Madina de Boé, considerado o berço da nacionalidade guineense por ter sido nesse local proclamada a independência da Guiné-Bissau, no ano em 1973, pelo primeiro Presidente da Assembleia Nacional Popular, João Bernardo Vieira, foi deixada no esquecimento total durante 47 anos, vivendo a população daquela localidade ao Deus-dará e longe das mudanças que, entretanto, ocorreram no país.
No quadro da celebração do Dia Nacional 24 de setembro, o jornal “Nô Pintcha” antecipou a data com uma reportagem no Leste do país, que deveria acontecer em Madina de Boé (Lugadjol), localidade mítica onde foi proclamada a independência da Guiné-Bissau em 1973, mas que, devido à péssima condição da estrada, os repórteres trabalharam em Gabu, o que os obrigou a ir à procura de alguns sobreviventes da independência.
O antigo combatente da Frente Leste, nomeadamente do Setor de Boé, Região de Gabu e residente na Secção de Sintchã N’Tombo, de nome Malique Bari, lamentou o abandono total a que foi votado pelos sucessivos governantes durante 47 anos da proclamação da independência.
Durante a entrevista com a equipa de repórteres do “Nô Pintcha”, ANG e a RDN, o ex-combatente Bari acrescentou que, apesar desse abandono, nunca se sentiu arrependido de ter aderido à luta armada para libertar o país.
Este veterano de guerra, que aderiu à luta armada em 1966, em Madina de Boé, lamentou que depois de ter expulsado os colonos portugueses, os sucessivos governantes deixarem os projetos de Cabral e passarem a pensar nos seus próprios benefícios, deixando os interesses do país para trás, o que paralisou por completo o processo de desenvolvimento.
Mesmo em regime de multipartidarismo, se o PAIGC tivesse seguido as orientações de Cabral, os partidos que surgiram depois nunca teriam força que hoje têm.
Para Malique, tudo vai de mal a pior para os que contribuíram para a libertação desta pátria. Recordou que durante a luta percorriam a pé de Fulamori até Gabu, carregando os cunhetes de balas debaixo de chuvas e sob picadas de mosquitos. As comidas eram colocadas em folhas de árvores. Se lembrarmos destes e mais sacrifícios por que passámos e o lugar onde estamos hoje, deixa muitas perguntas no ar.
“Se ganharmos a guerra, temos de reconstruir o país e isso seria o trabalho de todos nós, não só das forças armadas que libertaram a Guiné-Bissau”, dizia Amílcar Cabral.
Por seu turno, o antigo combatente Caro Queta, da frente Leste, afirma que assistiu à proclamação da independência em Boé, lembrando que os combatentes realizaram antes uma reunião, onde foram informados que chegou o grande dia de serem livres do jugo colonial.
Recordou, ainda, que saíram da reunião e foram até à fronteira com a República da Guiné, onde mantiveram encontro com os colegas que iam proclamar o Estado livre da Guiné-Bissau.
Queta disse que não estão satisfeitos em Boé, uma vez que havia projetos para relançar o setor, torná-lo numa cidade com infraestruturas modernas, mas hoje nem estrada existe.
Enquanto lugar histórico e onde foi proclamada a independência, esperava ver outro tipo de comportamento por parte das autoridades em relação a Madina de Boé. Mesmo nós, que pegámos em armas para expulsar os tugas, fomos esquecidos.
Caro Queta espera que haja a paz no país, porque se isso acontecer, os nossos filhos poderão ir à escola e terem uma vida melhor.
Régulo de Boé lamenta abandono total do berço da nacionalidade
José Abduramane Djaló afirmou que a situação é muito preocupante, porque o que pensavam de Boé como local de proclamação da independência e dos projetos que estavam em perspetiva de todos foram por água abaixo. Djaló lamentou que 47 anos após a proclamação do Estado guineense, o setor transformou-se num dos mais vulneráveis do país.
“Os donativos que o governo doou às populações de Boé, vítimas das calamidades causadas pelas fortes chuvas, ficaram pelo caminho devido às más condições das estradas, o que mostra que as coisas não estão bem”, disse Abduramane
O chefe tradicional contou-nos que, atualmente, as viaturas não podem circular naquela zona e que a jangada que fazia a travessia no rio Tchetche não está a funcionar, obrigando as pessoas a deslocar-se em pequenas pirogas e, depois, fazem-se transportar em motorizadas ou caminham para os seus destinos.
Por outro lado, apenas uma vez, salvo erro, é que a estrada que liga aquela localidade à povoação de Beli foi reabilitada. Os outros troços mantêm-se tal como estavam desde a época da independência.
Djaló afirmou que os grandes projetos de infra-estruturas foram simplesmente esquecidos pelos sucessivos governantes. Uma parte da população de Boé vive na vizinha República da Guiné, acrescentando que nessas localidades as pessoas preferem o franco da Guiné em vez do franco CFA utilizado na Guiné-Bissau.
Estamos cansados de implorar, mas vamos continuar a apelar ao Governo para que nos melhore as condições desse setor.
Antigo aluno do internato de Boé contou como era o internato
A equipa de repórteres falou também com um dos estudantes do internato de Madina de Boé, de nome Adulai Djaló, que lamentou o estado deplorável das infraestruturas daquela zona, tendo afirmado que a escola existiu por iniciativa do PAIGC e de Amílcar Cabral.
Djaló contou-nos que Cabral visitou aquela localidade em 1971, quando passou por uma tabanca de nome Sibidjan. Ao constatar que existia muitas crianças sem escola, houve necessidade de criar um internato local, uma vez que Boé já era uma zona libertada.
Foi assim que surgiu e o primeiro professor, um cidadão português de nome Duarte Campos, que tinha fugido para as matas a fim de integrar a guerrilha e combater contra o regime colonial do seu país de origem.
Houve um primeiro internato, entre 1969 e meados da década de 70, mas os estudantes foram de lá retirados porque, na altura, havia muitos bichos parasitas, que atacavam as pessoas nos dedos dos pés. Como não havia alternativa para sanear o problema, os alunos foram obrigados a dispersar-se.
A iniciativa da criação do internato era fazer com que as crianças fossem alfabetizadas, o que era um grande problema, uma vez que os mais velhos não tinham a noção de mandar os filhos para a escola.
Graças a um homem chamado Sori Djaló, que falava a língua local que é fula, foi quem convenceu os pais a deixarem um dos filhos a ir à escola, continuando os restantes a encarregar-se dos trabalhos de campo.
E foi assim que ele conseguiu levar algumas crianças, principalmente os que estavam próximas da escola, entre eles Aldjuma Sissé, Malal Sané e o irmão Talal Sané. Estes foram os primeiros a frequentar o internato.
Revelou que depois vieram outros alunos do Norte e do Sul para ingressar no internato, uma vez que Boé foi a primeira zona libertada. Posteriormente, Sori Djaló foi nomeado presidente da setor de Boé.
O internato chegou a albergar entre 500 e 600 alunos, que recebiam roupas e géneros alimentícios. Outras crianças, vendo como os alunos eram tratados, decidiram frequentar as aulas.
Adulai Djaló lembrou que a independência foi proclamada num local chamado “Balium”, que significa negro em dialeto fula. Em 1973, num campo onde jogavam a bola e que ficava perto do internato, foi instalada a tribuna de honra que recebeu os ilustres convidados que assistiram àquele grande acontecimento.
Lembrou ainda que Luís Cabral chegouhttp://jornalnopintcha.gw/ a afirmar que Boé seria a capital política e Bissau a capital comercial da Guiné-Bissau.
Este estudante realçou que falar hoje daquela localidade é uma tristeza devido às péssimas condições de vida em que vivem as suas populações. A terminar, disse que o primeiro Presidente após a independência, Luís Cabral, visitava muitas vezes o internato em Lugadjol.
Adelina Pereira de Barros
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