[REPORTAGEM_agosto de 2022] A Associação de Amigos de Criança (AMIC), uma ONG nacional que defende os direitos das crianças, resgatou entre Janeiro e Agosto do ano em curso, 25 crianças guineenses vítimas do “Casamento Forçado”, uma prática que continua a generalizar-se por todo o país. Segundo a AMIC, 80% destas crianças com idade compreendida entre 13 e 14 anos, foram obrigadas a casarem-se com homens de acima dos 60 anos de idade.
A organização já conseguiu reintegrar 14 crianças junto dos seus familiares e as restantes 11 continuam nas instalações da AMIC, sediada no bairro do Enterramento em Bissau.
A informação foi transmitida ao Jornal O Democrata pelo Administrador da AMIC, Fernando Cá, durante uma entrevista, no âmbito da Bolsa de Criação Jornalística sobre Direitos das Mulheres e Cidadania, promovida pela Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH), Casa dos Direitos, MIGUILAN, Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP) e a Associação Nacional das Mulheres Jornalistas e Técnicas de Comunicação Social (AMPROCS).
TITE É A ZONA COM MAIS CASOS DE CASAMENTOS PRECOCE NA GUINÉ-BISSAU
“Só em 2022, a nível da organização, já resgatamos um total de 25 meninas que foram forçadas a casamento e este número refere-se somente a esta prática. A maioria destas crianças já foram reintegradas nas suas famílias, porque a AMIC entende que o lugar mais propício para uma pessoa crescer é dentro da sua família. Mas 11 delas continuam na nossa Instituição, uma vez que a situação familiar ainda permanece complicada, porque os pais continuam determinados nas suas decisões”, disse.
“A maior parte destas meninas já resgatadas foram obrigadas a casarem-se com homens que podem ser os seus avós, que já estavam casados com as tias delas. Estas crianças enfrentam enormes dificuldades durante a gestação e no momento do parto”, explicou.
Segundo os dados estatísticos disponibilizados pela AMIC, as zonas em que este fenómeno é mais frequente são: Gabú, Ingoré, Nhacra, Bissorã, Incheia, Catió, Tite, Biombo. O setor de Tite, concretamente nas aldeias de Bissassima de baixo e de cima, são as localidades onde a prática de casamento forçado é gritante na Guiné-Bissau.
“O nosso colaborador e presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos para região de Quinara, Formosinho da Costa, tem relatado e denunciado a prática do Casamento Precoce naquela zona sul da Guiné-Bissau, onde recentemente uma menina foi espancada até à morte por causa desta prática tradicional. Embora em Tite, haja várias iniciativas de sensibilização de materialização do casamento forçado, graças a colaboração de Formosinho Costa, várias tentativas foram desmanteladas naquela localidade”, disse.
Por causa das suas denúncias sobre fenómeno, o ativista e dirigente da LGDH foi alvo de tentativa de assassinato por um grupo de pessoas, por ter acolhido quatro raparigas que foram alvos de casamento precoce e que decidiram pedir-lhe proteção.
Segundo a explicação de Cá, o fenómeno do Casamento Forçado está associado a três fatores, nomeadamente ao analfabetismo, à cultura e à pobreza, que “estão a contribuir negativamente nas vidas das meninas há vários anos.”
“Recentemente recebemos um caso de Casamento Forçado, porque o pai de uma menina tinha uma dívida ligada a gado bovino, porém não tinha dinheiro para liquidá-la. Decidiu dar a sua filha em casamento para saldar a conta, mas o fato não se consumou porque a menina acabou por fugir”, contou Cá.
Questionado sobre a intervenção das autoridades para pôr cobro a esta prática no país, o Administrador da AMIC realçou a colaboração efetiva da Polícia Judiciária (PJ) no resgate das vítimas do fenómeno, mas lamenta o procedimento do Ministério Publico (MP) relativamente aos casos que dão entrada na instituição.
Cá, que trabalha há quase 30 anos numa ONG nacional que defende direitos das crianças, revelou que até ao momento não houve nenhuma condenação, pelas instâncias judiciais, de responsáveis por esta prática na Guiné-Bissau.
“Até então eu não vi uma pessoa que forçou a sua filha a casar-se com um adulto a ser sancionada pelas instâncias competentes”, sublinhou.
Perante este cenário, Cá pede o envolvimento das autoridades, nomeadamente do Ministério Público, no sentido de responsabilizar os promotores de casamento precoce. O Administrador da AMIC realçou ainda o reforço da campanha de sensibilização com vista a alertar a sociedade do risco deste fenómeno nas meninas com menos de 18 anos de idade.
Fundada em 1984, com o objetivo de promover e defender os direitos das crianças nas comunidades de origem e na sociedade em geral e com a participação das próprias crianças, a AMIC tem recebido, de há vários anos, um número significativo de crianças vítimas dessa prática, mas nos últimos anos não tem recebido o apoio das autoridades. Cá revelou que a AMIC apenas tem recebido apoio dos parceiros internacionais, nomeadamente das embaixadas, o que lhes tem permitido cuidar das crianças vítimas de casamento forçado.
Os dados do Inquérito aos Indicadores Múltiplos (MICS6) indicam que a percentagem de mulheres entre os 20 e 24 anos que se casaram ou se uniram pela primeira vez antes dos 15 anos é de 8,1% e antes dos 18 anos 25,7%.
PRESIDENTE DA FAP: “CASAMENTO PRECOCE É INDISSOCIÁVEL DA VIOLAÇÃO SEXUAL”
Confrontado com os “dados gritantes” sobre o fenómeno, a presidente da Fundação Ana Pereira (FAP), Maimuna Gomes Silá, lembrou que o Casamento Forçado tem várias consequências na vida das meninas.
“Submeter uma menina ao casamento forçado tem várias consequências como abandono escolar, a gravidez precoce, a questão da violação sexual. O casamento precoce é indissociável da violação sexual, porque vai acontecer a cada momento que o homem se relaciona sexualmente com ela. Também podemos falar do parto prematuro e complexo”, disse.
Gomes Silá adiantou ainda que outro efeito deste fenómeno é o isolamento social, uma vez que entrará num contexto onde a menina pode ser hostilizada e afastada do seu meio, estando agora no número das mulheres casadas.
A organização liderada por Silá defende que seja dada uma atenção especial às famílias mais desfavorecidas que vivem no limiar da pobreza e sem apoio do Estado da Guiné-Bissau. Neste sentido, lançou em 2020 um inquérito sobre a violência baseada no género na Guiné-Bissau, elegendo três grupos de profissionais da Saúde, da Educação e da Justiça cujo nível de conhecimento relativamente a esse fenómeno era conhecido.
Segundo explicação de Gomes Silá, num universo de 1016 inquiridos, conclui-se que 17 profissionais defenderam que se um pai decide que a sua filha menor vai casar-se, não está a violar os direitos das crianças e 999 dos profissionais têm um entendimento contrário sobre a matéria.
Silá revelou que depois da conclusão do inquérito, a FAP criou uma rede das profissionais que apoia as meninas e mulheres vítimas de violência, que conseguiu formar mais de 200 profissionais de Gabú, Oio, Cacheu, Tombali e Bolama-Bijagós. Silá acrescentou que cada uma dessas localidades tem os respetivos delegados, nomeadamente da Justiça, da Saúde, da Educação e um coordenador regional para humanizar e garantir um atendimento integrado das vítimas do casamento forçado, entre outros casos ligados às mulheres.
Igualmente advogada de profissão, Gomes Silá anunciou que a organização que lidera prepara uma ação de capacitação que integrará a Polícia Judiciária (PJ) nessa rede para sensibilizar as autoridades policiais e judiciárias sobre a necessidade de estarem mais sensíveis a essa prática na Guiné-Bissau.
A FAP atua nas áreas sociais, educação, saúde e sobretudo lida diretamente com crianças carenciadas de famílias pobres.
Segundo a legislação guineense, a idade para se casar é a partir dos 16 anos, mas a Guiné-Bissau ratificou todas as convenções internacionais sobre os direitos das crianças e todas elas estipulam que a idade para se casar é a partir dos 18 anos.
O casamento infantil tem consequências duradouras nas meninas, que persistem muito para além da adolescência. As mulheres casadas na adolescência ou mais cedo, lutam com os efeitos de gravidezes precoces em idade jovem e, muitas vezes, em curto espaço-tempo entre os partos.
O casamento precoce seguido de gravidez na adolescência também aumenta significativamente complicações de parto e isolamento social. As meninas que dão à luz antes dos 15 anos de idade têm um risco de 88% de desenvolver fístulas obstétricas, que provocam incontinência fecal ou urinária, causando complicações ao longo da vida com infecções e dores associadas.
A menos que cirurgicamente reparadas, as fístulas obstétricas podem causar anos de incapacidade permanente. As meninas casadas também têm um risco aumentado de DST, cancro do colo do útero e malária do que meninas não casadas ou de jovens que se casam aos 20 anos de idade.
Por: Alison Cabral
Foto: AC
Conosaba/odemocratagb
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