[ENTREVISTA_janeiro_2022] A ativista guineense, Ivone Gomes, denunciou que pessoas do sexo feminino portadoras de deficiência são violadas sexualmente, de forma desumana, sem nenhuma responsabilização judicial. Segundo Ivone Gomes, um estudo bio comportamental realizado no país revelou que há um registo de número de casos muito elevado de pessoas com deficiência a viverem com HIV\SIDA, por terem sido violadas.
“À noite são estupradas. De dia são rejeitadas porque são tratadas como extraterrestres”, referiu, para de seguida avançar que a violação sexual de pessoas portadoras de deficiência é mais frequente no interior do país.
“Tivemos um caso que foi levado à justiça em Gabú, mas o processo acabou por morrer porque não houve seguimento do caso e depois alguém injetou dinheiro para fazê-lo morrer”, contou.
Ivone Gomes fez essa denúncia em entrevista ao jornal O Democrata para falar da situação de pessoas portadoras de deficiência na Guiné-Bissau, do seu projeto “Bontche” e do papel que a mulher guineense deve desempenhar em 2022 para a sua emancipação.
ATIVISTA: “À NOITE SÃO ESTUPRADAS. DE DIA SÃO REJEITADAS PORQUE SÃO TRATADAS COMO EXTRATERRESTRES”
Ivone Gomes denunciou igualmente que a violação dos direitos das pessoas portadoras de deficiência é mais frequente no interior, onde são acorrentadas e isoladas do resto da família por vergonha de ter um membro da família deficiente.
Por outro lado, a ativista defendeu que é fundamental a mulher guineense apostar na sua capacidade e acreditar que é capaz de gerar rendimentos.
A ativista destacou a luta desencadeada, há vários anos, pela Federação das Pessoas com Deficiência na Guiné-Bissau, sobretudo em relação à emancipação das pessoas com deficiência. Criticou a falta de apoio que o governo não tem dado a essa camada, tanto na celebração de 03 de dezembro, dia internacional das pessoas com deficiência, como em outras atividades que a Federação tem promovido e pediu uma atenção especial às pessoas com deficiência e falou do abandono total das pessoas com deficiências da parte do executivo em 2021.
“Nos últimos tempos o apoio do governo às pessoas com deficiência não tem sido significativo. Em 2020, deslocamo-nos ao palácio do governo para manifestar o nosso repúdio e mostrar ao governo as dificuldades que as pessoas com deficiência enfrentam. O primeiro-ministro, num gesto simbólico, sentou-se numa cadeira de rodas para simular, mas nem sequer conseguiu subir alguns degraus das escadarias do palácio do governo. Tudo isso revela o quanto sofremos no nosso dia-a-dia. Não temos acessibilidade nenhuma. Somos ignorados pelas nossas famílias e pela sociedade”, enfatizou.
A ativista revelou que o executivo assinou convenções e acordos em relação às pessoas com deficiências, mas não tem respeitado nenhum desses instrumentos, tendo lembrado que em 2021 a federação elaborou um projeto lei que foi submetido à Assembleia Nacional Popular(ANP) para que pudessem ter um suporte legal que garantisse que os seus direitos fossem respeitados, mas não tem sido o caso.
Ivone Gomes frisou que as pessoas com deficiência que vivem no interior do país são as maiores vítimas de descriminação, porque “são rejeitadas no seio das suas próprias famílias e pela sociedade”. Acrescentou “é com muita pena que assistimos à essa descriminação!”
“As pessoas com deficiências são isoladas do resto da família. Muitas famílias sentem vergonha de apresentá-las. Em Canchungo, quando realizámos atividades no dia internacional das pessoas com deficiência, o régulo local foi crítico a essa situação e enalteceu que seria salutar que as famílias que vivem com pessoas com deficiência tomassem consciência da importância e que essas pessoas são capazes de fazer numa sociedade e que, de uma vez para sempre parassem de isolar pessoas com deficiência, só por terem vergonha de ter alguém naquela condição”, sublinhou.
Ivone Gomes disse que há situações em que pessoas com deficiências são amarradas, escondidas e isoladas do resto da sociedade.
“O régulo de Canchungo revelou-nos que pessoas com deficiência são acorrentadas e escondidas dentro das habitações, na escuridão. É desumano e o aconteceu em Canchungo, muito perto de Bissau. Temos que ganhar a consciência de que cada ser humano é um ser humano e temos que tratá-lo com dignidade, independentemente da sua condição física ou mental”, disse.
A também mentor da cooperativa “Bontche” frisou que o maior choque que vive, enquanto pessoa portadora de deficiência tem a ver com as mulheres portadoras de deficiência que, por falta de meios, são obrigadas quase diariamente a deslocarem-se ao centro de cidade, em cadeiras de roda, para pedir esmola nas instituições públicas e privadas.
“Dói-me muito! Podemos perder parte do nosso corpo, mas não significa que não temos cabeça para pensar. Temos que nos valorizar para que possamos ser reconhecidos pela sociedade. Podemos contribuir na sociedade e apoiar o nosso Estado como qualquer um, mas precisamos primeiro, do apoio da nossa família e da sociedade em que estamos inseridos”, notou.
Ivone Gomes disse que pessoas do sexo feminino portadoras de deficiência são violadas sexualmente de forma desumana sem nenhuma responsabilização judicial. Segundo a sua explicação, um estudo biocomportamental realizado no país revelou que há um registo de número de casos muito elevado de pessoas com deficiência a viverem com HIV\SIDA, por terem sido violadas.
“À noite são estupradas. De dia são rejeitadas porque são tratadas como extraterrestres”, referiu, para de seguida avançar que a violação sexual de pessoas portadoras de deficiência é mais frequente no interior do país.
“Tivemos um caso que foi levado à justiça em Gabú, mas o processo acabou por morrer porque não houve seguimento do caso e depois alguém injetou dinheiro para fazê-lo morrer”, contou.
Ivone Gomes disse que nasceu saudável sem problemas, mas aos quatro anos ficou doente devido a uma injeção mal aplicada, mas nunca foi abandonada pelos seus pais e salientou que na tentativa de salvá-la da paralisia foi levada ao hospital de Canchungo, na altura gerida por chineses, mas deu em nada.
Questionado sobre a sua cooperativa “Bontche”, Ivone Gomes informou que o projeto começou em 1994, no bairro de São Paulo (em Bissau) e que trabalha mais no artesanato, corte e costura, tinturaria, confeção de rendas e bordados. O projeto, segundo Ivone Gomes, trabalha com pré-adolescentes, adolescentes, jovens e mulheres.
FORMAÇÃO TEM QUE SERVIR DE NOSSO MARIDO PARA NÃO SE TORNAR ESCRAVA DO MARIDO
“No período das férias trabalhamos mais com raparigas na confeção de rendas, corte e costura. O projeto nasceu porque formávamos pessoas nessas duas componentes, mas não tinham seguimento. Criamos um grupo que acabaria em uma associação para ajudar as mulheres da nossa zona a terem continuidade daquilo que apreendem, mas a iniciativa acabou por fracassar porque elas queriam resultados imediatos. Acontece que nós trabalhávamos apenas aos sábados e o que produzíamos era insuficiente para sustentar o grupo, por isso muitos acabaram por abandonar a iniciativa. As poucas que resistiram e abraçaram o projeto e criamos a cooperativa “Bontche”, porque o grupo tinha um número significativo de mulheres balantas”, contou.
Disse que o nome inicial era “MEL – Mulher na Economia Local”. Mas quando começamos a formar estruturas da organização, um espertinho que lhe era próximo (um elemento do grupo) em conluio com um funcionário público de um dos ministérios da administração pública guineense foram registar o projeto com esse outro nome e a sede da organização sem consentimento dos mentores do projeto.
“Queriam tratar-nos como objeto de exploração. Seriam eles a procurar fundos em nome da organização para colocá-los a nossa disposição e depois nós ficaríamos com a execução dos planos deles e os resultados seriam entregues por eles aos parceiros ou financiadores. Não constituímos nenhum processo contra eles porque é uma pessoa que me é próxima, a minha afilhada. Ela foi inocentemente enganada”, salientou e disse que inicialmente, a cooperativa tinha oito elementos, mas dada a evolução da pandemia acabou por perder a maior parte dos seus elementos, tendo ficado apenas com três, mas mensalmente tira do seu fundo para pagar doze pessoas.
Ivone Gomes disse que os produtos da cooperativa “Bontche” não são procurados internamente, porque “o guineense não valoriza o que é seu”.
“Os nossos produtos são procurados mais por estrangeiros. Temos tido apoio de uma amiga italiana e todas as máquinas manuais que a cooperativa tem neste momento, foram adquiridas graças à ajuda dessa nossa amiga. Enviamos os nossos produtos para Itália para serem comercializados lá e o dinheiro é utilizado na compra de materiais. Também contamos com o apoio de um projeto italiano instalado no CIFAP, que contribuiu bastante na criação da nossa cooperativa. Sou a única pessoa com deficiência na cooperativa, o meu maior sonho é ajudar deficientes. Mas sozinha não posso concretizá-lo”, frisou.
A também economista e administradora financeira da Rádio Sol Mansi revelou que o seu maior sonho era cursar relações internacionais e a comunicação social.
A leiga consagrada em 2004 frisou que não se tem sentido discriminada na via pública nem nos transportes públicos, mas admitiu que possam existir casos em que pessoas com deficiência tenham sido vítimas de descriminação, tanto nas vias públicas como nos transportes públicos.
“Quem mais sofre descriminação são pessoas de cadeiras de rodas. Se tiver canadianas, facilmente é atendido. Ultimamente tenho sentido essa dificuldade, porque tenho usado mais uma cadeira de rodas”, contou.
Ivone Gomes realçou o empenho das organizações femininas na emancipação da mulher guineense, contudo afirmou que nem todas as mulheres estão acordadas.
“São muitas as que já se afirmaram. Temos empreendedoras que dependem só da sua atividade, isto é um sinal positivo para as mulheres. Mas é preciso fazer algo mais, porque são muitas as que ainda se encontram fechadas às oportunidades. As mulheres têm que apostar mais na formação pessoal. A formação tem que servir de nosso marido para não se tornar num simples objeto ou escrava do marido. Temos que viver na complementaridade e sermos parceiros que se apoiam mutuamente, um ao outro”, aconselhou.
A ativista defendeu que é fundamental que a mulher guineense aposte na sua capacidade e acredite que é capaz de gerar rendimentos na família e na sociedade.
“Não devemos entregar a nossa vida aos homens ou depender apenas deles, caso contrário vamos ter uma sociedade de roubadores. Muitos homens guineenses roubam porque com o que ganham não conseguem cobrir os encargos familiares”, disse.
Ivone Gomes disse que conseguiu projetar-se na vida porque a sua condição física foi aceite pelos seus pais e na comunidade em que está inserida, o que muitas vezes leva as pessoas a esquecerem que ela é uma pessoa com deficiência.
“Isto é uma questão a ser colocada de lado, porque mesmo eu, só consigo dar conta que sou deficiente quando enfrento obstáculos ou não consigo fazer algo, mas para mim não é o fim do mundo e tenho apenas que agradecer a Deus por me ter dado tudo que é necessário. Não estou arrependida por ser uma pessoa com deficiência nem a minha família e vou continuar a ser uma pessoa alegre e trabalhar mais e mais para que os meus sonhos sejam realizados”, indicou.
Ivone Gomes disse acreditar que pessoas com deficiência podem realizar coisas extraordinárias neste mundo que pessoas sem deficiência não serão capazes de fazer.
A ativista frisou que é importante as mulheres da Guiné-Bissau apostarem na autoformação e no apoio mútuo para a sua afirmação na sociedade guineense e no mundo.
“Não é justo carregar objetos de luxo no corpo ou ter muitos maridos. Temos doenças e é preciso cuidarmos da nossa saúde, porque gozar a vida de forma errada é encurtar a nossa vida. Até porque o luxo faz parte da vida, mas respeitem-se porque ninguém mais o fará por vós”, sublinhou.
Enfatizou que as mulheres têm desempenhado um papel muito importante na família e na sociedade, sobretudo nas atividades informais, para sustentar famílias e pagar escola para os seus filhos.
“É fundamental apostarmos na educação. Quem tem educação, tem horizonte aberto. Temos que ser ambiciosas e procurar formação. Não nos devemos fechar ou fechar a nossa formação nas gavetas”, declarou.
Por: Filomeno Sambú
Fotos: F.S
Conosaba/odemocratagb
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