A
pandemia da COVID-19 veio
acentuar, ainda mais, as enormes deficiências funcionais
das estruturas sanitárias do país. Trouxe à superfície velhas questões,
nomeadamente as relacionadas com a
falta de equipamentos e de equipas treinadas para instituir tratamentos
diferenciados, como é o caso da ventilação mecânica em doentes com
insuficiência respiratória aguda.
Antes
da pandemia, a ventilação mecânica não era um tratamento que fazia parte do arsenal
terapêutico das nossas instituições de saúde, inclusive do Hospital Nacional
Simão Mendes (HNSM), o principal hospital do país.
Sem
o suporte ventilatório mecânico (invasivo ou não invasivo), muitos doentes com
insuficiência respiratória aguda irão sucumbir em horas ou dias.
Ao
longo dos últimos meses, como seria de esperar, tem-se verificado um aumento significativo de
casos de doentes com insuficiência respiratória aguda, maioritariamente devido à
pneumonia por SARS-CoV 2 (COVID-19), com muitos deles a necessitarem de suporte
ventilatório mecânico.
Nesse
contexto, têm surgido diferentes perspetivas no seio da comunidade médica
relativamente à modalidade ventilatória que deve ser o foco de investimento dos
escassos recursos de que o país dispõe neste momento: isto é, ventilação mecânica invasiva (VMI) versus
ventilação mecânica não invasiva (VMNI).
Apesar
dessa contenda teórica, por ser a modalidade ventilatória que se encontrava
disponível no país à data do início da pandemia, e em que havia alguma formação
por parte dos profissionais de saúde (médicos e enfermeiros), iniciou-se a
aplicação da VMNI. E sem pretensão de retirar qualquer conclusão cientificamente fundamentada
(apenas observacional), os resultados conseguidos têm sido favoráveis, apesar
de todas as limitações decorrentes da fraca qualidade dos equipamentos (na sua
maioria são ventiladores domiciliários que não foram feitos para uso em doentes
agudos e graves), falta de acessórios como máscaras, tubuladuras, conectores de
oxigénio, filtros, etc...
Para quem não está familiarizado com estes conceitos da ventilação mecânica, vou esclarece-los nos parágrafos que se seguem, antes de expor e fundamentar a minha posição.
Na VMI, o suporte ventilatório (respiratório) pode ser efetuado através de uma interface que é introduzida dentro da via aérea, isto é, um tubo (tubo orotraqueal) que é colocado na traqueia, ou pode ainda ser executado através de uma traqueostomia (um orifício no pescoço onde é colocado uma cânula especial que é conectada ao ventilador). Essa invasão da via aérea (tubo orotraqueal ou traqueostomia) está sujeita a complicações que podem ser suficientemente graves para condicionar uma evolução clínica favorável dos doentes. Entre elas, destaco a lesão direta da via aérea que no extremo pode levar a estenose da traqueia (estreitamento do seu lúmen), com as devidas consequências; a presença de uma via aérea artificial (tubo orotraqueal ou traqueostomia) que modifica os mecanismos naturais de defesa e proteção da via aérea, aumentando, drasticamente, a possibilidade de infeções adquiridas no hospital, como a pneumonia, sinusite e otite. Para além dessas complicações, é de referir, ainda, o aumento do desconforto do doente, a dor, o stress psicológico, o impedimento da alimentação por via oral, assim como a impossibilidade da comunicação verbal que muitas vezes exacerba o estado de ansiedade do doente. É de acrescentar, ainda, que todo o processo de gestão de um doente sob VMI, desde a sua instituição, desmame, suspensão e resolução das complicações é complexo e exige um conhecimento diferenciado, que à data não existe no terreno. Torna-se claro que, para que a VMI seja um tratamento eficaz, é necessário que se cumpra uma série de pré-requisitos, caso contrário o resultado pode ser desastroso. Entre esses pré-requisitos, destacam-se os recursos humanos competentes (uma equipa de profissionais de saúde bem treinados na gestão de um doente), equipamentos adequados, fornecimento ininterrupto dos gases medicinais (ex. oxigénio), fármacos essenciais (ex. sedativos, analgésicos, antibióticos de largo espectro, etc.), suporte nutricional entérico e parentérico, apoio de outras especialidades, nomeadamente Medicina Física e Reabilitação, Radiologia, Pneumologia, Otorrinolaringologia, Cardiologia, entre outras. Com as devidas considerações, a Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) do HNSM encontra-se a uma distância astronómica daquilo que é considerado como um protótipo de uma UCI. De referir, ainda, os custos diários elevados relacionados com a complexidade de um doente em VMI numa UCI que me parece, neste momento, insuportável (sejamos francos) pelo sistema de saúde do país.
Ao
contrário da VMI, na VMNI, o suporte ventilatório é feito por intermédio de
interfaces que não invadem a via aérea (não invasivo), que são conhecidas como
máscaras (nasais, faciais, faciais total e capacete). Por essa razão, a VMNI evita as complicações
associadas ao tubo orotraqueal ou à
traqueostomia, tornando-a numa modalidade com maior potencial para uso
rotineiro, inclusive fora de unidades especializadas como a UCI (ex. no Serviços
de Urgência, Unidades de Cuidados Intermédios, enfermarias, transporte de
doentes, etc.). Em teoria, esta modalidade ventilatória poderia ser disseminada
mais facilmente aos hospitais regionais, desde que garantidas algumas condições
básicas, como, por exemplo, a formação dos recursos
humanos e fornecimento dos equipamentos e dos seus consumíveis.
A VMNI tem-se afirmado cada vez mais como uma alternativa
relativamente à VMI, em situação de insuficiência respiratória aguda. Existem
cada vez mais evidências robustas que mostram que a VMNI pode ser usada em várias
situações de insuficiência respiratória aguda com sucesso, evitando, assim, a necessidade do recurso a VMI, sobretudo
quando usada precocemente, reduzindo a mortalidade. Já é considerada como a primeira opção em determinadas
patologias, como na exacerbação da doença pulmonar obstrutiva crónica, edema
agudo do pulmão, pneumonia em imunodeprimidos, entre outras. Existem, no
entanto, uma série de patologias que cursam com insuficiência respiratória aguda,
em que a VMNI não é apontada como primeira escolha, pois não existem (ainda)
evidências acumuladas para tal recomendação. No entanto, na ausência de VMI, a
VMNI pode e deve ser o tratamento de escolha. Um exemplo concreto é o caso da
COVID-19, em que ainda não existem dados definitivos para tecer recomendações
sobre a modalidade ventilatória mais adequada em cada fase da doença. Ainda que
não haja uma resposta concreta a essa questão, a VMNI tem sido amplamente
utilizada em vários países no contexto da COVID-19, com resultados
interessantes.
A VMNI não é isenta de complicações, mas estas são de menor gravidade e de mais fácil resolução em comparação com as da VMI, aspeto fulcral.
Por
todas essas razões elencadas, sou da opinião de que, no presente momento, o
país deve apostar na VMNI, utilizando os escassos recursos disponíveis para
adquirir os equipamentos mais adequados, os consumíveis que são essenciais para
o sucesso da técnica e treino dos profissionais de saúde. A aposta na VMNI é a
escolha mais acertada, efetiva e sustentável face ao panorama atual da saúde na
Guiné-Bissau.
Apesar disso, tenho a absoluta consciência da limitação da VMNI. Esta deve ser vista como uma técnica complementar à VMI e não como substituta. Dessa forma, é meu desejo que a VMI venha também a ser uma realidade não muito distante na Guiné-Bissau, pois é igualmente determinante para salvar vidas.
Porto, 27 de agosto de 2020
Hans Dabó
(Médico Pneumologista)
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