Ruth Monteiro: “Quando cheguei a Portugal soube o quão difícil foi tirar-me de Bissau”
Ruth Monteiro, ex-ministra da Justiça da Guiné-Bissau, conta como o que aconteceu em fevereiro na antiga colónia portuguesa foi um golpe de estado. E o que isso significa: “Umaro Sissoco Embaló assumiu o poder e logo o tráfico de droga foi intensificado”
Esteve para ser detida até ao último momento, quando finalmente entrou, a 28 de abril, num voo de repatriamento da TAP, ao fim de quase dois meses escondida em Bissau. Já em Lisboa, onde se formou em direito na década de 1980 e onde se tornou cidadã portuguesa, passando a ter dupla nacionalidade, Ruth Monteiro aceitou dar uma entrevista ao Expresso em que fala abertamente sobre o que se está a passar na Guiné-Bissau. “As pessoas pensam que o facto de eu falar significa coragem. Não acho que seja coragem. Eu não quero condicionar os meus actos ao medo. É diferente.” A ex-ministra da Justiça admite que essa recusa de ficar em silêncio faz com que seja muito difícil regressar, tão depressa, a Bissau.
Na semana passada conseguiu voar para Portugal, depois de duas tentativas falhadas. Sente que fugiu da Guiné-Bissau?
Para mim foi uma fuga, claramente, porque saí contra a vontade das autoridades. E o meu regresso estará dificultado.
Numa entrevista à Deutsche Welle no início de abril falou de uma lista de pessoas que estão impedidas de sair do país. Que nomes constam dessa lista?
Sei que dessa lista constam cinco pessoas do governo de Aristides Gomes. O primeiro-ministro logo à cabeça, o ministro das Finanças, eu e os secretários de Estado do Tesouro e do Orçamento.
Quem fez essa lista e por que é que ela foi feita?
Foi o Ministério do Interior que enviou essa lista para o aeroporto. São eles que controlam as saídas dos cidadãos. Agora, quando consegui sair, o meu nome continuava a constar da lista. É uma perseguição. Querem calar, amedrontar. Há uma fragilidade que sentimos perante um governo que persegue os cidadãos em vez de os proteger. E que usa o poder público para intimidar as pessoas. Não é a primeira vez que há um golpe de estado na Guiné-Bissau e que há pessoas que são perseguidas. Temos pessoas que já foram perseguidas e que hoje são os perseguidores. O atual ministro do Interior foi meu cliente na altura em que foi perseguido — ele pertencia ao governo de Domingos Simões Pereira. Agora, ele é o perseguidor.
Por que é que está a ser perseguida?
Ouvi duas versões. Provavelmente são ambas correctas. Há a versão sobre o facto de eu enquanto ministra dos Negócios Estrangeiros — que era um cargo que estava a acumular com a pasta da Justiça — poder ter acesso à comunidade internacional e poder explicar a situação real do país, na qualidade de membro de um governo que saiu de eleições e que só foi afastado porque houve recurso à força das armas, para as pessoas não terem apenas a versão de quem deu o golpe de estado e de quem tinha interesse na subversão da ordem constitucional. Sendo eu jurista por formação, melhor ainda poderia explicar qual é o contexto da violação da constituição e das leis na Guiné-Bissau. Cá fora, eu poderia destruir a imagem que foi dada do atual governo e daquilo que aconteceu durante as eleições presidenciais. A outra versão que ouvi tinha a ver com dossiês — porque no âmbito do exercício da minha tutela, no trabalho com a Interpol e com a Polícia Judiciária, tive acesso a informações que não convinha que viessem a público.
Foi visada pelo Ministério Público num processo-crime por ter alegadamente ficado com um carro que lhe tinha sido atribuído enquanto ministra da Justiça, e de ter aprovado passaportes quando ainda não teria oficialmente assumido a pasta dos Negócios Estrangeiros. No seu entendimento, o Ministério Público só fez isso para haver razões formais que a impedissem de sair do país?
Claramente. Da primeira vez que me impediram de viajar, foi o próprio representante do PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], a entidade proprietária do carro, que comunicou ao Ministério do Interior que esse carro tinha sido devolvido. Essa informação, conjuntamente com uma cópia do termo de entrega assinada e carimbada pelo PNUD, mesmo assim não serviu para cancelar o processo contra mim. As acusações foram sendo desmanteladas no próprio aeroporto... Quanto à denúncia de eu ter assinado passaportes sem ter poderes para tal, entreguei uma cópia que comprovava que todos os passaportes foram assinados com poderes para tal, por um despacho do primeiro-ministro, indigitando-me como substituta da ministra dos Negócios Estrangeiros. O Ministério Público não fez nenhuma prova dos factos. Até que no 8 de abril há um despacho do Ministério Público onde não me é atribuído nenhum facto susceptível de indiciar a prática de um crime. Mas devo dizer que, independentemente disso, o Ministério Público na Guiné-Bissau nunca poderia impedir ninguém de viajar. Nem o Ministério do Interior. Só me poderia aplicar uma medida de coação residual, que é um Termo de Identidade e Residência.
Essa decisão caberia a um juiz, é isso?
Exatamente. Com a gravidade de que quem dirigia o Ministério Público na altura ser um juiz conselheiro que tinha sido um dos subscritores do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que diz precisamente que o Ministério Público só pode aplicar um Termo de Identidade e Residência.
Sem comentários:
Enviar um comentário