segunda-feira, 27 de setembro de 2021

“Não se pode perceber tanto ódio, tanta vingança, tanta repressão”

A diáspora guineense assinalou este sábado, em Paris, os 48 anos da independência da Guiné-Bissau, cerimónia que contou com a presença do antigo primeiro-ministro guineense, Aristides Gomes. Em entrevista à RFI, Aristides Gomes mostra-se preocupado com o actual estado de direito no país. “Não se pode perceber tanto ódio, tanto sentido de vingança, tanta repressão”.

RFI: O senhor participa na comemoração dos 48 anos da independência da Guiné-Bissau, organizada pela diáspora, aqui em Paris. Qual é o programa?

Aristides Gomes: Mais uma manifestação de convívio para marcar a adesão de todas as franjas da população guineense, quer no interior, quer na diáspora, ao princípio de termos um Estado independente e de constituirmos uma nação que quer avançar para o desenvolvimento.

Que retrato faz do país que acaba de assinalar 48 anos da independência?

Não só temos uma crise política, decorrente de eleições em que as coisas ficaram pouco claras, como estamos a viver um regime que está num plano cada vez mais surreal. Um regime que tem medo de enfrentar a realidade.

Tudo se passa como se as pessoas que estivessem a governar só tivessem um objectivo: o de resolver os seus problemas pessoais. Têm medo do debate político, dos adversários políticos, medo de dizer a verdade sobre as coisas que se passam.

O chefe de Estado guineense, Umaro Sissoco Embaló, defendeu-numa mensagem à nação-que o país vive um momento de mudança de uma geração de fracasso para a geração de concreto. O senhor revê-se nas palavras do chefe de Estado?

Homens e mulheres do regime repetem algumas fraseologias que conseguiram captar lá fora, cujo contexto nem sequer conhecem.

O que é que significa a geração de concreto? É uma expressão, que conheci no Senegal, utilizada por certos políticos que quiseram passar uma determinada mensagem, que não tem nada a ver com a situação que se vive na Guiné-Bissau. A geração que detém o poder hoje, na Guiné-Bissau, é a mesma geração daqueles que tiveram o poder nos últimos dez anos.

A pandemia da Covid-19 veio expor as fragilidades do sector da saúde a nível mundial. Que leitura faz da resposta das autoridades guineenses para lidarem com esta pandemia?

Não houve resposta nenhuma, porque houve uma ruptura de todo um processo que iria conduzir a respostas adequadas. (...) Nós já estávamos numa situação em que tínhamos estabelecido um salário mínimo, na hierarquia do poder de compra do salário mínimo, que nos deixava na terceira posição na nossa sub-região. Ultrapassamos países que tiveram mais anos de estabilidade do que nós.

Nós estabelecemos um estatuto de carreira para os docentes, para o sector da saúde. O estatuto do sector da educação já estava a ser aplicado e em relação ao sector da saúde já tínhamos condições para poder iniciar a sua aplicação.

Mas o que é que aconteceu a tudo isso? Hoje o país vive grandes dificuldades. Os efeitos da pandemia fizeram sentir-se na economia do país... Que balanço faz das medidas implementadas pelo actual executivo para lidar com a crise económica?

Como eu estava a dizer, estávamos a criar condições para podermos ter uma certa resiliência, em relação a outras crises: como a crise da pandemia. Quando saímos, tínhamos um plano de resiliência para poder fazer face à pandemia. Foi nessa perspectiva, eu acho, que o novo regime acabou por nomear a pessoa que tinha a pasta da saúde no meu governo. [Magda Robalo, Alta Comissária de Luta contra COVID-19 na Guiné-Bissau]. Apesar de sozinha não conseguir fazer milagres. A luta contra as consequências da pandemia têm de ser num âmbito muito mais global.

O país tem vivido vários movimentos de greve no sector da educação, recentemente no sector da saúde. O actual governo fala em partidarização dos sindicatos, diz que não há salários em atraso, mas sim dívidas acumuladas de anteriores governos. O senhor sente que o seu governo foi responsável por esta situação?

Eu gostaria que me apresentassem cifras sobre essas tais dívidas. Não estou a ver de que dívidas se trata. O pagamento regular de salários é um dever de qualquer governo, isso não é nada de extraordinário, sobretudo, quando o actual regime paga os salários com a ajuda externa.

Nós não tivemos ajuda externa nenhuma. Tomara eu ter 21 mil milhões de francos CFA dados pelo FMI [Fundo Monetário Internacional]. Mesmo quando o FMI deu esse dinheiro, no âmbito da luta contra a pandemia, esses governantes disseram que receberam esses montantes devido à sua boa performance.

É toda esta fuga, em relação à realidade, todo este medo de dizer a verdade. É um regime que está numa perspectiva nunca antes vista na Guiné-Bissau, apesar de todas as crises que nós conhecemos.

Nos últimos meses várias figuras da sociedade civil e políticos foram impedidos de sair do país. Houve denúncias de perseguições políticas, denúncias de tentativa de assinato. Vê com preocupação o estado de direito na Guiné-Bissau?

Isto é incrível, nunca tivemos situações do género. Mesmo depois da independência, havia uma lógica-houve repressão-que vem da historicidade, resulta de uma guerra. Esta situação, não se compreende-não tivemos nenhuma guerra-tivemos eleições contestadas, mas tivemos eleições. Não se pode perceber tanto ódio, tanto sentido de vingança, tanta repressão. Não se pode compreender. A única maneira de se compreender isso é que, de facto, estamos face a gente que não veio para governar, veio para a política para ganhar a vida.

O Procurador Geral da República da Guiné Bissau afirmou, no passado, que o senhor estava indiciado de vários crimes. Os seus advogados vieram depois dizer que não existia nenhum processo. Como é que está essa situação?

Não foram os meus advogados que disseram, eles limitaram-se a retomar a declaração do Tribunal da Relação de Bissau, demonstrando que não há nada contra mim. Entretanto, avancei com uma queixa contra a Procuradoria-Geral da República e contra o Procurador, por ele ter inventado todo um processo e ter instrumentalizado um juiz para me acusar. Um juiz que não estava em funções, cujas funções não se adequavam com a de fazer acusações contra a minha pessoa, sendo eu um ex-primeiro-ministro. É preciso que a queixa possa circular no sistema judiciário e que se possam apurar as responsabilidades.

Pondera regressar à Guiné-Bissau? Continua a ter ambições políticas?

Eu pondero regressar à Guiné-Bissau, mas não tenho ambições políticas particulares. Tenho ambição de poder participar no processo político como militante do PAIGC, como sempre fiz.

Não receia regressar?

Neste momento, toda a gente-que tem alguma postura de seguir um processo normal de participação na vida política da Guiné-Bissau-tem medo. Basta ver os casos que podem ser apresentados cronologicamente de políticos, de empresários que tiveram dificuldades, sem terem sido indiciados de algum crime. Eu estou nessa mesma lista.

Conosaba/rfi.fr/pt

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