Estou sentado no meu gabinete no Ministério da Educação, olhando para a agenda do dia que a minha Secretária acabara de colocar à minha frente, quando o estridente toque do telefone desviou a minha atenção.
– Senhor Ministro – disse uma voz meio rouca do outro lado da linha – é do Protocolo da Presidência da República. Terá que estar no aeroporto às dez horas. O Presidente vai chegar.
Irritado, olhei para o relógio na parede à minha frente. Eram oito horas e trinta cinco da manhã. Sabia que, como tantas vezes no passado, o meu dia estava estragado e a minha agenda, minuciosamente preparada pela minha Secretária, tornara-se inútil.
As viagens do Presidente Kumba Yalá tinham-se tornado numa desorganização, com chamadas telefónicas de última hora, correrias, anúncios da hora de chegada do avião que nunca se confirmavam, irritação dos embaixadores de países estrangeiros que deixavam de lado seus afazeres para passarem toda a manhã e, por vezes, todo o dia no aeroporto. Tudo isso refletia um pouco aquilo que era a Presidência de Kumba Yalá: improviso permanente.
O homem morreu e, com a sua morte, instalou-se a polémica. Quem era Kumba Yalá? Controverso e excêntrico, amado e idolatrado por uns, odiado por outros, Kumba Yalá era um político que não deixava ninguém indeferente.
Conheci-o pessoalmente no início dos anos oitenta. Eu era ainda estudante no Liceu Nacional Kwame Nkrumah e Kumba Yalá era um quadro que tinha acabado de voltar ao país após concluir sua formação em filosofia em Portugal. A primeira vez que o vi, foi no átrio da residencial Ancar, onde moravam alguns professores cooperantes e também Guineenses. Kumba Yalá foi-me apresentado pelo meu mano Isaac Monteiro, na altura professor e sub-director do Liceu Nacional Kwame Nkrumah. Vestia um fato escuro e envergava uma gravata de seda castanha.
Os nossos caminhos cedo se cruzaram. Estávamos ainda nos primórdios do pós-revolução e eu era um ativo militante da Juventude Africana Amilcar Cabral (JAAC). Enquanto responsável do Departamento de Superação Política e Ideológica da JAAC no liceu, organizava palestras para os estudantes, convidando dirigentes da JAAC e do PAIGC para falarem sobre os mais variados temas. A chegada de Kumba Yalá, que logo começou a dar aulas de filosofia no liceu, entusiasmou-nos, pois vinha reforçar o ‘pool’ de potenciais palestrantes, e isso era motivo de satisfação para mim e para os meus colegas, sobretudo porque o homem era visto como culto e com uma grande capacidade retórica.
Kumba Yalá proferiu duas ou três palestras, a meu convite, e logo as suas palestras ganharam fama, devido à sua incursão fácil em várias áreas do saber, da história à filosofia e à ciência política, e ao seu discurso articulado e vibrante que contagiava todos os presentes, em cujos rostos se podia ler curiosidade e admiração com o desempenho do filósofo.
Mas cedo também ficou claro que Kumba era controverso e provocador, sendo muitas vezes tentado a trilhar o caminho do confronto e da guerra de palavras com seus oponentes. Numa das palestras que organizei no antigo lar masculino (atual liceu Dr. Rui Cunha), Kumba Yalá, que na altura já era sub-director do Liceu Kwame Nkrumah, insurgiu em termos pouco apropriados contra o Dr. Alexandre Furtado, director do Liceu, e com quem andava em desavença. Fiquei embaraçado e no final da palestra disse-lhe que o que ele tinha dito deixava-me mal, enquanto organizador da palestra.
Certa noite, tive o primeiro choque sério com ele, na presença do meu amigo Huco Monteiro. Havia organizado no liceu um sarau cultural com recital de poesia, música e discursos. Convidei o Kumba para a parte dos discursos. Infelizmente, o sarau não correspondeu às nossas expectativas. Poucas pessoas compareceram e o Kumba irritou-se e entrámos em discussão. Disse-me que não discutisse com ele porque era uma pessoa formada, ao que eu repliquei que isso não me complexava, pois sabia que também seria formado e na idade certa.
Por alguma razão que nunca entendi, ele gostava de mim. No ano seguinte, eu dava aulas de formação militante no antigo QG, esperando uma bolsa de estudos, e o Kumba também dava aulas de filosofia alí. Cruzávamos frequentemente na sala dos professores, onde costumávamos conversar. Ele convidava-me regularmente, durante os intervalos em que ambos não tínhamos aulas, para irmos tomar o pequeno almoço (que ele pagava) no hotel 24 de Setembro e, durante esses pequenos almoços, discorria longamente sobre a política e criticava várias individualidades. Curiosamente, estava sempre a criticar o Dr. Viriato Pã, o advogado que tinha acudido ao apelo do Presidente Nino Vieira para o regresso de quadros à Guiné, e que na altura exercia a função de Procurador Geral da República. Eu debatia-me para entender o que o opunha ao Viriato Pã, mas não percebia.
Uma manhã, tinha eu acabado de chegar à sala dos professores quando me disseram que o Kumba andava desesperadamente à minha procura. Quando minutos mais tarde nos vimos, ele lançou:
– Nka kontau, nka kontau, kuru di PAIGC i suma baloiço. Ora ku bu bai riba, ka bu ri, pabia bu na bim bas !!
Com esta metáfora, ele referia-se à prisão na noite anterior do Viriato Pã, que mais tarde acabou por ser envolvido no caso 17 de Outubro, como se sabe.
Anos mais tarde, os nossos passsos voltaram a cruzar-se na política. Nas eleições de 1994, estávamos na mesma aliança. Kumba Yalá era um político corajoso, que desafiava o poder como poucos, o que, no contexto da abertura política na época, lhe valia uma grande admiração por parte de muitos que o julgavam capaz de quebrar tabús e de enfrentar os pesadelos da autocracia reinante. Os seus discursos incendiários arrastavam multidões, e muitos, incluindo eu próprio, viam nele o homem que podia encarnar a mudança que se desejava. Entre as duas voltas das eleições presidenciais daquele ano, tornei-me seu homem de comunicação, tendo dirigido a preparação de todos os seus tempos de antena, quer na rádio quer na televisão. Confesso que sou autor da frase que ficou célébre nessas eleições:
Kumba Yalá, homi ku Guiné misti; dia 7 di Agosto, vota Kumba Yalá!!!
Kumba Yalá não chegou ao poder nesse ano. Só em 2000, nas eleições que se seguiram ao conflito politico-militar de 1998-99, ele viria a ser eleito Presidente da República com 73% dos votos, tornando-o no Presidente mais bem eleito na história política da Guiné-Bissau.
Apesar das extravagâncias que o caracterizavam (como o uso do barrete vermelho) e de algumas incoerências da sua acção política, que se tornavam visíveis a cada dia, ainda havia uma esperança no político jovem, bem formado e com muita energia.
Infelizmente, sua Presidência foi uma decepção. Kumba Yalá nunca conseguiu despir o fato de opositor para vestir o de Homem de Estado. A sua Presidência foi marcada por uma grande instabilidade governativa, com sucessivas mudanças de primeiro ministro e remodelações governamenais (os famosos decretos presidencias de Kumba Yalá) que não respeitavam quaisquer critérios politicamente aceitáveis, bem como pelo virar das costas da comunidade internacional à Guiné-Bissau, por falta de confiança no rumo do país.
Eu servi o país como ministro da educação durante quase dois anos sob sua Presidência. Sempre mantivemos uma relação de cordialidade e de respeito mútuo, embora não concordasse com muitas das suas decisões e atitudes.
Havia também em Kumba Yalá um lado cómico, que ele levava por vezes ao extremo, e que era interpretado por uns como expressão de simplicidade e de humanismo e por outros como a caricatura do poder ou a banalização da função presidencial. Lembro-me das gargalhadas que dava quando chegava à Presidência de manhã, e que provocavam risos incontidos dos ministros na sala do Conselho de Ministros, ou ainda das suas invectivas teatrais contra os opositores, imitando gestualmente um ou outro ou reproduzindo com ironia seus discursos.
O esmorecer da sua aura começou com o seu afastamento da Presidência pelos militares, num golpe de Estado extremamente caricato. Depois, perdeu a confiança do eleitorado e nunca mais conseguiu alargar a sua base eleitoral, passando a ser visto cada vez mais como um problema do que uma solução, até se ter dado conta que ‘há tempo para tudo’ com a sua última decisão política de não se candidatar às eleições do passado dia 13 de Abril.
A última vez que o vi, foi em finais de Novembro de 2013, quando fui a Bissau em missão de preparação do projeto do Banco mundial para pagamento dos salários dos professores e do pessoal de saúde. Pareceu-me bem disposto e, como sempre, chamou-me pelo mesmo nome com que me costuma chamar ¬– PCD (em referência ao Partido da Convergência Democrática, de que fui militante e dirigente durante o período da abertura política). Abraçamo-nos e ele disse-me que fazia tempo que não me via, mas que sempre perguntava por mim.
Quando um político desaparece, a questão fundamental que se coloca é esta: qual é o seu legado?
No caso do Kumba Yalá, creio que o seu legado político pode resumir-se à seguinte frase: ‘Um político que a dado momento encarnou a esperança de um povo; uma esperança que, infelizmente, nunca se concretizou’.
Seja como fôr, Koumba Yalá marcou para sempre a política na Guiné Bissau.
Paz à sua alma.
As minhas condolências à família enlutada.
Dakar, 25 de Abril de 2014
Geraldo Martins
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