Mariéme Jamme, senegalesa a viver em Londres, é uma self-made woman. Blogger, líder de vários projetos na área da tecnologia, consultora de várias organizações internacionais e governos, falou ao DN na Web Summit sobre a forma como a tecnologia pode dar uma nova oportunidade de vida a raparigas e mulheres, não só em África, mas em todo o mundo.
Mariéme Jamme teve uma infância e uma adolescência repletas de dor e sofrimento. Mas isso moldou a pessoa que é hoje. Abandonada pela mãe no seu país de origem, o Senegal, foi levada para Paris, em França, numa rede de prostituição. Passou por vários orfanatos. Nunca foi à escola. Tornou-se autodidata.
"Aprendi sete linguagens de programação sozinha em dois anos. Aprendi porque não conseguia arranjar emprego", contou em entrevista ao DN na Web Summit, em Lisboa. Hoje, aos 44 anos, chamam-lhe "a diplomata da tecnologia". Blogger, empresária, é consultora de várias organizações internacionais e governos e lidera vários projetos na área da tecnologia. I am the Code é um deles. Destina-se a formar jovens e mulheres em programação, Não só em África. Mas em todo o mundo.
Em 2017 venceu o Prémio de inovação nos Global Goals Awards, da UNICEFe da Fundação Bill e Melinda Gates. Nesse ano foi considerada, na Powerlist, como uma das cem britânicas mais influentes de origem africana e caribenha. Membro da administração da World Wide Web Foundation, já foi distinguida pelo Fórum Económico Mundial pelo seu trabalho com vista ao empoderamento de jovens e mulheres em África. É uma das criadoras da plataforma Accur8Africa e do I am the Code, para ajudar a atingir os objetivos do desenvolvimento da ONU.
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O seu sonho, bem, mais a sua convicção, é a de que, em 2030, as raparigas do campo de refugiados de Kakuma, no Quénia, que estão a receber formação na área da programação através desse projeto, vão estar na Web Summit a dar palestras e a participar em workshops. "O meu trabalho é agitar corações e mentes e transformar a forma de pensar das pessoas. Tudo o que precisam fazer é acordar e dizer: 'Eu consigo fazer isto hoje'", afirmou, sorridente, nesta entrevista.
É engraçado que a primeira coisa que fez foi ligar o seu telemóvel à ficha para carregar...
Sim [risos].
Chamam-lhe "a diplomata da tecnologia". Revê-se nesse título?
Sim. Vejo-me como uma diplomata da tecnologia. A minha organização traz uma abordagem multissetorial, juntando governos, setor privado, investidores, mas também os que fazem a tecnologia e a vendem. Vejo-me como uma intermediária que pode ajudar todas estas pessoas a tirar o melhor partido possível da tecnologia. Todos os que querem usar, produzir e vender as tecnologias. Os governos precisam sempre de ter boas tecnologias, o setor privado também, as comunidades.
Este seu projeto, I am the Code, conta com o envolvimento de muitos governos africanos?
Sim. Temos o envolvimento de 21 países de todo o mundo. A razão pela qual queremos trabalhar com os governos é que, se olharmos para as políticas de inovação tecnológica no mundo, os legisladores têm de implementar tecnologias. Se olharmos para a América Latina, para a Argentina, por exemplo, se a política do governo não favorecer as mulheres e as raparigas, não importa o que mais se faça. Haverá sempre pessoas que ficarão para trás. E é por isso que o I am the Code está a tentar trazer esta abordam multissetorial. Para termos a certeza de que o governo tem a política certa, de que o setor privado contrata as raparigas, porque mesmo que eu ajude as raparigas a aprenderem a programar, mesmo que eu as ajude a ter as competências, se o país e o sistema não lhes permitirem ter um emprego, então estaremos, também aí, a desperdiçar o nosso tempo. As raparigas compreendem as tecnologias, têm telemóveis, internet, acesso a tudo, mas não conseguem arranjar emprego porque o governo não as entende. Há sempre um certo vazio em algum momento. O que tento fazer é garantir que falamos sobre tecnologia de forma diplomática e que toda a gente tem acesso às tecnologias.
Quais são os seus principais parceiros em África?
Oh, temos o senegalês, o ruandês, o queniano, ministros da Educação. Todo o ministro da Educação em África é, na realidade, um parceiro nosso. Nós temos kits de computador em que ensinamos de uma forma muito simples a mulheres e crianças a programação. Nesses computadores a linguagem de programação já está lá. Então, é muito fácil para qualquer ministro da Educação, qualquer ministro da Inovação, Ciência e Tecnologia, em qualquer país, perceber como também é fácil usar estes computadores. É tudo muito simples de usar. Dar acesso às pessoas é crucial.
Há países africanos de língua portuguesa envolvidos?
Sim. Eu vou para Moçambique dentro de duas semanas. Já viram o I am the Code. Adoraram. E espero que possamos implementar o projeto lá. Tudo é feito com base na procura, mas nós também encorajamos os governos a compreender a importância disto. O Brasil é o nosso maior mercado de língua portuguesa. Vou lá também para ensinar as mulheres e as raparigas falantes de português a aprenderem a programar. O nosso programa já existe em espanhol, como disse na Argentina, temos a estratégia de chegar ao mercado português em 2019. E também aos mercados francês e árabe. Queremos expandir o programa.
Bill Gates apresentou na quarta-feira, na China, não na Web Summit em Lisboa, a sanita do futuro: que não precisa de água nem de saneamento. Um anúncio de extrema importância, que prova que ele compreende muito bem a realidade dos países em desenvolvimento. E a forma como a tecnologia pode ser usada para melhorar a vida das pessoas. Este é um exemplo de que uma evolução tecnológica só por si, que não tenha por base a resposta a necessidades das pessoas, é inútil?
Sim. É inútil. É por isso que I am the Code é o que é. E é por isso que eu falo sempre em questões sociais. Se temos uma tecnologia, por exemplo para a área da agricultura, mas ela não vai ajudar em nada os agricultores em África, então estamos só a desperdiçar o nosso tempo. Mais uma vez. Temos de ter tecnologias que melhorem a vida das pessoas. A tecnologia tem de falar com as pessoas. Mas as pessoas também têm de criar as soluções. Não podem simplesmente esperar que elas sejam impostas de cima para baixo. Na década de 1990, quando apareceu a Microsoft, toda a gente ficou entusiasmada, limitou-se a usar a tecnologia. Agora já não é assim. Agora temos uma escolha. As pessoas dizem: não, eu quero chegar mais depressa, então apanho um Uber. Ou: não, quero comer melhor, vou criar uma app de comida. O que a procura mostra é que as pessoas querem criar uma solução que fale com elas. E por isso vemos organizações a pensar: como é que eu faço que a vida de uma mulher em África seja simples? Como é que posso ver se há uma aplicação para ela controlar o seu ciclo menstrual? Controlar o seu estado de saúde?
Acho que o Bill Gates tem toda a razão. Devemos guiar-nos pelos Objetivos de Desenvolvimento da ONU como linha orientadora. Essa é a nossa missão para os próximos dez anos. Olhar para cada um dos objetivos e perceber: como é que os atingimos com a ajuda da tecnologia? As pessoas, as mulheres, e as raparigas e os rapazes mais novos, têm de estar à mesa de reuniões quando certas decisões são tomadas. O que fazemos é pô-los a falar, em eventos, em workshops, é trazer as comunidades marginalizadas, que de outra forma nunca teriam oportunidade de se sentar à mesa das reuniões. É preciso juntá-las com os responsáveis pelos negócios. Ver o que acontece. Ficariam de boca aberta. É realmente espantoso.
Acha que a ONU, com António Guterres como secretário-geral, tem agora uma maior preocupação de sentar essas pessoas mais jovens à mesa das reuniões e dar-lhes voz?
Sim, é importante. Como vimos nestas eleições nos EUA, não é possível fazer nada sem as pessoas. I am the Code é baseada nas pessoas, produtos e procedimentos. Queremos simplificar os procedimentos. Permitir aos jovens partilhar ideias. Vir dizer: esta app não funciona. Hoje é possível fechar restaurantes só com reviews no Instagram. Nos próximos cinco ou dez anos, vamos ver muita gente orientada para os dados. Todas essas pessoas vão decidir como funcionará o I am the Code, a Web Summit, etc. A Web Summit é uma plataforma sustentada pela comunidade, pelas pessoas. I am the Code é sustentado nas mulheres, nas raparigas, pois os jovens precisam de ter uma voz em tudo isto.
Vemos que em África e na América Latina, por exemplo, ao contrário da Europa, o WhatsApp tem enorme importância. Mas também temos visto que pode ser usado para manipular as pessoas e disseminar as chamadas fake news...
Sim. É absolutamente verdade. Não queremos impor regulamentação, mas é verdade que é preciso educar as pessoas. O meu trabalho é criar uma mudança de sistema e educar as pessoas através e para a tecnologia. Porque a usam? A internet, por exemplo, em muitas partes do mundo, está a ser usada para cometer abusos. Mas isto somos nós como seres humanos. Tim-Berners Lee lançou na segunda-feira o Contract for the Web. Quando ele inventou a web era suposto ela ser para toda da gente. Mas agora, 30 anos depois, há um uso abusivo da web: pessoas usam a web para fazer dinheiro fácil, para mostrar o seu poder, para se exibir ou expressar simplesmente, no Facebook, no Twitter... E é por isso que temos de voltar ao zero, começar de novo, no que toca à web. Tenho muito orgulho de me sentar na administração da World Wide Web Foundation e de poder expressar tudo isto. As pessoas têm de perceber porque a internet é importante. Como sabe, nunca fui à escola. Mas a internet ajudou-me realmente, enquanto jovem, quando estava a crescer. Aprendi. E ainda continuo a aprender. Não tinha Facebook,Twitter ou Wikipedia. Tudo estava na minha cabeça. Hoje os jovens têm tudo à sua disposição. Então, nós, que criamos soluções, temos de fazer um reset e criar limites e princípios. Isto ao mesmo tempo em que se mantém o acesso aberto à internet em todo o mundo. Ainda há 50% de cidadãos no mundo sem acesso à internet. E nós não conseguimos viver dois dias sem internet. Temos de começar a pensar como é que toda a gente, toda a gente mesmo, tem acesso à informação neste mundo.
Como é que a sua história pessoal a influenciou nesta luta por uma vida melhor para as mulheres e as jovens do continente africano?
Toda a minha carreira, o I am the Code, tudo é baseado na minha infância. Como sabe, tive uma infância e uma adolescência difíceis. Cresci fora dos sistema, em orfanatos. Fui traficada aos 13 anos [como prostituta] do meu país [Senegal] para França. Tudo isso tornou-me uma pessoa muito determinada em fazer algo pelas comunidades marginalizadas, mas também pelas pessoas que são privadas de informação, de internet, de educação, de tecnologia, de inovação. Isto acontece muito com mulheres e raparigas, mas também há jovens rapazes a serem cada vez mais privados de acesso à informação. A minha paixão é que as pessoas compreendam que eu tenho um passado muito difícil como mulher, que ainda me magoa muito, que ainda me afeta as minhas decisões quotidianas. Quando vens de uma origem como a minha, passando por uma dor e um sofrimento imensos, aprendes a usar essa experiência para mudar a vida de outras pessoas. Porque, sim, é possível fazer isso. Não consigo sentar-me e ficar a ver o mundo a ser desconstruído, porque nós somos seres humanos juntos. A humanidade é a chave do desenvolvimento. A empatia, a compaixão, o facto de podermos dar espaço para outras pessoas... Acabei de voltar de um campo de refugiados no Quénia, em que há jovens muito talentosas, mas o mundo não as conhece. Têm entre 11 e 18 anos. São muito inteligentes. Mas ninguém sabe que elas existem. Por isso eu estou a usar a minha voz para dizer ao mundo: apanhem um avião, vão ao Quénia, ao campo de refugiados de Kakuma, conheçam estas jovens magníficas. Vejam o lado o humano. Vejam que podem fazer a diferença.
África será o continente mais jovem do mundo. O facto de as tecnologias estarem a empoderar os jovens africanos faz que eles já encarem as realidades dos seus países de forma diferente? Antes todos olhavam para África, à espera do próximo golpe militar. Isso parece agora estar a mudar. Vemos algumas transições não violentas em países como Zimbabwe, Angola, Etiópia...
Essa é uma boa questão. Claro que permanecem problemas em África. Tal como na Europa. Se olharmos para a África de há dez anos e para a de agora percebemos que os jovens de África estão a despertar. Já não querem guerra. Mas sim a paz. E eu penso que a internet e as redes sociais tiveram um grande papel na mudança das narrativas africanas. Em 2050, 34% dos jovens africanos serão consumidores. Africanos de classe média. O dinheiro está a entrar no continente. O investimento também. A educação está a melhorar. O Ruanda, por exemplo, é um exemplo de sucesso no que toca a trazer investidores privados para o país. A Etiópia, que agora decidiu que 50% do seu governo são mulheres. Em 1994, morria-se de fome na Etiópia. Todos se lembram disso, do apelo de Bob Geldof para o mundo ajudar a Etiópia. Em 2018, metade do governo são mulheres, a presidente do Supremo Tribunal é uma mulher...
E a presidente [Sahle-Work Zewde] é uma mulher...
Sim. É algo quase inacreditável. Por isso eu tenho uma missão. Quando acabar de ensinar estas jovens do campo de refugiados de Kakuma, no Quénia, a programar, em 2030, elas vão estar aqui na Web Summit. É tão real que consigo visualizar. E você vai estar a entrevistá-las [risos]. Eu garanto-lhe que elas estarão aqui a falar num painel. Mas para isso era preciso que alguém criasse a oportunidade. Nós temos de fazer o que prometemos. Quando prometemos algo temos de fazer. Há dez anos prometemos mudar a narrativa sobre África, mudar o marketing. Lembro-me de me dizerem em reuniões: "Oh, Mariéme, África é tão pobre, porque te preocupas com tecnologia em África?". Eu argumentava. Hoje há inventores. Programadores. Há 442 hubs tecnológicos em África. Em 46 países. 93 cidades. Isso foi construído nos últimos 10 a 20 anos. Na próxima década, recomendo que vão a África. Ainda agora estamos a ter um fórum económico sobre investimento em Adis Abeba. É preciso abrir a mente, apanhar um avião e ir conhecer estas pessoas. Elas são fantásticas.
Considera que a União Europeia também poderia aproveitar a oportunidade para mudar a sua narrativa sobre África?
Sim.
Ultimamente voltou a falar-se muito na urgência de uma nova estratégia europeia para África como forma de travar o fluxo de migrantes rumo à Europa. Acha que a UE devia pegar em projetos como o seu e transformá-los na sua estratégia para África?
Eu acho que sim. Há tantas iniciativas em África. Se decidirem, por exemplo, apoiar o I am the Code e assumir o objetivo de ter, em 2030, um milhão de mulheres e jovens programadoras, literadas do ponto de vista digital, isso é ajudar essas mulheres a serem digitalmente inteligentes. Eu aprendi sozinha sete linguagens de programação em dois anos. Sou autodidata. Nunca andei na escola. Aprendi sete linguagens de programação porque não conseguia arranjar emprego. A tecnologia vai criar violência económica. Eu vivo no Reino Unido e tenho acesso a mais informação do que muitas mulheres britânicas de classe média da minha área de residência. Só têm Facebook, Instagram. Se têm problemas psicológicos, por exemplo, não têm acesso a vídeos de inspiração e motivação. É um exemplo. As mulheres também estão a ser esquecidas na Europa. Não dividamos as coisas por continentes. Vamos criar uma sociedade em que as pessoas pensem: o que está a acontecer em África também pode beneficiar-me. É preciso ser humilde e dizer: vamos começar de novo. Uma nova estratégia. Não são tudo rosas. Claro que ainda é muito difícil trabalhar nalguns países africanos. Mas há uma nova consciência.
A Europa passou anos a dar dinheiro, muitas vezes desviado por governos africanos corruptos, sem chegar aos cidadãos...
A indústria da ajuda humanitária não resultou. De várias formas. Claro que ainda precisamos de ajuda, mas precisamos de mudar o sistema. Mudanças nas políticas dos governos. Investimento nos programas certos. É possível ver o que projetos como I am the Code estão a fazer. Não é muito difícil. Quanto tempo levou uma mulher senegalesa a fazer isto? Não muito.
Precisou da vontade...
E de paixão para dizer: toda a gente sabe que estas raparigas do campo de refugiados de Kakuma vão sair de lá. Elas não saem de lá. Então como as dotamos de competências? Há muitos campos de refugiados pelo mundo fora. E há este em África que tem raparigas a aprender programação. O que foi preciso? Que eu apanhasse um avião para o Quénia, batesse à porta do Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados e dissesse: "Ok, vamos fazer isto!" E agora temos 170 raparigas a aprender programação no Quénia. E elas chegarão muito longe. Conseguirão bolsas de estudo. Viver num campo de refugiados não é vida para ninguém. E por isso é preciso agitar. O meu trabalho é agitar corações e mentes e transformar a forma de pensar das pessoas. Tudo o que precisam fazer é acordar e dizer: "Eu consigo fazer isto hoje."
Conosaba/DN
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