Dr. Geraldo Martins, antigo Ministro da Economia e Finanças
No passado dia 4 de Janeiro, o Ministro da Economia e Finanças proferiu uma declaração em que afirmou que as finanças públicas estão numa situação grave devido às dívidas contraídas pelos governos (do PAIGC) nos últimos dois anos e criticou as opções tomadas na utilização desses fundos. Esta declaração está cheia de incongruências que não resisti em saltar por cima da ocasião.
Incongruência 1. O Ministro da Economia e Finanças parece que (também) tem dificuldades em efectuar operações de conversão monetária. Na sua declaração, converteu 30 bilhões de Francos CFA em 200 milhões de Euros. JESUS CRISTO! 30 bilhões de Francos CFA equivalem a aproximadamente 45 milhões de Euros e não 200 milhões de Euros como disse o Ministro. Para um contabilista de formação, que deve saber reconciliar activos e passivos até à última vírgula, isto é gravíssimo, para não dizer mais.
Incongruência 2. O Ministro disse que o Estado deve 40 bilhões de Francos CFA ao Banco Central. Este valor de 40 bilhões de Francos CFA corresponde ao stock acumulado dos títulos de tesouro emitidos pelo Estado da Guiné-Bissau entre 2013 e 2016 no mercado de títulos públicos da UEMOA. Ora, quem compra os títulos de tesouro no mercado de títulos da UEMOA são os bancos e outros estabelecimentos financeiros ou, por intermédio destes, o público em geral (nunca o Banco Central). Como é que os títulos de tesouro podem representar dívidas do Estado ao Banco Central? Ou foi um lapsus linguae do Ministro ou devo estar a precisar de um desenho para entender?
Incongruência 3. Ao computar a dívida do Estado junto aos bancos comerciais, o Ministro da Economia e Finanças considerou os 35 bilhões de Francos CFA da (tão badalada) operação de resgate dos bancos. Convém lembrar que esta operação consistiu na aquisição pelo Estado de parte da carteira de crédito mal parado junto de dois bancos comerciais do país a fim de permitir que os mesmos retomassem o financiamento à economia e os operadores económicos relançassem as suas actividades. A operação foi meramente contabilística (o Estado não desembolsou um tostão) e os bancos em causa foram mandatados pelo Estado a celebrarem acordos de reestruturação das dívidas com os empresários e a procederem à sua recuperação. Mas não é aqui que está a incongruência.
A incongruência está no facto de o actual Ministro da Economia e Finanças, à data da realização da operação, ser meu Conselheiro e de, nessa qualidade, ter participado comigo e com a minha equipa em várias discussões com diversas instituições financeiras regionais e internacionais, nomeadamente o Banco Oeste Africano de Desenvolvimento (BOAD), na procura das opções mais viáveis para esta operação com a qual ele estava absolutamente de acordo.
Incongruência 4. Durante os dois governos do PAIGC desta legislatura (de Julho de 2014 a Maio de 2016), emitimos 28 bilhões de Francos CFA em novos títulos de tesouro (15 bilhões em Julho de 2014 e 13 bilhões em Abril de 2016. Excluem-se aqui as renovações de títulos por não contribuem para aumentar o stock da dívida pública). O Ministro da Economia e Finanças pergunta onde foi parar esse dinheiro. Este estranho exercício faz-me lembrar um outro, em tempos. Lol lol.
Aqui vai a explicação: Os 15 bilhões de Francos FCA foram emitidos logo no início da legislatura e serviram essencialmente para:
a) Pagar os quatro meses de salários em atraso acumulados pelo governo de transição. Na altura, a massa salarial mensal era de 3.2 bilhões de Francos CFA. Logo, 12.8 bilhões de Francos CFA foram consumidos em salários.
O remanescente foi utilizado para:
b) Pagar subsídios atrasados ao sector da educação para que o ano lectivo pudesse começar atempadamente;
c) Financiar o Plano de Contingência contra o ébola;
d) Financiar a retoma do fornecimento de energia eléctrica em Bissau;
e) Pagar parte do serviço da dívida externa, que já não estava a ser paga desde Dezembro de 2010 quando a Guiné-Bissau beneficiou do perdão da dívida ao abrigo da iniciativa HIPC.
É importante sublinhar que o pagamento de todos os atrasados da dívida externa pelo governo em 2014 foi crucial para o restabelecimento do programa com o FMI e a credibilização do país, e foi fortemente elogiado pelos parceiros de desenvolvimento da Guiné-Bissau durante a mesa redonda de Bruxelas em Março de 2015, tendo permitido ao país receber promessas de financiamento sem precedentes de 1.5 mil milhões de US$ (Em relação ao que diz o Ministro sobre a mesa redonda, não me vou pronunciar aqui).
Onde está a incongruência? A incongruência está no facto de o actual Ministro da Economia e Finanças, na altura Director Nacional do BCEAO, ter participado activamente na montagem financeira da operação de emissão dos 15 bilhões em títulos de tesouro, conhecendo perfeitamente o destino que se ia dar (e que acabou por ser dado) ao dinheiro.
Incongruência 5. A segunda emissão de títulos de tesouro, a de Abril de 2016, no valor de 13 bilhões de Francos CFA, serviu basicamente para reembolsar um empréstimo contraído pelo governo junto à Ecobank em 2011 no valor de 7.8 bilhões de CFA para a reestruturação da empresa Guiné Telecom e GuinéTel. O dinheiro nunca foi utilizado para os fins de reestruturação destas empresas, mas a dívida continuou ali, a crescer exponencialmente devido à elevada taxa de juro de 9,75%. Em Março de 2016, o capital mais os juros deste empréstimo ascendiam a quase 10 bilhões de Francos CFA. Decidimos então emitir 13 bilhões de Francos CFA em títulos de tesouro, a uma taxa de juro de 4,6% (10 bilhões para reembolsar a dívida à Ecobank e estancar a hemorragia financeira e 3 bilhões para pagamento dos salários de Abril de 2016, num contexto de dificuldades de liquidez, devido à não aprovação do Orçamento Geral do Estado).
A incongruência? Quem era o Ministro da Finanças em 2011, ano em que o empréstimo para a reestruturação da Guiné Telecom e GuinéTel foi contraído?
Eis pois a utilização dada aos fundos.
Para terminar:
Como diria o Brasileiro, a fala de um Ministro da Economia e Finanças é apreciada sobretudo pelo seu rigor. Tantas incongruências numa única declaração pública dão muito que pensar.
Geraldo Martins
Redação.
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