A Guiné-Bissau comemora no próximo dia 24 de Setembro os 50 anos da sua independência. Neste quadro, a RFI propõe até domingo uma série de reportagens e entrevistas alusivas à História do país e em particular ao período da luta de libertação.
Antes disso, recuamos um pouco no tempo e neste que é o segundo episódio da série, abordamos a história do comércio de escravos pelos portugueses na Guiné-Bissau, algo que praticaram desde que chegaram à região em meados do século XV.
Logo nessa época, o historiador português Gomes Eanes de Zurara, na sua "crónica da Guiné", relatou a chegada a Portugal de escravos da Guiné nos seguintes termos : "Começaram os marinheiros a tirar os escravos que tinham trazido para os levarem como lhes fora mandado (...)Uns tinham as caras baixas e os rostos lavados em lágrimas, outros estavam gemendo dolorosamente, (...) outros faziam as suas lamentações em maneira de canto (..).Mas, para a sua dor ser mais acrescentada, chegaram os que estavam encarregados da partilha e começaram a separá-los uns dos outros, a fim de fazerem lotes iguais. Por isso havia necessidade de se separarem os filhos dos pais, as mulheres dos maridos e os irmãos uns dos outros (...). As mães apertavam os filhos nos braços para não lhes serem tirados".
Até meados do século XIX, milhões de pessoas foram levadas à força da Guiné-Bissau para o continente americano, tendo inclusivamente sido criadas no século XVII grandes companhias de navegação e comércio como a Companhia de Cacheu e Rios da Guiné.
A nível da Guiné-Bissau, a cidade de Cacheu, no noroeste do país, foi o ponto onde se centralizou este tráfico.
Em 2016, foi inaugurado naquela cidade um memorial da escravatura. Por detrás da criação deste museu está a ONG guineense ‘Acção para o Desenvolvimento’. A RFI falou com Jorge Handem, secretário executivo desta entidade, que começou por explicar a forma como eram capturados rio acima os escravos, geralmente prisioneiros de guerra, Jorge
"Eram lutas intensas. Mas com o apoio de alguns nativos nossos, nomeadamente pessoas de influência, chefes de aldeias (...). Ás vezes, as pessoas influentes recebiam em troca alguns materiais, alguns produtos que faziam falta, nomeadamente arroz, espelhos, açúcar, óleo, tabaco, até roupas, em troca das pessoas. Certas pessoas, ao assumirem a consciência de que iam e que nunca mais voltavam, apresentavam resistência e as pessoas começaram a se organizar, criando focos de revolta", conta o dirigente da ‘Acção para o Desenvolvimento’.
Questionado sobre a dimensão assumida por Cacheu na história do comércio de escravos no país, o estudioso refere que "Cacheu era um ponto de partida devido à sua situação geográfica. Fica situado junto ao rio Cacheu, ao pé do oceano, onde a viagem é mais fácil, perto de Cabo Verde que era o ponto de concentração dos escravos para depois seguirem os destinos finais".
Dada a importância passada de Cacheu no tráfico negreiro mas também como foco de resistência, Jorge Handem, que pretende agora ter o apoio do governo guineense e de organizações internacionais no sentido de valorizar o memorial e criar uma linha de geminação com a ilha de Gorée, no Senegal, com a Cidade Velha de Cabo Verde e com o Brasil, enumera as várias actividades desenvolvidas pela estrutura que tutela, nomeadamente seminários, conferências e festivais.
O responsável sublinha sobretudo que "a 'Acção para o Desenvolvimento' tem tentado convencer o governo a utilizar o tema da escravatura e da História como sendo um conteúdo curricular nas escolas". Na optica do estudioso, as jovens gerações "têm muito pouca informação sobre essas questões históricas. Daí, o memorial tem jogado esse papel fundamental de tentar contar essa história e ir buscar a comunidade jovem, através de visitas de estudo e através de visitas de intercâmbio".
Situada junto ao rio Cacheu, não muito longe do mar, a cidade do mesmo nome parece quase adormecida. Junto ao forte de onde partiam os escravos, pode-se hoje encontrar pescadores a concertar os seus barcos e a alguns metros, nas antigas instalações da casa comercial Gouveia, encontra-se o Memorial da Escravatura.
Ao evocar o impacto que teve a instalação do memorial em Cacheu, Pascoal Gomes, jovem responsável administrativo e guia nesse museu refere que "a comunidade recorda uma coisa: antes do surgimento do Memorial da Escravatura, o próprio projecto fez durante pelo menos seis anos a divulgação da história (...). A partir da abertura do memorial da escravatura, Cacheu tornou-se mais visível a nível nacional, uma das cidades mais visitadas em termos turísticos, em termos académicos, graças à existência do memorial da escravatura. Trouxe uma coisa que as pessoas querem conhecer: a nossa história, a nossa cultura, a nossa identidade".
O técnico de turismo que não esconde o seu sentimento de orgulho por se inserir neste projecto, também considera que "a Guiné-Bissau precisa de mais um grupo de jovens com qualidade, com experiência, com sabedoria para ensinar muitas e muitas gerações para que, no futuro, se sinta que a Guiné-Bissau tem uma história que as pessoas conhecem da melhor forma".
Conosaba/rfi.fr/pt
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