terça-feira, 6 de novembro de 2018

“ESCRITOS NO SILÊNCIO”

LEIAM a opinião do romancista Geraldo Martins, sobre os “ESCRITOS NO SILÊNCIO” de Carlos Vaz. Trata-se do texto lido no dia apresentação pública do livro em Bissau.

Notas da minha intervenção na cerimónia de apresentação pública do livro Escritos no Silêncio, de Carlos Vaz
Bissau, 31 de Julho de 2018

1. Cabe-me a imensa honra de partilhar a tarefa de apresentação de Escritos no Silêncio, a convite do autor, o poeta, dramaturgo e jornalista, Carlos Vaz, com a Zaida Correia e o Leopoldo Amado, meu grande amigo.
2. Aceitei o convite pela amizade que me liga ao Carlos e pela admiração que por ele tenho, como homem e profissional, embora tenha a plena consciência de que não sou a pessoa mais indicada para este papel. Considero o Carlos um amigo, alguém com quem me cruzei várias vezes nas lides profissionais, uma pessoa que aprendi a respeitar e a admirar pelo seu multifacetado percurso de vida.
3. Carlos é um homem das letras ¬– e das artes, na plena acepção da palavra. É também um homem do mundo, que levou a arte aos quatro cantos do mundo (e aqui, literalmente, refiro-me aos quatro cantos geográficos por onde passou: Guiné-Bissau, Portugal, Cabo-Verde e Suécia).
4. E eis que, depois de um longo parto, cuja causa Escritos no Silêncio nos revela ao longo das suas páginas, Carlos brinda-nos com um livro que é ao mesmo tempo uma colecção de poemas (II parte) e uma narrativa autobiográfica (I parte).
5. A primeira parte é uma espécie de intróito, ou notas autobiográficas que contextualizam as circunstâncias em que os poemas foram escritos, e que ajudam a perceber o sentido e o alcance de alguns dos poemas que compõem o livro.
6. É aqui que Carlos abre o livro da sua vida, que ele próprio define como atribulada. Talvez o aspecto mais marcante deste segmento do livro seja a grande honestidade intelectual do autor, que, sem pudor e com um invulgar despreendimento, faz um relato histórico dos momentos mais marcantes da sua vida. Por exemplo, as referências pouco abonatórias que ouviu sobre o curso de teatro que fez em Lisboa, quando desembarcou em Bissau no início dos anos oitenta, ou a confissão (deveras exagerada) de que não domina a língua de Camões, língua que não é nossa, confissão também presente no poema Vontade Poética:

Compreendo
Que a língua de Camões não é a minha,
Foi-me dada de empréstimo
Pelos marinheiros de naus e caravelas
7. São várias vivências que vão dos últimos anos do período colonial ao período pós independência, com as vicissitudes políticas que lhes caracterizaram. É logo nas páginas iniciais que o autor, Carlos, se nos apresenta como Beto, seu heterónimo de infância, com as imbricações pessoais que Leopoldo Amado desconstrói com mestria no prefácio do livro.

8. O percurso do Carlos, ou do Beto, é recheado de alguns dramas pessoais. Desde logo, a perseguição política, presente ao longo de vários anos, que o levou a uma peregrinação involuntária, da Guiné natal a Portugal, depois a Cabo-Verde e à Suécia, por vezes com episódios de incompreensão, como por exemplo quando, tendo abandonado a Guiné, onde era acusado de subversão, por causa da sua peça de teatro si kussa murri cussa ku matal, encontra refúgio em Cabo-Verde, onde, paradoxalmente, também se suspeita que a peça teatral é anti Cabo-verdiana, num curioso paralelismo com o percurso do próprio pai que também fora vítima de incompreensão do género, acusado pelo PAI de ser um traidor e hostil à independência, e acusado pelo poder colonial de ser um nacionalista.
9. Mas Carlos é um irreverente, um homem que não se resigna perante as adversidades, e que está sempre disposto a desafiar o status quo, com imaginação e criatividade. Aliás, a criatividade parecer estar arreigada nos seus genes, empurrando-o para a polivalência. Por isso as suas multifacetadas qualidades; por isso o toque artístico presente em tudo o que faz. A irreverência constante está presente nos seus poemas. Os seus versos evocam algumas características da sua própria personalidade.
10. Não evocarei muito o conteúdo dos poemas que constam deste livro, pois o Leopoldo já o fez de um modo que só ele seria capaz. Mas há nos escritos poéticos do Carlos alguns aspectos que vale a pena destacar. Primeiro, o espaçamento temporal dos poemas, escritos ao longo de 40 anos, entre 1973 e 2015. A pergunta que logo vem à baila é: porquê tanto tempo?
11. A resposta é-nos dada por um dos poemas, talvez o mais emblemático deste livro, Ode ao Silêncio. Ao longo de 13 páginas do livro, o poema responde a esta importante interrogação:
Por favor, não me interroguem

Qual a razão do meu silêncio,
Porque não estou em condições de responder,
Não tenho resposta ideal a proferir.
É reflexo dessa sociedade,
Em que o melhor é ser-se surdo e mudo.

12. O primeiro período dos escritos poéticos, a que o autor chamou O Despertar da Poesia, coincide com a sua juventude, a fase de busca de resposta para as grandes interrogações da vida. Não surpreende, pois, que seja nesta fase que o poeta se lança na busca da sua identidade e afirma a sua identidade crioula. O poema Ode à reflexão, escrito aos 19 anos de idade, simboliza esta busca da identidade.
13. Nos versos do Carlos soa uma multitude de sentimentos: revolta, apelo revolucionário, resistência contra as injustiças… Neles, deleitamo-nos com estrofes que são a sublime evocação de um patriotismo intenso, que se manifesta de forma eloquente no próprio percurso de vida do autor.
14. Carlos também é um criativo até na forma como usa a língua, chegando ao ponto de inventar palavras, para abarcar ideias que ele entende não serem sobejamente captadas por nenhuma outra palavra. É assim que ele introduz a palavra terranos, para designar uma mentalidade mais global ligada ao planeta terra, no poema Paródia aos Descobrimentos, e usa a expressão crioula papia, que transforma em verbo papear (falar), num interessante crioulicismo, no poema autocrítica do partido.
15. Estamos pois a falar de uma obra que se confunde com a vida do seu autor, e que representa um aporte cultural imenso para a compreensão das peripécias políticas, sociais e culturais de uma sociedade prenhe de contradições, que ainda está por se reconciliar consigo mesma.
16. O poeta é um fingidor, diz-nos o Carlos no poema que inaugura o livro. Talvez seja esta a metáfora mais ilustrativa da sua própria vida, em que precisou de fingir em vários momentos para se superar e se encontrar.
17. Em ESCRITOS NO SILÊNCIO, descobrimos um poeta comprometido com o seu tempo, um artista intelectualmente irrequieto e inconformado, mas um homem altruísta, que se eleva até à estratosfera do que é a bondade humana.
Geraldo Martins



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