Fernando Cá mostra uma foto para a qual é difícil olhar: de todos os casos de agressão a crianças com que já lidou, este é um dos mais graves e foi o primeiro que teve de enfrentar no novo ano.
"É um bebé de duas semanas. Ficou sem olhos", descreve o administrador da Associação dos Amigos da Criança (AMIC), em Bissau, quando é interrompido pelo telemóvel a tocar.
Na mão esquerda tem a foto daquele recém-nascido, que alguém atacou com uma substância, derramada na cara e que o deixou cego e desfigurado - um caso sob investigação policial.
Na mão direita, ao telefone, alguém sob anonimato faz a denúncia de um caso de violência doméstica num bairro de Bissau - Fernando faz perguntas e toma nota dos detalhes que vai ouvindo.
Na sede da associação há dias que mais parecem filmes, nem sempre fáceis de digerir, por vezes sem final feliz, e que são só uma pequena amostra da realidade.
A falta de denúncias ainda é "um grande problema" na Guiné-Bissau, alerta Laudolino Medina, secretário-executivo da AMIC, associação fundada em 1984 e que se apresenta como a mais interveniente na luta contra violações dos direitos da criança.
No último ano, a instituição acompanhou 18 casos de maus-tratos, 108 de crianças traficadas e 27 casamentos precoces ou forçados, mas Laudolino acredita que muitas outras situações ficam por denunciar.
Há várias razões para que assim seja.
A maioria da população da Guiné-Bissau (1,5 milhões) é analfabeta, o que faz com que "muitas pessoas, mesmo sendo vítimas, não conheçam os seus direitos", nem os das crianças e assim convivam com crenças e práticas violentas e abusivas.
O medo de represálias "quando o agressor é uma pessoa influente", como por exemplo "um militar", e a morosidade do sistema judicial para tratar das queixas são outros fatores que inibem a população de fazer denúncias, acrescenta.
Há ainda quem leve os casos junto da chamada justiça tradicional, baseada em anciãos das aldeias e outras figuras das comunidades, e esqueça as entidades oficiais.
"Mas será que tomam decisões que tenham em consideração o interesse superior da criança? Muitas vezes não", conclui Laudolino.
A AMIC já teve um programa de rádio contra a violação dos direitos da criança que fez aumentar o número de denúncias.
"Algumas até eram feitas em direto", num espaço aberto à participação dos ouvintes, recorda.
Reativar o programa é um dos objetivos de Laudolino e Fernando Cá, que estão nesta altura a procurar apoios financeiros para pagar as despesas da AMIC.
A associação "é das raras instituições que beneficia de um pequeno apoio do Estado", no valor de 400 mil francos CFA (cerca de 600 euros) mensais.
O resto é obtido com candidaturas a projetos pontuais de diferentes parceiros.
"Trabalhamos caso a caso. Por exemplo, a reinserção de uma criança vítima de tráfico pode custar 100 mil francos CFA (cerca de 150 euros)", refere Laudolino.
A AMIC suporta ainda "em exclusivo" os custos de um centro de acolhimento, em Bissau, que atualmente se encontra lotado com 33 crianças em situação de vulnerabilidade.
"Fomos em várias ocasiões solicitados não só por privados, mas também por instituições das Nações Unidas e do Estado que nos pedem para acolher crianças", descreve.
Mas o centro revela-se "muito pesado para uma pequena estrutura como a AMIC ter que se responsabilizar por todos os aspetos logísticos e de funcionamento" e ainda com a assistência psicológica às crianças vítimas, "que não é nada fácil".
Laudolino Medina defende outra fórmula, em que "cada ator chave no domínio da infância pode contribuir para o seu funcionamento".
O secretariado executivo da AMIC conta com cinco pessoas, mas o principal segredo da sua capacidade de intervenção são os 3.000 associados a nível nacional: "um recurso muito importante" na luta contra as violações dos direitos da criança.
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