Em entrevista à DW África, Justino Pinto de Andade faz um balanço da independência de Angola, dos sonhos na luta pela libertação e dos 40 anos do 25 de Abril. Também relembra a vida na prisão do Tarrafal, em Cabo Verde.
A Revolução dos Cravos pôs fim à ditadura em Portugal. Também para as colónias, o 25 de Abril de 1974 criou o caminho para a liberdade. Para Angola, foi a pólvora inicial de uma guerra civil, que duraria 30 anos.
À frente da Luta de Libertação estava Justino Pinto de Andrade, na época um estudante de medicina que trocou a universidade pela ideologia de viver numa nação independente. Depois de passar oito anos preso e ter vivido por dois anos como deportado político, ele é atualmente presidente do Bloco Democrático, partido na oposição, e professor da Universidade Católica de Angola.
Nesta entrevista concedida à DW África em Luanda, Justino Pinto de Andrade revela como deixou a universidade para se tornar um revolucionário, seus sonhos na juventude e o que pensa de seu país atualmente.
DW África: Onde estava no dia 25 de Abril de 1974?
Justino Pinto de Andrade: Eu estava em Cabo Verde como preso político. E já estava preso há cerca de cinco anos na cadeia do Tarrafal. Tomei conhecimento do 25 de Abril não propriamente no 25 de abril, mas uma semana depois. Durante aquela semana, fez-se completo silêncio sobre o que se estava a passar em Portugal. Foi apenas no dia 1 de maio que nós, os presos do Tarrafal, fomos avisados que tinha havido um golpe de Estado em Portugal, que ficou conhecido como a "Revolução dos Cravos". Foi neste dia também que nós saímos da cadeia.
DW África: Ainda se lembra do dia em que recebeu esta notícia, de que um golpe de Estado havia trocado o poder em Portugal?
JPA: Era a primeira vez, naqueles anos todos, que nós ouvíamos o barulho, as vozes da população do lado de fora do campo [do Tarrafal]. Nomeadamente: Viva a independência! Viva Angola! Viva Guiné! Viva Cabo Verde! Viva FRELIMO! Viva PAIGC! Viva MPLA! Então, percebemos que alguma coisa teria acontecido relativamente a nós.
DW África: A informação sobre a troca de poder foi dada pelo diretor do Tarrafal. Ainda se lembra do que ele disse?
JPA: Disse-nos que tinha havido uma mudança de Governo. “O professor Marcelo Caetano abdicou do cargo de presidente do Conselho de Ministros,” palavras dele, “e então uma junta militar assumiu o poder em Portugal.” Perguntei ao diretor do campo: “Foi uma passagem entre amigos, ou foi, como geralmente chamamos, golpe de Estado?” E então, a expressão que o diretor do campo usou foi: “Não, não, não, não. Golpe de Estado, não! Golpe de Estado, isso é em África!”
DW África: Conte-nos sobre como Justino Pinto de Andrade, na época um estudante de medicina, foi preso em Luanda e depois levado para a prisão do Tarrafal, em Cabo Verde!
JPA: Nós pertencíamos a um grupo clandestino. Chamávamos o Comité Regional de Luanda – CRL – do MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola], e nós éramos os líderes desse comité regional. Fomos presos pela PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado], ao fim de diversos atos de perseguição pela polícia política portuguesa. Eu fui condenado a oito anos de cadeia, com hipótese de prorrogação do prazo sob a forma de medidas de segurança. Fiquei cerca de cinco anos preso. Eu tinha 21 anos quando fui preso e tinha 22 anos quando fui para o Tarrafal.
DW África: Ouvi dizer que para se comunicarem, os presos criaram uma rádio dentro da prisão do Tarrafal. Como funcionava a troca clandestina de notícias?
JPA: Havia um buraco no banheiro. E era neste buraco que colocávamos a nossa correspondência e onde íamos recolher a correspondência deixada pelos outros companheiros. Era assim que nós nos informávamos sobre quem estava nas outras casernas, há quanto tempo estava, quantos anos tinha apanhado de cadeia, a que família pertencia, em que região de Angola tinha nascido. Portanto, essa correspondência permitia-nos nos conhecermos sem, contudo, termos uma relação pessoal e direta.
DW África: O que lhe marcou na vida do dia-a-dia na prisão do Tarrafal?
JPA: Eu, um jovem de 22 ou 23 anos, estudante universitário, filho de uma família considerada e respeitada, a ver aqueles homens de origem humilde, camponeses, homens que foram presos nas zonas rurais, que viram as suas aldeias serem incendiadas, eles contávam-me isso. Recordo-me deles sempre com muito carinho, com muita saudade. É a imagem mais simbólica que tenho é dos meus companheiros, que não iriam usufruir nada com a independência porque eles eram homens poucos, homens simples. Quando procuro saber o que era feito deles, e saber que o Fulano morreu assim, o Ciclano morreu assado e morreram todos assim, violentamente. Para mim é a imagem mais triste.
DW África: Na sua opinião, o que a Revolução dos Cravos significou para Angola?
JPA: A ideia que nós tínhamos, era de que a luta [de libertação] estava a desenvolver-se. Afinal, não era assim. Pelos vistos, os Movimentos de Libertação viviam momentos difíceis aqui em Angola durante a luta e o 25 de Abril permitiu uma viragem que depois conduziu à independência. É evidente que eu, durante aqueles anos, à medida em que os anos foram passando, fui percebendo que as coisas estavam difíceis. Tínhamos a ideia de que os companheiros continuavam a progredir no terreno, que a tropa portuguesa estava numa situação difícil e, depois, quando venho [para Angola], e começo a ouvir as pessoas falarem e a ler a informação que me é dada, digo, afinal nós estávamos numa situação difícil. Portanto, eu saísse de lá da cadeia com muitos anos de idade e não com 26 [anos] como saí.
DW África: Sr. Justino Pinto de Andrade, como avalia o seu próprio papel na luta de libertação em Angola?
JPA: O papel típico de um jovem naquela época que ambicionava não ser colonizado e, por isso mesmo, sentia a obrigação de contribuir para o derrube do regime colonial. Eu, pessoalmente, não me sentia em condições de continuar a viver na condição de colonizado. Eu achava que a condição de colonizado, para além de tudo, também era humilhante. Por isso mesmo, decidi envolver-me de forma séria no processo da luta de libertação nacional.
DW África: E hoje, quase 40 anos depois da independência, como olha para o seu país?
JPA: Olho com um misto de alegria, por um lado, porque fomos independentes. Por outro lado, com um misto de tristeza, porque não foi isso que nós pensamos que iria acontecer. Embora deva dizer que, quando estava na cadeia e convivia com presos angolanos provenientes de várias origens, percebi que o processo pós-independência iria ser complicado, que iríamos ter conflitos entre nós.
DW África: O que tinha sonhado para Angola que não vê acontecer no seu país?
JPA: Eu pensava num país que iria aproveitar todo o seu potencial material e humano, que iria desenvolver processos de solidariedade que permitisse um desenvolvimento para todos, mais equilibrado, mais abrangente. Hoje, sinto que, afinal, muitos dos nossos companheiros queriam apenas a independência. De tal maneira que quando viemos para Angola, o que aconteceu foi que nos matamos uns aos outros. Eu sou um sobrevivente, porque grande parte dos meus companheiros morreu.
DW África: Então se os ideais não se cumpriram, o que a independência trouxe para Angola?
JPA: Teoricamente trouxe o poder para os angolanos e isso já é uma boa conquista. Mas nós sentimos que este poder não foi bem usado, porque afinal temos angolanos que oprimem outros angolanos e de forma, às vezes, até mais violenta do que aquela que era feita pelos portugueses. A violência que eu assisti na cadeia pós-independência em nada se compara com aquilo que eu assisti no período colonial. E isso para mim é muito chocante. Sobretudo porque eu vi companheiros meus da luta de libertação a irem ser fuzilados e eles não mereciam ser fuzilados.
DW África: Na sua opinião, qual significado tem o fato de Angola ter sido a última colônia a se tornar independente?
JPA: O colonialismo português tinha um engajamento económico, social e também político maior do que aquele que tinha nas outras colónias portuguesas dada a extensão de Angola, dada também a riqueza potencial que Angola possuía. E isso fazia com que os portugueses não aceitassem entregar de mão beijada a sua jóia da coroa. Por outro lado também, deveu-se ao fato de o processo da luta de libertação em Angola ter sido um processo mais complexo e o poder colonial teria que dialogar, negociar com os diversos interlocutores que se apresentavam no terreno.
DW África: Em que medida a luta pela independência é instrumentalizada e usada para legitimar o poder de grupos e pessoas específicas em Angola?
JPA: Não têm outra forma de legitimar o poder. O único argumento que têm para legitimar o poder que têm é ter lutado pela independência. O processo de luta pela independência, no fundo, transformou os angolanos em prisioneiros deste poder. Nós não fomos libertados, fomos aprisionados. Aqueles que ganharam utilizam o país como se fosse uma conquista de guerra, um troféu. Sinto que há aqui uma pessoalização do poder. Uma pessoalização que depois querem transferir para os seus descendentes, ficando sempre no mesmo círculo.
DW África: Diante de todos os esforços que fez pela independência, seus ideias, sua luta, as dificuldades que enfrentou, valeu a pena?
JPA: Só o fato de nunca me sentir bem na condição de colonizado faz-me assumir como tendo valido a pena deixar de ser colonizado. Mas não me sinto bem como escravo de um poder totalitário como esse. Penso que nós merecíamos melhor. Eles portam-se selvaticamente contra as pessoas. Usam os órgãos de defesa e segurança sem qualquer limite e penso que este é o grande mal do pós-independência.
DW África: Ficou alguma ferida aberta?
JPA: Não é um ferida aberta verdadeiramente. É algum desencanto. Sobretudo, no fundo, o que me custa é saber que perdi, durante a luta, amigos e companheiros que sonharam como eu sonhei com um país melhor, deram a sua vida para nos libertarmos e hoje temos quem aprisionou o país.
DW.DE
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