A pandemia de
COVID-19, causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV 2), teve início na cidade de
Wuhan (província chinesa de Hubei), em dezembro de 2019. O primeiro caso
relatado em África foi no Egipto a 14 de fevereiro 2020. A Guiné-Bissau, por
sua vez, anunciou os seus dois primeiros casos a 25 de março de 2020.
Com a declaração
de pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) a 11 de março de 2020, o
mundo foi sacudido por uma onda de choque. Para além de milhares de vidas
ceifadas em todo mundo até ao presente momento, a doença plantou a semente do
medo no coração de homens e mulheres, em particular, daqueles que já em si
carregam o peso da luta pela sobrevivência diária, como é o caso do povo guineense.
Perante este
desafio que todos enfrentamos, o medo e o pânico podem ter um efeito
catastrófico na nossa capacidade de pensar com clareza e de agir em
conformidade.
Neste cenário de
incertezas, têm sido verificados diferentes comportamentos em todo mundo face
ao problema, e o nosso país não é exceção. Temos observado comportamentos tão
extremos como o pânico, a descrença, explicações sobrenaturais, entre outros.
Enquanto
guineense e profissional de saúde, sinto-me na obrigação de trazer alguns
esclarecimentos e provocar algumas reflexões.
Para esclarecer
aqueles que ainda são consumidos pela dúvida, começo por afirmar que de facto
este vírus (SARS-CoV 2) é uma realidade, e que provoca uma doença respiratória
(COVID-19) que pode ser grave e fatal. Além do mais, a doença pode afetar todos
os indivíduos, sem exceção, seja qual for a sua idade, género, raça, crenças
religiosas, estatuto socioeconómico ou cultural. Tem uma taxa de mortalidade
global que ronda os 3.4%.
É inegável que este
é um desafio desproporcional à nossa capacidade de resposta, pois acarreta um peso
extra ao já deficitário sistema de saúde do país. Torna-se, desta forma,
importante usarmos todas as ferramentas à nossa disposição para construirmos o
melhor plano possível capaz de minimizar o impacto desta pandemia no nosso
país. No final de tudo, o país deve continuar a existir com a menor sequela
possível, nomeadamente socioeconómica.
Na elaboração de
um plano de combate a esta pandemia, deve ser considerada uma abordagem multidimensional
do problema, integrando vários atores de reconhecido mérito profissional (profissionais
de saúde, sociólogos, juristas, antropólogos, economistas, políticos...), para
acautelar que as decisões tomadas sejam as mais justas e equilibradas,
consubstanciadas nas melhores informações técnico-científicas presentemente
disponíveis.
Não podemos
fugir da nossa realidade. É a partir dela que temos que construir soluções,
mesmo que isso implique confrontarmo-nos com decisões difíceis. Se assim não
for, corremos o risco de, por mais que tenhamos boas intenções, criar uma
situação ainda mais catastrófica do que o próprio impacto da pandemia em si,
capaz de uma repercussão mais dramática na vida social e económica da nossa população.
Atualmente não existe
nenhum tratamento curativo ou vacina contra o vírus SARS-CoV 2. Nesse sentido, a
estratégia adotada pela maioria dos países, é a de prevenção e controlo da
infeção, de forma a conter a sua rápida propagação, e assim não sobrecarregar
os sistemas de saúde, para que estes possam dar respostas adequadas dentro das
suas limitações.
Devido à fraca
capacidade de resposta do nosso sistema de saúde, esta estratégia provavelmente
é a mais assertiva para a Guiné-Bissau.
O “confinamento
social”, que tem sido amplamente adotado em todo mundo, é de facto, em teoria, bastante
eficaz. No entanto, quando aplicado de forma desajustada, principalmente
prolongado no tempo, pode ter efeitos catastróficos, sobretudo no domínio
socioeconómico. Para além disso, e nas circunstâncias atuais, não dispomos de
dados científicos que ajudem a estabelecer um horizonte temporal para a
aplicação destas medidas. Dito isto, podem ser necessários vários meses até
conseguirmos controlar a pandemia.
Sendo assim,
torna-se evidente que tais medidas devam ser implementadas com cautela e de
forma proporcional, para que não tenham um efeito perverso. É lógico que num
país como a Guiné-Bissau, com uma economia frágil, dependente de setores como o
pequeno comércio, agricultura de subsistência e pesca, a implementação dessas
medidas, de forma indiscriminada e por um período longo, torna-se irrealista.
Caso a façamos, podemos estar a empurrar uma boa parte da população para o lado
da pobreza extrema e um sofrimento agonizante.
Olhemos para
algumas informações que a ciência nos dá sobre o vírus SARS-CoV 2 e a doença
COVID-19, para que nos sirvam de guia.
· - Sabemos até então que o vírus se transmite por
contato com as gotículas libertadas através da via respiratória de indivíduos
infetados pela tosse ou espirro, que podem entrar diretamente pela boca, nariz
ou olhos das pessoas próximas, ou ainda, pelo contato das mãos com superfícies
infetadas que depois são levadas essas mesmas mucosas;
· - Existe ainda evidência de que indivíduos
assintomáticos podem transmitir a doença;
· - Baseando-se na experiência chinesa, cerca de 80%
dos casos apresentam uma doença ligeira (sem pneumonia), e os restantes 20%
podem desenvolver uma doença grave (pneumonia) com necessidade de cuidados
hospitalares. Embora os números oscilem, até 5% dos doentes podem necessitar de
admissão numa Unidade de Cuidados Intensivos (UCI);
· - O principal fator de risco para a gravidade da
doença é a idade avançada (geralmente acima de 65 anos). Outros fatores de
risco incluem a presença de comorbilidades (doenças crónicas) como a
hipertensão arterial, a diabetes, obesidade, doenças cardíacas, respiratórias,
imunodepressoras e oncológicas;
· - Os dados apontam ainda para um comportamento
relativamente “benigno” da doença em crianças, embora os dados sejam escassos,
principalmente em crianças em idades precoces;
· - Apesar de os dados serem conflituantes, parece que
pode haver um efeito negativo na proliferação do vírus em regiões de altas
temperaturas e humidade;
· - Um fator perturbador, porém, é o facto de o vírus
sofrer mutações, que podem influenciar a sua virulência e capacidade de
transmissão, o que impossibilita prever cenários futuros.
Dito isto, conclui-se
ser fundamental a integração de dados sociodemográficos e geográficos do nosso
país na elaboração de um modelo epidemiológico do comportamento da doença no
nosso território. Só dessa maneira podemos tomar as melhores decisões, que
sirvam os melhores interesses da nossa população.
Antes de
terminar, deixo algumas reflexões sobre eventuais estratégias que poderiam ser
adotadas num plano de ação contra esta pandemia:
1 1- Centrar os esforços e os recursos limitados na
contenção da pandemia através de uma estratégia de prevenção e controlo de
infeção que seja realista, equilibrada e justa, tendo em conta o comportamento
da doença (elencados anteriormente), aproveitando o facto de ainda não se
verificar a transmissão comunitária da doença; aqui se destacam medidas de
rastreio ativo dos contactos com casos de doença, distanciamento físico e
social, restrições de viagens, etc.;
2 2- Encontrar soluções que visam lidar com os cerca
de 80% dos casos de doença leve, isto é, doentes pouco sintomáticos (ou
assintomáticos), que podem teoricamente ser tratados e vigiados no domicílio,
mas que constituem um elevado potencial de disseminação da doença na
comunidade. Aqui importa equacionar medidas que visam afastar o doente da sua
família e comunidade, preferencialmente de forma voluntária (ex. internamento
em unidades específicas para doentes não graves);
3 3- Investir de forma criteriosa nos escassos recursos
disponíveis para tratar os 15% dos doentes que podem ser tratados numa
enfermaria regular. É aqui que podemos salvar vidas! Mas isso implica um investimento
na formação intensiva dos técnicos de saúde relativamente a gestão de doentes
com COVID-19 e no fornecimento de materiais e equipamentos adequados para o
efeito (ex. equipamentos de proteção individual, oxigénio, alguns fármacos como
a cloroquina/hidroxicloroquina e antibióticos, e eventualmente equipamentos de
suporte ventilatório não invasivo para ventilação mecânica não invasiva e
oxigénio de alto fluxo em condições bem definidas). Tudo isto está ao nosso
alcance, se houver um grande esforço coletivo do governo, seus parceiros e os
profissionais de saúde;
4 - Não existe na Guiné-Bissau uma UCI com suporte
ventilatório invasivo, nem recursos humanos treinados para a gestão de doentes tão
complexos e graves como estes. Por mais que nos custe, temos que aceitar este facto
inegável: neste momento não dispomos de condições para oferecer um tratamento tão
diferenciado quanto necessário aos restantes 5% dos doentes. Nestes casos, deverá
ser proporcionado o melhor tratamento médico disponível localmente, que inclua
também os cuidados de conforto em fim de vida;
5 5 - Proteção dos escassos recursos humanos de
profissionais de saúde de que o país goza, por duas razões: por um lado, para
não se infetarem, e com isso perder este recurso valioso; e por outro, para não
serem eles mesmos a fonte de disseminação da doença.
O desafio é
colossal do ponto de vista de gestão estratégica. Mas seja qual for a estratégia que adotemos,
tem que ter necessariamente um forte suporte científico e ter em consideração
elementos fundamentais da nossa realidade. Devemos evitar a todo custo medidas
precipitadas e populistas, por força de pressões internas ou externas, para não
criar ainda mais feridas no frágil tecido social e
económico do nosso país.
Por fim, apesar
de ser um homem de ciência, reconheço que o momento é de incertezas, e por isso
mesmo, cada um pode e deve buscar força e ajuda na sua espiritualidade, mas sem
ignorar as evidências científicas.
Porto, 18 de
abril de 2020
Hans
Dabó
(Médico
Pneumologista)
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