ABC numa perspectiva conceitual, significa para gente “Aquisição do Bom Comportamento”, epistimologicamente, o termo ganhou sentido dentro de um contexto educacional e virou na ABCdade uma lição para todas as crianças de “pré-burro” nas escolas do reino da Guiné-Bissau, quem foi e ou é aluno na escola de tio pursor, sabe essa lição como ninguém.
Dizem que é saudável reviver as lembranças de cenas bonitas que um dia demarcaram nossas vidas, se são apenas palavras que alguém pintou por aí, então, seria mais uma prova de que existem génios nesse planeta, eu que sou cristão, seria pecado para mim se um dia eu negar a verdade, pois confesso que também vivo essa euforia toda vez que vem lembranças de momentos bons que tive um dia e seria um absurdo não aceitar que ABCdade me enchia de sentimento bom quando na turma a gente gritava a b c… Isso talvez porque eu era apenas uma criança que na altura comecei a criar a intimidade com as letras. Aliás, na minha turma de pré-burro, todos gostávamos de ABCdade, ABC era sumário de todos os dias, lição que virou numa canção que saía bem catalogada no coro da gente e que ecoava sem qualquer aberração na sala.
No bairro, todo mundo comentava que eu era um menino muito sabido e que tinha mania de assobiar coisas que imaginava, hoje ainda lembro que assobiava muito cantando ABCdade, é engraçado, pelo que se imagina, mas acredite que levava horas cantando essa lição num canto que saía numa melodia que só sabiá sabia, pois me sentia como rei de ABCdade no meu bairro, coisa que me deixava muito animado diante da minha “inocência”. Ora, ouvi dizer que toda a criança pela natureza é inocente, alguém inventou esse pensamento maluco e foi muito sério promovendo sua inocência por não ter amabilidade de pensar que a criança é apenas criança e ela vive num mundo não diferente do da gente, mas longe daquilo que a gente vive.
Se foi pela inocência não sei, contudo desconfiava muito da farsa, mas confesso aqui, que vivi momentos sombrios na escola de tio pursor diante de uma imposição implantada e sustentada pela tendência de uma educação que para além de ser angustiante, ela é causador de ilusão, infelizmente, não tinha poder de recusa, fui obrigado a colaborar com o sistema talvez porque éramos apenas crianças, ninguém tinha consciência da mafia, pois espero que não seja pela nossa culpa, enfim... Hoje, pelo contrário, vem momentos que essa lembrança trás em mim um sentimento muito amargo, justamente, porque se trata de umas lições que na qual a tendência era ensinar a gente o modo de comportar como um simples sujeito paciente, uma lição que nos leva a inocência total e que nos proibia e proíbe de crescer e viver na essência daquilo que realmente nos caracteriza como gente.
Para complicar mais a confusão, é ver o meu pai nessa história como tio pursor, e é verdade que ele foi professor por muitos anos em Nsua, quando pela primeira vez fui matriculado na ADPP, ele criava uma preocupação consigo para comigo, porque alimentava a ideia de que eu seria um problema para tio pursor na escola, não sei, talvez era porque eu sempre demostrava ser um menino espontâneo que nunca escondia a essência da minha singularidade que também me fazia dum menino bulidur e que ao mesmo tempo me impulsionava a correr a trás de porquê das coisas que passavam confusas pela minha cabeça. Aliás, desde muito cedo não perdia vontade de buscar saberes e valores que estão atrelados a vida humana, e como criança que buscava crescer provando novas experiências, aprendia muito com Mama Tchima Iongo os ensinamentos da vida que a tradição da minha gente preservou. No entanto, meu pai estava convencido que isso com certeza ia comprometer meu sucesso na escola de tio pursor.
Meu pai estava certo, realmente, eu era um menino que dava muito trabalho para tio pursor na escola, se isso devia só a influência da educação que recebi da avó Mama Tchima, não sei, no entanto, recordo que eu era um menino que aprontava, mas não tão aprontador como diziam muitos por aí no bairro e não vou negar que a minha presença representava muito ponto de atenções na escola, isso talvez porque não conseguia esconder a minha singularidade.
A educação é fundamental para a nossa integração na sociedade humana, muitos afirmam que educar é um ato nobre, e eu realmente via essa nobreza na minha avó, uma mulher sabida e sábia, sabia a filosofia da vida como ninguém, foi ela quem me ensinou a viver na simplicidade respeitando a natureza e gozar da sua diversidade, um certo dia, contou-me que a boniteza de ser diferente está marcada na história e na experiência da gente, e que essa boniteza está pintada nas cores da nossa pele, interpelada nas nossas crenças e rituais, conjugada nas manifestações linguísticas e culturais da gente, definida nas nossas tradições e costumes, caracterizada no modo de pensar de cada gente e vivenciada na maneira como as pessoas compreendem e interpretam o mundo. Ela falou ainda que a boniteza do ser diferente nasce numa mistura pura de um sentimento bom que traz diferentes sabores e gostos que vai num brinde que a vida proporciona para toda a gente. E depois, lamentavelmente falou para mim:
- O mundo está cheio de mistérios, tem muitas coisas que sinceramente não entendo e não sei lhe dizer por que acontecem com agente, por exemplo, vejo infelizmente, muita gente que não olha para a diversidade como algo saudável e bonita, e é justamente essa gente que vem dificultando a convivência humana. Enfim… só espero que leve uma vida tranquila e talvez um dia você entenderia todo esse paradoxo misterioso.
Quando foi-se avó Tchima, eu era ainda um adolescente e sinceramente não podia entender de tudo que ela me dizia sobre a vida, minha sorte, é que sou uma pessoa com muita paciência, deixei o tempo trazer para mim saberes que um dia não tinha, pois, hoje comecei a ter a consciência daquilo que outrora ouvia de Mama Tchima, no entanto, percebi realmente que a diversidade que nos define como gente, virou ponto de conflito social. Aliás, o tempo se intrometeu com os acontecimentos e foi pintando a história da humanidade com a tinta que intoxicou minha gente e que provavelmente matou Mama Tchima, e construiu ao mesmo tempo um mundo eufórico que ainda traz desenho de arco-íris que apresenta diversidade de cores que trazem um pouquinho de esperança que nos leva a crer que vale a pena viver enquanto o mundo ainda não acabou.
A diversidade que na sua essência deve trazer a ternura para sociedade e que podia ser premiada como maior património da humanidade, virou numa pandemia, a febre que em vários séculos provocou a desilusão e promoveu o desentendimento na ralação entre os homens incentivando a confusão humana, descriminação e o preconceito raciológico.
Como gente racional, paradoxalmente a diversidade continua a constituir de ponto de vista ideológico, político, sociológico e histórico um desconforto na relação de convivência entre os homens, e o que restou para nós é viver os conceitos e preconceitos que a sociedade criou ao longo da sua história. Enfim…
O “bonito” já está definido, as “línguas puras” o mundo conhece, a “religião certa” a bíblia já diz, o conhecimento é algo a parte e não é para toda a gente, enfim, a história já descreveu quem nós somos. Ampus! Essa foi o decreto que regulou a sociedade dos homens, e foi simplesmente na base da teoria de Deus que para criar o mundo ele apenas usou a palavra e o mundo se criou e todas as coisas foram se criando em torno dele. Aleluia aleluia aleluia!
E agora que o padrão já está definido, qual será a tendência para educação da gente? Qual será o modelo de vida para nossa sociedade? E olhe que minha gente é também gente bonita e educada, tem civilização, tem língua e tem cultura, nunca foi gente pobre e tem conhecimento como ninguém, mas ainda tem e deve seguir o padrão, aí que está o grande mistério, o paradoxo mistério que a gente não tem direito de saber, até porque tudo já está definido. E agora?
Quando a escola foi adotada no reino da Guiné, saía o hino da alegria no canto da minha gente e Cabral que era gente que entendia das coisas, desconfiado da sabotagem e da sacanagem, muito cedo contou para minha gente que, a luta para a independência da Guiné e de Cabo Verde era para a libertação de África, e tem de ser definida na afirmação da identidade cultural da gente, no entanto, a educação escolar devia ser conjugada e regulada na base da necessidade e da realidade sócio histórico e cultural da gente, nos para o desenvolvimento do reino da Guiné e da África. Só que não, a luta acabou, o sistema mafioso cresceu e tudo foi confundido pela fantasia e oportunismo da gente que diz que é “gente”. Aliás, não devemos esquecer que o sistema padrão já havia definido e a gente simplesmente, é condicionada a reproduzir a educação e civilização que algum maldito inventou por aí.
Como o tempo é tão intrometido, ele bondosamente traz a escola como uma nova forma de educação para podermos reconstruir a nossa sociedade e adaptar melhor ao nosso meio para não viermos a comprometer com a guinen´dadi e com o mundo. Mas, infelizmente, a escola que a gente adotou é apenas uma maquiagem, ou seja, um veículo para a reprodução da ideologia dominante.
Como dizem, a memória é o melhor registo que o homem tem, pois, vai aqui as lembranças das minhas lições da famosa escola do tio pursor. Tio pursor é um senhor ofuscado que ensinava e ensina a gente o modo de se comportar como “gente”, ele não passa de um subordinado, alienado e desprovido que só aparece bonito na fotografia, um dia no recreio de uma das aulas de “aquisição do bom comportamento”, ele falou para mim:
- João! Aqui na escola não pode brincar de ndulé-ndulé nem de mandja ku mandja, você e seus colegas precisam mudar os vossos hábitos e costumes, têm que esquecer essas brincadeiras de tabamca, a escola é um lugar diferente, aqui vocês aprenderão brincadeiras, cantigas e histórias de gente civilizada, certo? E olhe, Da próxima vez que vier com esse cabelo, já sabes, portanto, aqui todo mundo tem que saber comportar como “gente”. Falou senhor pursor numa voz da autoridade, misturada com tom do falar de mestre e sustentada pela postura dum senhor, enquanto eu muito apressado estava esperando pelo toque de sino de saída para ir buscar ndolin que para mais tarde eu possa brincar em casa com os meus colegas.
- Bom-dia senhor pursor! Como está?
- Bom-dia! Sentem-se!
Foi um outro dia de aula, mais um dia de aprender lições, sentado numa carteira no fundo da sala, eu e mais uma menina que sentava ao meu lado, começávamos a aula contando as fortes batidas de palmatorias que um outro colega tomava por ter chegado atrasado na aula, entrar na sala depois do pursor, não pode, segundo regulamento de todas as escolas de reino de Bsau. Quando terminou de meter palmadas no menino, virou pursor para turma como quém estava procurando por alguém, era um silêncio e na hora escutei meu nome na boca do pursor, meu coração bateu, olhei para ele com ar de aflição e comecei a tremer de medo que as lágrimas suavemente escorriam-me do rosto e pus-me logo a chorar.
- Anda! De pressa! Te avisei que não podes mais vir com esse cabelo, pensas que é brincadeira, hoje vais aprender a se obedecer e se comportar como “gente”.
Tudo angustiado, levantei calmamente, passei a mão leve pela cabeça e percebi que um gajo na verdade não tinha penteado, aí naquele momento é complicado, na hora lembrei que eu era um cristão, logo botei olhar levemente para cima num jeito simples de pedir a minha “redenção” e talvez encontrar alguma criatura de Deus para me livrar da situação temeroso que me encontrava, infelizmente, nada do que eu esperava aconteceu, pois creio que naquele momento nenhum anjo deu ouvido para as minhas súplicas, foi assim que tomei a coragem e fui entregar-me nas mãos do ofuscado que simplesmente continuou a matemática. Recebi tantas palmatorias que a soma dobrou as batidas que o menino atrasado havia levado na primeira hora, no mesmo dia, decidi que jamais ia para escola, e nas primeiras horas do dia seguinte, ainda estava determinado e seguro na decisão de não ir mais para escola, não sei se estava certo, mas desisti da decisão, foi quando que eu vi um colega meu estava sendo levado forçosamente pelo pai por não querendo ir para escola, na hora, lembrei-me dos meus irmãos que tanto apanhavam na tentativa de escapar das “abençoadas” palmatórias do senhor pursor na escola. Para ser sincero, não sei dizer quando foi que peguei no meu livro de leitura e pus-me a caminho da escola, e por azar o klin-klin do cino de entrada já havia tocado, era para mim mais um dia de palmatórias, não tinha como fugir, palmatória é algo mais normal na escola de tio pursor.
Eram tantas lições de um sistema podre da educação que contagiou e contaminou a sociedade da gente de tal maneira que vejo a me chamar de João e não de Buanh, na qual minhas línguas são censuradas e estigmatizadas, onde a minha cultura e tradição é vista como coisa de gente sem civilização, minha riqueza virou património do senhor cooperante, e onde a minha escola infelizmente é criar massa de gente pacificamente ignorante no reino de Bsau.
Eram tantas lições de uma história nojenta criada na brutalidade do poder colonial sustentada por ideologias mentirosas que causou muita mágoa e angústia nos povos chamados africanos. Era tanta perversidade perpetuada no território africano e não só e que hoje brotou o veneno venenoso que virou surto provocando o mal-estar nas sociedades africanas, e é tanta maldade que a evidência demostra claramente como a gente ainda é sacaneada, roubada e condicionada a viver na confusão, na pobreza e ao mesmo tempo na ilusão. A maior sacanagem de tudo isso, é criar nas cabeças das pessoas um pensamento negativo do continente africano, ou seja, promover um olhar de uma imagem estereotipada sobre a gente. “África é um lugar muito pobre, cheio de doenças e de gente sem civilização”, essas expressões são comuns nas falas das pessoas em todo o universo, aliás, a mídia é a melhor promotora desse pensamento mítico sobre África e sobre sua gente. Se realmente, a África é tudo aquilo que descrevem por aí, porquê que nunca tiraram pés os “estrangeiros” no território da gente? Ah! Já sei, a presença massiva dessa gente no território da gente é para terminar “a missão civilizadora” que noutro dia era o colonialismo, chamada hoje de “globalização” que é feita através de cooperações, projetos e acordos para legitimar a mentirosa missão.
Ainda dizem que somos livres e independentes, aliás, pintou nos céus as cores da bandeira que decretou a independência da gente, e, para comemorar essa vitória, ecoou as vozes que trazem o coro do hino que testemunhou a nossa liberdade. É verdade que o território da gente é África e africanidade é aquilo nos caracteriza como gente.
Se partirmos de uma analogia filosófica, podemos considerar que ninguém nesse mundo é “independente”, isso mais pela condição natural que o homem aceitou de e para viver em grupo construindo desse modo aquilo que é chamado de sociedade humana. Se formos definir essa palavra (independente) em outro conceito e em outro contexto, talvez seria justificável afirmar que existe sim a independência, e essa afirmação seria aceitável quando um individuo ou um povo realmente consegue definir a sua vida na base daquilo que pensa e sonha dentro de condições que a natureza lhe oferece sem qualquer interferência tendenciosa de um ou outro alguém ou grupo que possa condicionar ou comprometer essa independência, e se acreditamos que o povo da Guiné-Bissau está definido nessa lógica, podemos sim, afirmar que somos um povo livre e independente, caso contrario, pode ter a certeza que é apena uma ilusão alimentar esse pensamento.
No entanto, nunca seremos livres e independentes, se ainda somos marionetes nas mãos da “gente” que diz que é gente, não seremos livres e independentes, enquanto o nosso destino ainda está na mão dos outros, enquanto não seremos sujeitos ativos e principais protagonistas das nossas ações políticas e governativas, nunca chegaremos ao desenvolvimento sociocultural e económico do nosso país. Portanto, não podemos pensar em sonhar e viver se a nossa educação ainda é sustentada pela ideologia dominante.
Para fechar esta construção narrativa, que também pode ser chamada de denuncia, quero chamar atenção a nossa camada juvenil africana, sobretudo aos guineenses e principalmente, aos que se auto-afirmam de intelectuais que o desafio é grande, mas, se partirmos do pensamento de que é possível reverter a situação, com certeza alguma coisa será mudada nas nossas sociedades. E, para isso, temos primeiro que orgulhar daquilo que nos caracteriza como africanos e nunca negociar a nossa dignidade e nem fazer alianças contra os princípios e valores que orientam um povo na busca de uma convivência equilibrada. Portanto, não podemos deixar passar o tempo e pensar que tudo está perdido, a hora é de mudar de lição e sair da ilusão desse sistema mafioso, vamos na consciência pôr um ponto final nessa maldita história, o que vier depois o tempo resolve.
Você que leu essa provocação reflexiva e entendeu que vale a pena lutar para nossa dignidade como seres humanos, partilha e faça sua parte por gentileza.
Feliz dia de África!
Dito Buanh - Brasil, 25/05/2020
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