Apesar da turbulência permanente, há em Bissau jovens que não se limitam a esperar, que tentam ajudar o país a sair da política feita a tiro, do uso dos recursos de todos em proveito próprio.
Golpes, contragolpes, intentonas. O pára-não-arranca está estampado nos edifícios desbotados, manchados, na sucessão de lombas e covas das ruas, no rodopio de táxis antigos, amiúde a desfazer-se, e de “toca-toca”, carrinhas com tábuas corridas, a abarrotar de gente que luta por “um tiro kada dia”, isto é, uma refeição por dia. Quantos jovens acreditarão que pode ser diferente?
Aissatu Forbs Djalo não se conforma. Anda num esfrega-esfrega de segunda a sábado. Estuda na Faculdade de Medicina Raul Diaz Arguelles, apresenta um programa de saúde na televisão estatal, é secretária-geral do Conselho Nacional de Juventude, que faz advocacy junto do Governo nas questões de emprego, saúde, e educação, e presidente da Rede Nacional de Jovens Mulheres Líderes.
“Djitu ka ten”, repete-se nas bermas, a transbordar luta pela sobrevivência. “Não tem remédio”, quer dizer. Está a Guiné-Bissau condenada a permanecer na cauda do índice de desenvolvimento humano, a figurar na lista de Estados “frágeis”, “ausentes”, “falhados”? “Djitu ten ku ten”, acredita Aissatu, 24 anos acabadinhos de completar. “Remédio tem de ter”, quer dizer.
“A minha geração não é tão diferente das mais velhas. Muitos acreditam que só se forem deputados, ministros podem fazer a mudança”, diz Aissatu. Alguns filiam-se, sobretudo no Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) ou no Partido para a Renovação Social (PRS), os que tendem a ser mais votados. “Muitos estão parados, à espera [de uma bolsa, de um trabalho, de uma oportunidade para emigrar]. Poucos pensam em servir a comunidade.”
O poeta Edson Incopté pensa muito em servir a comunidade, em transformá-la. Dói-lhe a impotência, por vezes. “Não diria uma Guiné ideal. Diria uma Guiné onde visse as necessidades mais básicas [satisfeitas]. Falamos de saúde, de educação, de acesso a luz e água por todo o país, não só Bissau.”
Edson saiu de Bissau aos 13 anos. A irmã fora atropelada. A mãe levara-a para Lisboa, para ser tratada, e decidira ficar em Portugal. O rapaz aterrou em 2000 e em 2001 morreu-lhe o padrasto. “Éramos três filhos e a minha mãe. Não foi fácil”, recorda. Findo o 9.º ano, passou a dividir o tempo entre o curso técnico-profissional de informática e o trabalho num restaurante de comida rápida.
Já contava 20 anos quando tornou a pôr os pés em Bissau. Sentiu-se esmagado pela pobreza. Era como se a encarasse pela primeira vez. Nada o perturbou tanto como a sorte das crianças — “As que andavam o dia inteiro ao sol, com uma bandeja na cabeça, e as que passavam o dia inteiro descalças” — e a “inércia” dos jovens. Via os amigos sentados, dia após dia, numa “bancada”, a discutir o estado do país. Que faziam para mudá-lo? Podiam, pelo menos, apanhar o lixo que se amontoava perto das casas, mondar as ervas que se intrometiam nos caminhos? “Comprometi-me a fazer alguma coisa, o mínimo que fosse, para mudar o cenário, mas também a mentalidade.”
Edson tem agora 28 anos e uma licenciatura em Estudos Africanos. Voltou no princípio deste ano como membro da Academia Ubuntu, um projecto do Instituto Padre António Vieira destinado a capacitar jovens com elevado potencial de liderança. “Nós trabalhamos a filosofia da liderança servidora: estar para servir, não para se servir. A ideia é pegar nos jovens que já estão comprometidos com a comunidade e através deles tentar chegar a outros. Multiplicar as experiências."
Parece-lhe “um caminho possível” para sair da encruzilhada de problemas em que o país se transformou. Para lá do recuo do Estado, incapaz de garantir saúde, educação, justiça, segurança, há a pobreza, a impreparação, a fraca estrutura económica, a dependência da ajuda externa, o crime organizado, a corrupção, a impunidade. E as rivalidades étnicas. E a insubordinação das forças armadas. E uma peculiar noção de legitimidade que remonta à guerra colonial. “Há a ideia que o envolvimento na luta pela libertação dá direito a exercer poder, a ser privilegiado”, explica. Acha que as novas gerações têm o dever de reconhecer o esforço, o sacrifício, a abnegação da geração que libertou o país, mas também de fazer o corte necessário. “Temos de privilegiar o interesse nacional em detrimento dos nossos interesses particulares.”
Planearam trabalhar com 50 jovens — falar-lhes do exemplo de Nelson Mandela, Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Gandhi, Aung San Suu Kyi, Amílcar Cabral, Aristides de Sousa Mendes e dar-lhes algumas ferramentas de elaboração e gestão de projectos. Candidataram-se cerca de 400 jovens. Uns tinham ideias concretas, outros nem sabiam ao que iam, sequiosos que estavam de formação.
Reformar os fardados
Binta Correia Sonco Sabali seguiu a melhor amiga, Deusa Samuel Cabral. “Ela me ligou. ‘Olha, precisamos de ir inscrever numa formação.’ Eu disse: ‘Que tipo de formação?’ ‘Eu não sei. Quando o assunto é formação, temos de ir.’ Eu disse: ‘OK, se é formação, eu topo.’” Foi uma correria para entregar a carta de motivação e a carta de recomendação a tempo. Só na entrevista percebeu a que se tinha candidatado.
A dupla de enfermeiras ficou no conjunto de seleccionados, que acabaram por ser 70. Organizados em grupos, tiveram todos de se pôr a pensar em projectos de empreendedorismo social. O programa europeu de Apoio aos Actores Não Estatais (UE — PAANE) financiou o arranque dos nove melhores. Um deles foi o Bem servir, de Binta e amiga, que trabalham no posto médico do Ministério da Administração Interna, e se aliaram a um capitão das Forças Armadas, Abdul Cadre Indjai.
“Eu tinha pavor dos fardados”, relata a rapariga, de 24 anos. “Têm nomes de que são maus, gostam de torturar as pessoas.” O sentimento é comum no país. “Quando o assunto é fardados, as pessoas já ficam em alerta. É só ouvir dois ou três juntos. ‘Ah. Estão armando de novo. Estão aprontando.’”
Dizem os peritos que o exército revolucionário nunca se transformou num exército republicano. As intervenções são constantes desde o conflito político-militar de 1998/1999, que acabou com 18 anos de poder absoluto de “Nino” Vieira. Desde então até 2013, o jornalista e estudioso Pedro Rosa Mendes contou “dez primeiros-ministros eleitos sem terminar o mandato, quatro chefes de estado-maior, todos afastados por levantamentos militares sem completar o mandato (e dois foram assassinados em funções pelos militares), e três presidentes da República e três presidentes interinos designados em virtude de sublevações militares”.
Ponto assente que a reforma dos sectores de defesa e segurança é fundamental. Que contributos poderiam dar Binta e os amigos? Desenvolveram um projecto de sensibilização/formação sobre cidadania e liderança para “fardados”. “Eles precisam servir a pátria. Eles precisam ser cidadãos com visão, não [estar] sempre [a] ser turbulência no país”, defende ela. É por aí que o país pode estabilizar e desenvolver-se? “Eu acho que sim. . Mas, se cada um fizer um pouco, vamos mudar, sim.”
Da última vez, não foram os militares. E o Governo eleito em 2014 até co-organizou com a União Europeia e o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas uma conferência internacional de dadores que lhe rendeu a promessa de cerca de mil milhões de euros. “Tudo indicava que iríamos começar a construir o nosso futuro”, suspira o sociólogo Dautarin Monteiro da Costa, de 34 anos. Em Agosto deste ano, o Presidente da República, José Mário Vaz, demitiu o Governo liderado por Domingos Simões Pereira e nomeou Baciro Djá, terceiro vice-presidente do PAIGC, contra a vontade dos órgãos dirigentes. O Supremo Tribunal de Justiça declarou a decisão inconstitucional. Pela quarta vez, o primeiro-ministro é Carlos Correia, antigo combatente, agora com 81 anos.
“O processo de ruptura vai demorar mais tempo”, lamenta Dautarin. A proclamação da independência, numa mata de Lugadjol, na região de Boé, em 1973, não se fez só em nome da liberdade, também do desenvolvimento. “Nós temos de aproveitar o sonho, a utopia dos grandes. Nós tivemos aqui grandes homens, grandes mulheres, que sonharam o país, que lutaram por ele, a começar por Amílcar Cabral. Ele via a Guiné integrada num continente que precisava de se levantar para criar o seu próprio desenvolvimento. E somos uma sociedade de mãos estendidas que quando quer arranjar uma perna de uma mesa vai pedir financiamento.”
“Estamos mais preparados que os nossos pais”, acredita o sociólogo Miguel de Barros, de 35 anos. “Falamos quantas línguas? Dominamos as tecnologias. Temos autonomia de reprodução de conhecimento. Temos mobilidade. Qual é o problema? Esvaziamento de formação humana, ter a percepção do processo histórico no qual estamos, ter uma formação ideológica, um sentido de luta.”
"O futuro depende de nós"
Desde 1994 que Miguel de Barros não vê uma grande manifestação juvenil nas ruas de Bissau. Não é só falta de hábito. “A capacidade de autonomia económica é fraca e isso retira as possibilidades de mobilização efectiva e contínua. As pessoas nem têm dinheiro para financiar a refeição diária quanto mais para uma mobilização com impacto em questões estruturantes”, diz. Há outros entraves. Num país pequeno, o controlo social tem muita força. E falta o tal sentido: “Para quê que lutamos?”
Parece-lhe que algo mudou depois do golpe de Estado de 2012. Pessoas com formação académica, conhecimento do país, experiência profissional criaram um movimento cívico: o Movimento de Acção Cidadã — Pensar pelas nossas próprias cabeças, andar com os nossos próprios pés. Dialogaram com a sociedade. Discutiram eleições, democracia, cidadania. Em muitos lugares, perguntaram a quem com eles se quis sentar: “O que querem? Até que ponto estão disponíveis para mudar o país?”
Vai ficando claro que, como escreve Pedro Rosa Mendes, o desenvolvimento exige paz e reconciliação e que a paz e a reconciliação não reclamam apenas reforma da defesa, da segurança e da justiça, mas também luta contra a pobreza, luta contra a violência, luta contra a impunidade, na síntese de Cabral, “luta pelo povo”.
“Acho que já há consciência que a transformação não vai ser trazida”, avalia Miguel de Barros. “Acho que antes muita gente acreditava que a comunidade internacional ou o sistema político iam resolver os nossos problemas. Acho que agora há uma consciência forte de que o futuro depende de nós e muita gente começa a achar que o futuro é agora. Isso tem permitido o ressurgimento ou nascimento de associações juvenis.”
Uma das grandes novidades é a Rede Nacional de Jovens Mulheres Líderes, nascida no ano passado, na sequência de uma assembleia geral da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental. Aissatu, a presidente, não se conforma. Não se conforma com a violência de género, a propagação de doenças infecto-contagiosas, a mortalidade materno-infantil, o analfabetismo, a falta de formação...
Num instante nasceram clubes de “meninas para meninas” em 13 bairros de Bissau. Já não se limitam a fazer sessões de esclarecimento sobre temas de direitos humanos. “Tínhamos uma formação de violência de género. Elas diziam: ‘Eu não posso [sair dessa relação], dependo do meu namorado para pagar escola, para pagar necessidades básicas, não tenho como me sustentar.’ Então nós dissemos: ‘Vamos ver como as meninas podem fazer alguma coisa para evitar essa dependência’”, conta ela.
Aproveitaram a Academia Ubunto para pôr aquela ideia a andar. Agora, no Bairro Caracol, num edifício térreo, verde por fora, cor-de-rosa por dentro, entre outros com cobertura de palha ou zinco, virado para uma rua de terra batida, sem iluminação pública, com os esgotos a céu aberto, há a Casa de Oportunidades. Numa sala, raparigas aprendem corte e costura. Noutra, raparigas frequentam seminários temáticos. Já falaram de prostituição, estão a falar de saúde sexual e reprodutiva, hão-de falar de elaboração e gestão de projectos, empreendedorismo social, liderança. “Sei que podemos [fazer diferente] principalmente as meninas”, diz uma das formandas, Mónica Mário Gomes, de 16 anos. “Acho que as meninas é que vão mudar isto.”
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