Francisca Pereira, antiga dirigente e professora na escola-piloto de Amílcar Cabral, em Bissau em Setembro de 2023. © Liliana Henriques / RFI
A Guiné-Bissau comemora no próximo dia 24 de Setembro os 50 anos da sua independência. Neste quadro, a RFI propõe desde esta segunda-feira até domingo uma série de reportagens e entrevistas alusivas à História do país e em particular ao período da luta de libertação. Hoje, no quinto e no sexto episódio desta série, debruçamo-nos sobre a importância dada por Amílcar Cabral à educação, para a criação de um 'homem novo' emancipado do sistema de ensino e de valores do colonizador.
Neste sentido, na sequência do Congresso de Cassacá, o PAIGC cria em 1964 a escola-piloto com o intuito de apoiar os filhos dos combatentes e os órfãos de guerra. Instalada em Conacri de onde os independentistas conduziam as suas operações, a escola-piloto viu o seu conceito de educação ser estendido a outras escolas que foram sendo erguidas nas zonas libertadas. os jovens que frequentaram esse sistema de ensino ficaram conhecidos como os "meninos de Cabral".
Julião Soares Sousa, historiador guineense ligado ao centro de estudos interdisciplinares da Universidade de Coimbra, que tem sido o nosso fio condutor nesta digressão, detalha o que era a Escola-Piloto. "Amílcar Cabral considerava que o povo devia ter direito à educação. Essa educação que foi gerada pelo PAIGC no interior do território, nas áreas libertadas, mas também em Conacri e no Senegal, essas escolas eram o motor da reacção contra a presença colonial portuguesa, a presença histórica do colonialismo português, que tinha também os seus reflexos na educação e na cultura. Com base nisso, a cultura e a educação também aparecem como uma forma de resistência à colonização portuguesa", refere o universitário.
"Ele vai tentar fazer algo que fosse totalmente diferente do regime colonial porque uma altura em que ele dizia 'nós temos que ensinar às crianças a importância que o PAIGC tem nas suas vidas, porque o próprio colonialismo também fala no milagre de Fátima, fala do colonialismo português como se fosse uma coisa muito importante para nós. Nós temos que saber também fazer oposição a esse tipo de escola. Nós temos que criar a nossa própria escola com base nas nossas próprias raízes'", acrescenta.
Apesar de criar um conceito novo de educação dirigido à população do seu país, Amílcar Cabral vai optar por privilegiar o ensino da língua portuguesa, como língua de trabalho e formação. Uma escolha que gera debate entre os seus apoiantes.
"De facto, havia uma pressão de algum grupo dentro do PAIGC que achava que se devia ensinar nas línguas nacionais e Cabral não cedeu a esse tipo de pressão porque achava que a língua portuguesa era a maior riqueza que os portugueses tinham deixado e nós devíamos aproveitar, porque não se podia ensinar às crianças, por exemplo, aspectos relacionados com a ciência, ele às vezes até usava o exemplo de o Homem ir à lua, muitas das vezes para ensinar as crianças. Como é que se podia dizer raiz quadrada em Balanta, Fula ou Mancanha? Ele usava muitas vezes estes exemplos para mostrar a importância que a língua portuguesa tem", explica o historiador.
Noutro quadrante, a escola-piloto também foi um dos instrumentos de valorização e emancipação da mulher guineense, como parte integrante da luta pela independência da Guiné-Bissau.
A guerra de libertação teve as suas heroínas. A mais conhecida é Titina Silá, jovem combatente que morreu numa emboscada no norte da Guiné em Janeiro de 1973 quando estava a tentar viajar rumo a Conacri para prestar uma última homenagem a Cabral quando foi assassinado. Outras mulheres, como Teodora Inácia Gomes ilustraram-se igualmente nas frentes de combate e na política, sendo que a Escola-Piloto foi uma dessas outras frentes em que mulheres, como a activista cabo-verdiana Lilica Boal, ou ainda a diplomata e feminista Francisca Pereira foram muito activas.
Ao recordar como entrou nesta luta, primeiro como tesoureira do partido, em Conacri onde vivia desde 1958, Francisca Pereira, que foi vice-directora e também professora da escola-piloto, refere que assumiu o papel de formadora mas igualmente de mãe. "Tinha a área não só da educação feminina, tinha também a área de preparativos. Havia crianças que não sabiam comer com faca e garfo. Tinha essa responsabilidade de (ensinar) como se vestir, como se deitar, de como se portar e também dava formação de segunda classe, aprender a ler, a escrever. (...) Assumi o cargo de mãe, mas também o cargo de preparar as crianças para serem seguidores da obra de Cabral no futuro".
Dois antigos alunos da escola piloto, Califa Seidi, actual líder parlamentar do PAIGC, e outro responsável político guineense, Iancuba Ndjai, evocaram também os anos passados naquela estrutura.
Ao recordar o seu percurso na escola-piloto onde integrou os primeiros grupos de alunos, Iancuba Ndjai refere que naquela época se "criou toda uma cadeia de formação de quadros exactamente no sentido de o país se dotar de quadros. A Guiné portuguesa, na altura, tinha no máximo 11 quadros formados, e engenheiros como Amílcar Cabral contavam-se pelos dedos. Mas mesmo assim, Amílcar Cabral faz questão de formar os quadros para amanhã eles serem exactamente aqueles que vão contribuir para o desenvolvimento do país. Estrategicamente, Cabral nos dizia que se ele tivesse tempo, se não fosse a atitude completamente irracional do regime colonial, ele preferia fazer a luta através da escola".
Político guineense Iancuba Ndjai, antigo aluno da escola-piloto, em Bissau em Setembro de 2023. © Liliana Henriques / RFIRelativamente à própria organização do quotidiano e das actividades da escola, Iancuba Ndjai fala de um espaço tendendo a favorecer a iniciativa das próprias crianças. "Em termos de logística, nós como crianças, a nossa preocupação era comer. Comíamos como queríamos. Em termos de salas de aulas, de organização interna, era uma escola de autogestão em que os alunos se ocupavam da própria escola, coma coordenação dos nossos professores. Havia grupos para a cozinha, grupos para a limpeza, para controlo das actividades, grupos para a ginástica. Toda a vez que Cabral estava em Conacri, às 6 horas da madrugada, ele estava connosco. Ele vinha à escola-piloto. Era o período da ginástica. Depois da ginástica, eram as aulas. Tínhamos matemática, física, química, tínhamos português. A nossa língua na escola era o português (...). A nossa língua do dia-a-dia, fora das aulas, era o crioulo, como dizia Cabral, era a 'língua da luta'. Mas a coisa mais interessante na escola-piloto -e que não havia nos internatos- é que era um local de acesso e de liberdade para as crianças", conta.
Foi também muito novo que Califa Seidi, líder parlamentar do PAIGC, frequentou a escola-piloto, uma escola que, a seu ver, foi fundamental no seu percurso. Quando recorda Amílcar Cabral, o responsável político recorda a relação de afecto que ele alimentou com os alunos da escola.
Califa Seidi, líder parlamentar do PAIGC e antigo aluno da escola-piloto, em Bissau em Setembro de 2023. © Liliana Henriques / RFI"Ele tratava a escola-piloto com carinho porque dizia mesmo que as crianças são flores da nossa luta, que a luta deles na altura não valia a pena se não tivesse de facto aquelas flores (...) Ele foi como um pai e tratou-nos como os seus filhos, mas filhos com uma outra mentalidade", evoca Califa Seidi.
"Durante a nossa formação na escola-piloto, houve um rigor na preparação das pessoas. Podemos contribuir melhor para o desenvolvimento do país, sem preconceitos, porque fomos educados dessa forma. Ensinavam-nos lá tudo sobre a Guiné-Bissau, sobre a Guiné portuguesa, porque éramos africanos da Guiné. Também estávamos tudo o que era sobre África, impérios africanos, etc... para conhecermos, para reafricanizar-nos, porque tudo o que o colonialismo português nos ensinava era sobre Portugal, sobre a Europa, mas nunca sobre África", relembra ainda o antigo aluno da escola-piloto que, no decurso do seu relato, expressa gratidão pelos anos passados nesta estrutura.
Conosaba/rfi.fr/pt/
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