Um pouco mais de duas semanas depois de os militares tomarem o poder na Guiné-Bissau, o país está agora de olhos postos sobre a cimeira extraordinária da CEDEAO a realizar-se no próximo domingo em Abuja, em que os chefes de Estado e de governo da região vão pronunciar-se sobre a situação no país, à luz do relatório produzido pelos membros da missão de mediação da CEDEAO que se avistou com o poder militar e a CNE em Bissau, pouco depois da desestabilização de 26 de Novembro.
Em Bissau, continua o frente-a-frente entre o poder militar e a sociedade civil que multiplica as iniciativas para ser ouvida, numa altura em que continuam presos três responsáveis da oposição, nomeadamente Domingos Simões Pereira, líder do PAIGC, de quem familiares e apoiantes dizem não conseguir ter notícias.
Continuam igualmente a elevar-se vozes a reclamar que sejam anunciados os resultados das eleições gerais de 23 de Novembro. Apelos aos quais ainda ontem o Procurador-Geral da República nomeado pelo poder militar respondeu considerando "nulo" o processo eleitoral em curso, dado que a CNE "não tem condições" para divulgar esses dados.
Uma situação perante a qual, ao longo destes últimos dias, algumas entidades ou países se posicionaram. No começo da semana, o Primeiro-ministro português reclamou o regresso à normalidade constitucional, desmentindo qualquer veleidade de ingerência. Por sua vez, a CPLP evocou uma suspensão temporária do país que actualmente assume a presidência rotativa do bloco e decidiu enviar uma missão de mediação, sem todavia especificar uma data.
Posicionamentos demasiado "tímidos" do ponto de vista da diplomata e antiga eurodeputada socialista portuguesa Ana Gomes.
RFI: Qual é a avaliação que faz da situação actual da Guiné-Bissau?
Ana Gomes: Eu devo dizer que a minha avaliação vem de antes de 26 de Novembro e que não fiquei surpreendida com a encenação de Golpe de Estado ensaiada e orquestrada por Sissoco Embaló, quando compreendeu que tinha perdido as eleições e como forma de arranjar um esquema para se perpetuar no poder. Os golpistas que estão, são obviamente instrumentos de Sissoco Embaló, e isto é o resultado de graves responsabilidades por parte da comunidade internacional e de Portugal, em especial, que durante estes anos respaldou Sissoco Embaló, inclusivamente dando-lhe condecorações nacionais, sabendo que ele era um autoproclamado Presidente que, ao autoproclamar-se, estava a violar a própria Constituição da Guiné-Bissau e não obstante todos os desmandos em matéria de violações de direitos humanos contra várias figuras da sociedade civil e da oposição que ele foi cometendo ao longo de todos estes anos, além do envolvimento dele, óbvio, com redes do narcotráfico.
Portugal, na minha opinião, tem muita responsabilidade, porque, obviamente, a voz de Portugal no quadro europeu conta e no quadro da CPLP. A voz de Portugal, durante muitos anos, não se fez ouvir como devia, no sentido da defesa do Estado de Direito Democrático da Guiné-Bissau e daqueles que efectivamente queriam respeitar os direitos humanos e, por isso, não me admira que a situação agora seja esta. E não convém continuarmos a iludir-nos.
O principal líder da oposição está desaparecido. Ainda ontem, li declarações da sua filha a dizer que desde o dia 26 de Novembro que não tem qualquer contacto directo, nem ela, nem a família, nem os advogados, nem ninguém, com Domingos Simões Pereira e outros presos. Portanto, temo pela vida de Domingos Simões Pereira e não há quem o tenha visto.
A própria Igreja fez tentativas de aproximação, mas não conseguiu chegar a ele. Não sabemos se efectivamente ele está vivo ou não. Há outros elementos da oposição detidos, e Sissoco Embaló, passeia-se de um país para outro, aparentemente não sendo muito bem visto em nenhum dos lados, mas passeia-se impunemente quando ele é, sem dúvida, o orquestrador de toda esta encenação que visa garantir-lhe que ele depois volte ao poder. E o facto de as actuais "autoridades" ilegítimas porem em causa o acto eleitoral, dizendo que não se conhece o resultado das eleições quando esse resultado é mais do que público, embora não tenha sido publicado oficialmente, mas é conhecido, visa apenas concretizar o projecto de anular as eleições e de manipular a encenação por mais algum tempo. E neste quadro, devo dizer que quer a CPLP, quer a CEDEAO são cúmplices. São cúmplices também da actual situação e não podem continuar a enganar se e a tentar enganar o resto da comunidade internacional sobre o que efectivamente se passa na Guiné-Bissau.
RFI: Relativamente, lá está, às organizações internacionais como CEDEAO, este fim-de-semana reúne-se em cimeira para abordar, nomeadamente a situação da Guiné-Bissau. Tem alguma expectativa relativamente àquilo que poderá sair desta cimeira?
Ana Gomes: Não, não tenho. Infelizmente, sei que CEDEAO é uma organização dominada ora pela Nigéria, ora pelo Senegal, muitas vezes em rivalidade. E que são esses jogos que no fundo, determinam também aquilo que mais lhes convém relativamente a qualquer país membro e em particular em relação à Guiné-Bissau. E os pronunciamentos que fizeram até agora, foram tudo menos claros. A própria missão que mandaram acabou por ser muito diminuída e não tem minimamente representado o que é a realidade da Guiné-Bissau.
E, portanto, no fundo, fazem o jogo de Sissoco Embaló e daqueles que são instrumento dele na Guiné-Bissau. E a CPLP também é estranhamente tímida e acaba por ser também cúmplice. É a mesma coisa em relação a Portugal. É uma desgraça para o povo da Guiné-Bissau. Mas eu não tenho dúvidas que só o povo da Guiné-Bissau é que pode mudar este estado de coisas.
E de alguma maneira o povo já falou. Falou nestas eleições em que claramente derrotou Sissoco Embaló e mostrou que queria voltar a uma via democrática. E, portanto, o mais elementar que há que fazer é reconhecer o resultado das eleições por, como Presidente, o Presidente que foi eleito, Fernando Dias da Costa, sabendo que tudo isto também foi tudo resultado de uma manipulação, porque foi impedido, por exemplo, o Domingos Simões Pereira de se apresentar sequer às eleições. Mas será uma solução que tem pelo menos o respaldo do voto do povo.
Na Guiné-Bissau, se Fernando Dias da Costa for empossado como Presidente da República, qualquer outra alternativa são esquemas para continuar a ditar a opressão e o roubo do povo da Guiné-Bissau e das riquezas do país e deixar que o país seja utilizado como plataforma do narcotráfico.
RFI: Diz não esperar nada da cimeira da CEDEAO. No entanto, vimos que a CEDEAO pode-se mostrar bastante reactiva em certos casos, como foi o caso do Benim, em que se posicionou imediatamente depois da tentativa de golpe.
Ana Gomes: Sim, mas infelizmente a CEDEAO não tem uma actuação consistente e coerente. Está muito submetida ao jogo das diversas potências que querem dominar a CEDEAO e em particular aquelas que são rivais como Senegal e a Nigéria. E é isso que muitas vezes parece determinar as posições da CEDEAO e não realmente o respeito pela democracia e os direitos humanos. Mas infelizmente estas acusações que eu faço aos países membros da CEDEAO, tenho de as tornar extensivas aos Estados europeus que ainda mais responsabilidades deveriam ter em matéria de respeito pelos direitos humanos e Estado de Direito, como seja o caso da França e como seja o caso de Portugal.
RFI: Até agora, a França que tem vindo a ter laços cada vez mais próximos com a Guiné-Bissau nestes últimos anos, não se pronunciou.
Ana Gomes: Pois, a França tem também tremendas responsabilidades. Faz parte de um jogo que infelizmente a França, muitas vezes, faz em relação a países africanos e designadamente naqueles em que tem alguma influência e em que procura fazer esse jogo também com as potências regionais.
E é muito significativo e lamentável que a França não se pronuncie claramente numa situação que é claríssima de violação do Estado de direito democrático e de violação dos direitos humanos grosseira, de repressão da oposição, repressão da sociedade civil, repressão dos jornalistas e da imprensa livre. E que a França tenha uma posição silenciosa é absolutamente lamentável.
RFI: Esta semana, organizações da sociedade civil da Guiné-Bissau dirigiram uma carta ao Presidente dos Estados Unidos pedindo que ele se mostre actuante relativamente a Guiné-Bissau e tome, por exemplo, a iniciativa de encetar uma investigação através do Departamento da Luta Anti-Narcotráfico (DEA) contra Sissoco Embaló, que acusam de estar ligado ao tráfico de droga.
Ana Gomes: Veja o desespero em que está a sociedade civil da Guiné-Bissau para dirigir uma carta a esse indivíduo boçal e claramente antidemocrático que é o Presidente dos Estados Unidos da América e que é, de resto, um indivíduo que até está a perdoar criminosos envolvidos no tráfico de droga, ao mesmo tempo que invoca o tráfico de droga como a razão, por exemplo, para intervir militarmente na América Latina e, concretamente na Venezuela.
É evidente que se os Estados Unidos fossem hoje uma democracia funcional -que não são por causa exactamente do que representa a liderança de Trump- é evidente que a DEA e outras instituições americanas poderiam ter aqui um papel determinante. Mas sob a direcção de Trump, não tenho a mais pequena confiança em que isso venha a acontecer e, portanto, do meu ponto de vista, revela a que ponto a própria sociedade civil da Guiné-Bissau está desesperada, não confia nos europeus e apela aos Estados Unidos, sabendo que os Estados Unidos hoje estão na mão de um sujeito que está a atacar o direito internacional, como é o caso da administração Trump e do presidente Trump.
Volto a dizer, eu acredito que a solidariedade internacional dos democratas e em particular nos países que têm ligações à Guiné-Bissau, pode contar, mas não conta determinantemente.
Aqui é o povo da Guiné-Bissau que tem que agarrar os seus destinos nas suas próprias mãos. É difícil, mas vai ter que ser assim, porque não acredito que ainda por cima no estado em que está o mundo neste momento, com os exemplos terríveis da administração Trump a violar o direito internacional, a fazer o jogo da Rússia, a atacar Europa, a atacar o Estado de Direito nos Estados Unidos e na Europa, não acredito que, a menos que os guineenses assumam os seus próprios destinos, naturalmente com elevado sacrifício, que a situação mude na Guiné-Bissau. Tenho a sensação que pode ainda piorar antes de começar a melhorar.
rfi.fr/pt

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