pode acusar sem ter provas. Essa é a minha opinião enquanto investigador. Muitas vezes é preciso separar a investigação académica da investigação policial e de outros tipos de investigação. A morte de Cabral parece ser um dos aspetos que aparece nesse trauma que ocorreu a 20 de janeiro de 1973, mas não o único. Pode ter sido um dos processos detonantes que provocou alguma cisão dentro do próprio PAIGC. O Momo Turé, quando fugiu de Bissau e chegou à Guiné-Conacri, uma das críticas que se fazia ao Amílcar Cabral era a questão relacionada à unidade da Guiné e Cabo Verde, que gerou uma cisão no PAIGC e se criou o Partido Africano para Independência da Guiné, sem Cabo Verde.    Pode ter sido uma das situações, mas temos que estar preparados para incorporar várias outras dimensões nesse processo, por ser um processo complexo. Estaria longe de estar a dizer que se o Ahmed Sékou Touré teria ou não ordenado o assassinato de Amílcar Cabral.

Se Ahmed Sékou Touré teria engendrado o assassinato de Amílcar, provavelmente teria vários outros problemas. A sede do PAIGC estava em Conacri e se se descobrisse que ele, de fato, tinha orquestrado a morte, teria a reação do PAIGC que não seria pequena. O PAIGC tinha as suas forças e as suas bases em Kundara, Candjafra e unidades militares em Boké, portanto a reação poderia ter sido outra e de grande dimensão. O que posso dizer é que o assassinato de Amílcar Cabral a 20 de janeiro de 1973 foi um plano elaborado no exterior e que envolveu muitos serviços secretos de alguns países que queriam, na minha perspectiva, destituir também o Ahmed Sékou Touré. A antiga potência colonial da Guiné-Conacri, a França, tinha tentado destituir o Ahmed Sékou Touré, porque o regime dele não lhe era favorável.

A invasão das tropas portuguesas a Guiné-Conacri em novembro de 1970, a ideia era destituir o regime de Ahmed Sékou Touré e, se calhar, decapitar o PAIGC e eliminar Amílcar Cabral. Acho que essas duas ideias, Ahmed Sékou Touré de um lado e Amílcar Cabral do outro, tinham o mesmo objetivo, atingir um para chegar ao outro. Porque depois do assassinato de Amílcar Cabral, houve ainda várias tentativas de decapitar o resto da liderança do PAIGC, justamente para evitar que a independência que o PAIGC tinha proclamado em setembro de 1973 ganhasse raízes e se afirmasse. É verdade que o Ahmed Sékou Touré era muito crítico à liderança de Amílcar Cabral, sobretudo pelo fato de ele ter dado muita primazia às relações externas do PAIGC do que à luta armada propriamente dita. Criticou os problemas étnicos no PAIGC e pressionou-o a mudar a sua sede para o interior da Guiné, uma ideia que Cabral já vinha ponderando desde há muito, porque sabia que a queda do regime de Ahmed Sékou Touré significaria também o fim do PAIGC. Para salvaguardar o PAIGC e a luta de libertação nacional da Guiné e Cabo Verde, ele quis mudar desde os meados 67 e 68 o secretariado do PAIGC, mas não havia condições.

Era preciso haver alguma proteção da aviação portuguesa e quando essas condições não estavam criadas, foi protelando essa situação. Ver as coisas de maneira isolada não nos ajuda a entender esse processo. As críticas de Ahmed Sékou Touré caíram mal aos representantes externos de outros países aliados do PAIGC, até porque não é tradição as pessoas falarem mal de alguém que já morreu. O fato de ele ter dito aquelas coisas não significa que tivesse tido condições para agir. Pode ter sido negligente e não ter contribuído para proteger Amílcar Cabral, mas duvido que tivesse coragem, no seu próprio território, de assassinar Amílcar Cabral. As futuras investigações sobre esse assunto poderão trazer mais novidades, se houver documentação suficiente para isso.    

OD: Está em voga o debate à volta da instabilidade política e governativa na Guiné-Bissau. Alguns atribuem a culpa a políticos e a militares, outros apontam falhas no sistema político e até defendem a mudança do sistema. Qual é a sua opinião?

JSS:  Acho que há uma tendência para de facto algum setor que defende muito à deriva para o regime presidencialista. Na minha opinião, seria um erro grosseiro, porque acho que o Presidente da República não podia imiscuir nas tarefas da governação. E eventualmente se houver algum erro, ele também seria empurrado para este buraco.

A única ideia é aprofundarmos o sistema semipresidencialista, de modo a garantir que haja de facto uma grande separação de poderes. Eu entendo a tentação de avançarmos para o regime presidencialista, mas continuo a defender que seria um erro grave, porque de facto o regime que temos agora é um regime misto. Este regime tem um bocadinho de carga presidencialista e tem uma carga semipresidencialista, mas muitas vezes o presidente da República vai conquistando alguns poderes, uma vez que há um vazio constitucional.

É verdade que podemos preencher esses vazios, mas não sobrecarregar o Presidente da República, porque ele deve assumir muito bem o poder de moderador. Quando houver problemas, ele deve ser a autoridade máxima para decidir esses problemas.

Este assunto não deve ser um debate leve, mas sim um debate muito aprofundado com o engajamento de todos os atores de setores da vida social e política com uma discussão séria para vermos, de fato, qual é o melhor caminho para a Guiné-Bissau. Na minha opinião, eu defenderia sempre um regime semipresidencialista puro em que haja uma boa separação de poderes, reconhecido pelas partes, porque só isso é que pode gerar um equilíbrio de poder dentro do nosso sistema político.

OD: Amílcar Cabral tinha uma visão sobre a educação do povo que inspirou grandes pensadores, à semelhança do brasileiro Paulo Freire. Qual o seu olhar sobre o setor da educação na Guiné Bissau?

JSS: Eu sempre defendi que devia haver uma escola pública muito forte e sem abrir as mãos de escolas privadas. Acho que a escola pública deve merecer a atenção do Estado e continuo a defender ainda que o investimento na educação deve ser a prioridade nacional. É claro que há uma guerra entre as prioridades e às vezes nós nos perguntamos se vale a pena investir na saúde ou nas infraestruturas.

Investir na educação significa que estamos a investir nas infraestruturas, na saúde, na economia e em todos os setores que são importantes para alavancar o nosso país. Acho ainda que a aposta deve ser muito vincada na formação de professores e na gestão das universidades para que o país possa formar quadros de valores.

Como sabe, hoje há uma grande disputa a nível internacional sobre a questão da formação dos quadros. Há países que têm mais condições e que vão recrutando jovens talentosos, significa que se nós não conseguirmos fixar os nossos quadros, vamos ter problemas sérios de desenvolvimento no futuro e já estamos a ter esses problemas.

É verdade que temos médicos no país, mas também há muitos médicos guineenses em Portugal. O país tem que investir na atração dos quadros e não deixá-los fugir. Se temos boas escolas é preciso pensar em como gerar emprego para fixar essas pessoas, sobretudo como pagar essas pessoas.

OD: O Senhor é um professor de história de reconhecida competência. Não acha que o país precisa da sua contribuição nesta missão da edificação da nação, sobretudo no setor da educação?

JSS: Eu acho que o país precisa de todos os seus filhos e não é uma determinada pessoa. A Guiné precisa de todos aqueles que estiverem preparados para contribuir digamos assim para o processo do desenvolvimento do país, acho que devem ser chamados. O desenvolvimento do país depende muito daqueles que estão dentro e também daqueles que estão fora.

A questão da instabilidade política ao longo de várias décadas foi gerando muita antipatia em relação aos quadros que estão fora. Nós precisamos de organizar e andar juntos de mãos dadas e só assim é que podemos oferecer a nossa contribuição como guineense para o desenvolvimento do nosso país.

Acho que todos os quadros guineenses no exterior devem ser chamados na medida das suas possibilidades para ajudar nesta grande tarefa de reconstrução nacional que ainda nem sequer começou.

OD: Aceitaria um desafio de lecionar na Universidade Amílcar Cabral, mesmo à distância?

JSS: Claro. Nunca me disseram nada e ninguém me chamou para este desafio, mas acho que também só se chama quando é necessário e creio que se calhar não é necessário… penso que qualquer guineense no exterior se sentiria contente e orgulhoso se fosse chamado para este desafio, para dar a sua contribuição.

Não conheço bem a universidade, mas se calhar tem um corpo docente já robusto e em número razoável e suficiente de docentes, por isso não tenha solicitado a contribuição dos seus quadros que estão na diáspora.   

Por: Assana Sambú/Filomeno Sambú
Conosaba/odemocratagb

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