Assim vai a saúde do meu povo...
Recentemente
integrei uma equipa de profissionais de saúde que se deslocou à Guiné-Bissau
para uma missão de prestação de cuidados de saúde, que teve como local de ação
o Hospital Nacional Simão Mendes (HNSM), o principal hospital do país.
É
do senso comum o preceito de que a saúde é o bem maior do indivíduo e, no final
de tudo, de um país, do seu povo. Um país que se projeta para o futuro tem de
investir na saúde do seu povo, sob pena de não haver futuro. Dito isto, não me
resta outra hipótese, que não concluir (pela força da lógica), após uma breve
reflexão, que o futuro da existência do povo guineense pode estar em causa.
Digo “pode estar” porque o retrato que aqui exponho é baseado apenas na
realidade observada no HNSM, que, no entanto, recordo, é o maior e o principal
hospital do país (cabe a cada um tirar as suas inferências).
Sendo
o hospital de referência nacional, foi preocupante constatar enormes deficiências estruturais e organizacionais. A começar pelo espaço físico.
O HNSM é um hospital construído há várias décadas, ainda na época colonial, e
projetado para servir um número limitado de população. Atualmente, a população
que serve certamente multiplicou-se, mas as infraestruturas são basicamente as
mesmas, acrescentando o desgaste próprio do tempo e do uso. As condições
sanitárias são praticamente inexistentes. O próprio odor que se sente no ar,
mesmo na periferia do hospital, faz-nos antever a dura realidade do seu
interior. Esse odor certamente é resultado da mistura do sangue, suor, lágrima,
dor, medo, gritos, desespero e ainda esperança de um povo. Trago comigo esse
odor, pois tão cedo não se esquece. Há falta de espaço para tudo. Doentes sentados
ou deitados lado a lado, nesse companheirismo involuntário de partilha de
enfermidades. E quando há espaço, faltam cadeiras ou macas. Na Guiné-Bissau a
relação com o chão tem um significado literal, pois na vida e na morte é o fiel
amigo do corpo e da alma.
Corpos sentados ou deitados no chão é uma visão
recorrente. Outra situação “imoral” que deve ser denunciada, é a falta de
recursos materiais, mesmo os mais básicos. Falo essencialmente de alguns meios
complementares de diagnósticos e de tratamentos. E este último aspeto é deveras
preocupante, pois é revelador do drama que o povo vive neste momento. Apenas
alguns exemplos... No Serviço de Urgência (local vocacionado para avaliar e
atuar com celeridade quando a vida está em causa), qualquer ato diagnóstico e
terapêutico (independentemente da gravidade da situação) só pode ser executado
após o doente (ou acompanhantes) adquirir os respetivos elementos necessários,
por mais básicos que sejam. Ou seja, se o doente estiver com febre, tem de
comprar o antipirético; se estiver desidratado, tem de comprar o soro e todos os
acessórios para sua administração (sistema de soro, cateter, compressa, adesivo...);
em caso de dor, idem.
As perguntas
que se impõem neste momento são: e se o cidadão não tiver possibilidade de adquirir
o necessário? E que serviços mínimos o hospital garante ao cidadão que a ele
recorre? Deixo as respostas à vossa imaginação. A falta de recursos humanos
(médicos, enfermeiros, auxiliares de ação médica, serviços administrativos,
etc.) é flagrante. Dois médicos sénior por turno de urgência, para acorrer a um
fluxo constante de doentes. Para além dessas deficiências estruturais, acresce-se
ainda graves deficiências organizacionais, nomeadamente a falta de coordenação
entre os serviços (que funcionam quase independentes dos outros), entre as
classes médicas, enfermagem e auxiliares da ação médica. Em suma, uma ausência
de liderança! E neste panorama, o caos vai reinando...
Naquela conjuntura, dois pensamentos conflituantes apoderaram-se
da minha mente. Por um lado, interrogava-me sobre a existência de um poder divino,
e caso ele existe, se a Guiné-Bissau estará incluída na sua agenda.
Ao mesmo
tempo, tive uma revelação: a sobrevivência deste povo só poderá ser imputada a uma
intervenção do além.
No semblante do povo, era patente um pedido de socorro que não
conseguia verbalizar, pois consta que se resignou aquilo que acredita ser o seu
destino... o sofrimento. Vieram em massa, de todos os cantos longínquos do
país, para se entregarem aos cuidados desses doutores que de tão longe vieram,
e de quem nada ou praticamente nada sabiam. Mas não importava!
É neste panorama descrito que a nossa equipa, composta na sua
maioria por guineenses (sinais dos tempos? assim espero!), trabalhou, lado a lado
com os colegas locais. E foi uma revelação constatar mais uma vez que uma
equipa treinada, motivada e coordenada é funcional em qualquer cenário, e a
Guiné-Bissau não é exceção.
Pude
constatar o esforço sublime de muitos profissionais de saúde locais, que dão o
seu melhor para evitar uma catástrofe certa. Profissionais jovens,
inteligentes, interessados, determinados, com fome de aprendizagem. Olhares
curiosos e atentos. São os soldados sacrificados da linha da frente. Merecem
toda a minha admiração e respeito. A todos eles, deixo aqui a minha palavra de
coragem e incentivo a darem sempre o melhor de si, focados na vossa missão, que
é servir o nosso povo.
Aos
nossos líderes, e por este ser um período propício a balanços e reflexões (mais
profundas) sobre opções governativas (ou não governativas) que têm sido tomadas
ao longo das últimas décadas, quero deixar um pedido especial: cuidem da saúde
do nosso povo, pois estarão a cuidar do futuro da nossa nação.
Aos
profissionais de saúde guineenses espalhados pelos quatro cantos do mundo, que
procurais unir-vos, de forma a encontrar a melhor estratégia para que, em
colaboração com os agentes locais, possam contribuir para mitigar a dramática
situação que o povo da Guiné-Bissau enfrenta no domínio da saúde.
Se
ontem foi possível, hoje também é! Afinal, somos feitos da mesma matéria prima.
21
de novembro de 2018
Hans
Dabó
(Médico,
Pneumologista)
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