quinta-feira, 22 de novembro de 2018

"ASSIM VAI A SAÚDE DO MEU POVO NA GUINÉ-BISSAU" - DR. HANS DABÓ, MÉDICO, PNEUMOLOGISTA

Assim vai a saúde do meu povo...
Recentemente integrei uma equipa de profissionais de saúde que se deslocou à Guiné-Bissau para uma missão de prestação de cuidados de saúde, que teve como local de ação o Hospital Nacional Simão Mendes (HNSM), o principal hospital do país.

É do senso comum o preceito de que a saúde é o bem maior do indivíduo e, no final de tudo, de um país, do seu povo. Um país que se projeta para o futuro tem de investir na saúde do seu povo, sob pena de não haver futuro. Dito isto, não me resta outra hipótese, que não concluir (pela força da lógica), após uma breve reflexão, que o futuro da existência do povo guineense pode estar em causa. Digo “pode estar” porque o retrato que aqui exponho é baseado apenas na realidade observada no HNSM, que, no entanto, recordo, é o maior e o principal hospital do país (cabe a cada um tirar as suas inferências).

Sendo o hospital de referência nacional, foi preocupante constatar enormes deficiências estruturais e organizacionais. A começar pelo espaço físico. 

O HNSM é um hospital construído há várias décadas, ainda na época colonial, e projetado para servir um número limitado de população. Atualmente, a população que serve certamente multiplicou-se, mas as infraestruturas são basicamente as mesmas, acrescentando o desgaste próprio do tempo e do uso. As condições sanitárias são praticamente inexistentes. O próprio odor que se sente no ar, mesmo na periferia do hospital, faz-nos antever a dura realidade do seu interior. Esse odor certamente é resultado da mistura do sangue, suor, lágrima, dor, medo, gritos, desespero e ainda esperança de um povo. Trago comigo esse odor, pois tão cedo não se esquece. Há falta de espaço para tudo. Doentes sentados ou deitados lado a lado, nesse companheirismo involuntário de partilha de enfermidades. E quando há espaço, faltam cadeiras ou macas. Na Guiné-Bissau a relação com o chão tem um significado literal, pois na vida e na morte é o fiel amigo do corpo e da alma. 

Corpos sentados ou deitados no chão é uma visão recorrente. Outra situação “imoral” que deve ser denunciada, é a falta de recursos materiais, mesmo os mais básicos. Falo essencialmente de alguns meios complementares de diagnósticos e de tratamentos. E este último aspeto é deveras preocupante, pois é revelador do drama que o povo vive neste momento. Apenas alguns exemplos... No Serviço de Urgência (local vocacionado para avaliar e atuar com celeridade quando a vida está em causa), qualquer ato diagnóstico e terapêutico (independentemente da gravidade da situação) só pode ser executado após o doente (ou acompanhantes) adquirir os respetivos elementos necessários, por mais básicos que sejam. Ou seja, se o doente estiver com febre, tem de comprar o antipirético; se estiver desidratado, tem de comprar o soro e todos os acessórios para sua administração (sistema de soro, cateter, compressa, adesivo...); em caso de dor, idem

As perguntas que se impõem neste momento são: e se o cidadão não tiver possibilidade de adquirir o necessário? E que serviços mínimos o hospital garante ao cidadão que a ele recorre? Deixo as respostas à vossa imaginação. A falta de recursos humanos (médicos, enfermeiros, auxiliares de ação médica, serviços administrativos, etc.) é flagrante. Dois médicos sénior por turno de urgência, para acorrer a um fluxo constante de doentes. Para além dessas deficiências estruturais, acresce-se ainda graves deficiências organizacionais, nomeadamente a falta de coordenação entre os serviços (que funcionam quase independentes dos outros), entre as classes médicas, enfermagem e auxiliares da ação médica. Em suma, uma ausência de liderança! E neste panorama, o caos vai reinando...
Naquela conjuntura, dois pensamentos conflituantes apoderaram-se da minha mente. Por um lado, interrogava-me sobre a existência de um poder divino, e caso ele existe, se a Guiné-Bissau estará incluída na sua agenda. 

Ao mesmo tempo, tive uma revelação: a sobrevivência deste povo só poderá ser imputada a uma intervenção do além.

No semblante do povo, era patente um pedido de socorro que não conseguia verbalizar, pois consta que se resignou aquilo que acredita ser o seu destino... o sofrimento. Vieram em massa, de todos os cantos longínquos do país, para se entregarem aos cuidados desses doutores que de tão longe vieram, e de quem nada ou praticamente nada sabiam. Mas não importava!

É neste panorama descrito que a nossa equipa, composta na sua maioria por guineenses (sinais dos tempos? assim espero!), trabalhou, lado a lado com os colegas locais. E foi uma revelação constatar mais uma vez que uma equipa treinada, motivada e coordenada é funcional em qualquer cenário, e a Guiné-Bissau não é exceção.

Pude constatar o esforço sublime de muitos profissionais de saúde locais, que dão o seu melhor para evitar uma catástrofe certa. Profissionais jovens, inteligentes, interessados, determinados, com fome de aprendizagem. Olhares curiosos e atentos. São os soldados sacrificados da linha da frente. Merecem toda a minha admiração e respeito. A todos eles, deixo aqui a minha palavra de coragem e incentivo a darem sempre o melhor de si, focados na vossa missão, que é servir o nosso povo.

Aos nossos líderes, e por este ser um período propício a balanços e reflexões (mais profundas) sobre opções governativas (ou não governativas) que têm sido tomadas ao longo das últimas décadas, quero deixar um pedido especial: cuidem da saúde do nosso povo, pois estarão a cuidar do futuro da nossa nação.

Aos profissionais de saúde guineenses espalhados pelos quatro cantos do mundo, que procurais unir-vos, de forma a encontrar a melhor estratégia para que, em colaboração com os agentes locais, possam contribuir para mitigar a dramática situação que o povo da Guiné-Bissau enfrenta no domínio da saúde.

Se ontem foi possível, hoje também é! Afinal, somos feitos da mesma matéria prima.

21 de novembro de 2018
Hans Dabó
(Médico, Pneumologista)


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