Os juízes não são empregados do Estado. Eles são — como o Presidente da República, os deputados e os ministros — o Estado a agir.
1. Os tribunais são órgãos de soberania, a par do Presidente da República, da Assembleia da República e do Governo (art. 110.º da Constituição); compete-lhes administrar a justiça em nome do povo (art. 202.º); são independentes e apenas sujeitos à lei (art. 203.º).
Por isso, os juízes são inamovíveis (art. 216.º, n.º 1), cabendo a sua nomeação, a sua colocação, a sua transferência e a sua promoção ao Conselho Superior da Magistratura e, quanto aos juízes dos tribunais administrativos e fiscais, a órgão análogo (art. 217.º, n.ºs 1 e 2) — um e outro órgão integrando juízes, em composição quase paritária (art. 218.º). Nem os juízes podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as exceções consignadas na lei (art. 216.º, n.º 2).
2. Um estatuto como este implica, em contrapartida, quer deveres quer restrições de alguns direitos. É certo que o art. 18.º, n.º 2 parece consentir apenas as restrições a direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição e o art. 270.º apenas se refere aos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efetivo e aos agentes dos serviços e das forças de segurança. Todavia, ao lado destas restrições, explícitas, existem restrições implícitas, fundadas em princípios (e não já em regras) constitucionais e derivadas da necessidade de preservar “outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos”, conforme acrescenta o mesmo art. 18.º, n.º 2. Para lá da hipótese de colisão de direitos — liberdade de expressão e direito ao bom nome e reputação, iniciativa económica e direito ao ambiente, etc. —, deparam-se situações em que são imperativos institucionais que reclamam restrições — como sucede, precisamente, com as dos juízes, dos magistrados do Ministério Público, dos diplomatas ou dos dirigentes superiores da Administração.
Ninguém contesta que um juiz, tal como um militar, não possa estar inscrito num partido político ou, pelo menos, desenvolver uma atividade política pública; ou que esteja limitado nos seus direitos de expressão e de manifestação tanto no plano político como no plano da sua atividade jurisdicional. E as leis ordinárias vão, como não podia deixar de ser, neste sentido.
3. Escusado deveria ser lembrar que os juízes não são trabalhadores subordinados. Não se acham em qualquer situação aproximável da dos trabalhadores das empresas privadas ou da Administração Pública. Investidos na titularidade de órgãos de soberania, encontram-se perante o Estado numa relação de identificação. Não são empregados do Estado. Eles são — como o Presidente da República, os deputados e os ministros — o Estado a agir.
Nem a sua independência se confunde com a inerente às profissões livres ou profissões cujo exercício implica a autonomia individual e coletiva derivada do domínio de uma ciência ou técnica especialmente elevada. Aqui, a liberdade para determinar o modo e o conteúdo do ato profissional tanto pode caber no âmbito de profissões liberais ou de trabalho independente como desenvolver-se em regime de trabalho subordinado; há sempre liberdade de escolha de meios, nem sempre liberdade de escolha de resultados.
A magistratura judicial implica também o domínio muito qualificado de uma ciência, a ciência jurídica. Mas nela, a par da liberdade de escolha de meios, há liberdade de escolha de resultados. Porque se trata de dizer o Direito (ou porque a causa da atividade dos tribunais é a realização do Direito), nenhuma injunção concreta pode recair sobre os juízes e a própria obrigação de acatamento das decisões dos tribunais superiores decorre do sentido da função e no interior do sistema judiciário.
A independência dos profissionais liberais é meramente técnica. A dos juízes assume um alcance político (na aceção lata do termo), é uma independência de poder.
4. Muito em especial, um direito à greve dos juízes, fosse qual fosse o motivo invocado para o exercer, contenderia com a ligação estrutural incindível dos magistrados aos tribunais e ao Estado. Ainda que fossem alegadas questões de cunho remuneratório, não seria um conflito jurídico laboral; seria um conflito atinente ao exercício da função legislativa ou da função administrativa nos seus reflexos sobre a situação dos juízes. Não seria um conflito entre trabalhadores e empregadores (que não são nem o Parlamento nem o Governo); seria um conflito entre poderes do Estado.
5. Objetar-se-á que os juízes, ao invés do Presidente da República, dos deputados e dos ministros, seguem uma carreira com progressão ao longo da vida e constituem um corpo profissional permanente. E há autores que, de certo modo, até desdobram o seu estatuto em duas faces: a de titulares de cargos públicos e a de trabalhadores. Este dualismo não assenta, no entanto, em suficiente base de sustentação.
Que haja uma carreira profissional, sem dúvida (nem se vê como pudesse ser doutra sorte em país de sistema romano-germânico); só que carreira singular e irredutível a qualquer outra. Que se esteja diante de uma carreira profissional, sem dúvida; só que carreira na qual o poder disciplinar é um poder de exercício participado pelos próprios e em que as classificações atendem a rigorosos critérios intelectuais, sem tocarem, minimamente, no conteúdo decisório dos arestos emitidos (cfr. art. 34.º do estatuto dos magistrados judiciais).
E, que não sejam os juízes a determinar as condições materiais do exercício da sua atividade, isso tão pouco os menoriza em confronto com o Presidente da República, os deputados e os ministros. Em qualquer caso, é a lei dimanada do Parlamento, assembleia representativa de todos os portugueses (art. 147.º da Constituição) e baseada no sufrágio universal (arts. 10.º, n.º 1 e 113.º, n.º 1), que prescreve as regras remuneratórias relativas a uns e outros.
6. Como quer que seja, admitindo mesmo sem conceder que os juízes tivessem um duplo enquadramento estatutário, tão pouco tal implicaria a necessidade de se lhes reconhecer um direito à greve.
Basta pensar em categorias profissionais em que esse direito é, pura e simplesmente, inconcebível: os militares e agentes militarizados em serviço efetivo, tão inconcebível que o legislador constitucional não sentiu necessidade de o explicitar no art. 270.º. E basta pensar nos agentes das forças de segurança, que, desde 2001, alcançaram o direito de associação sindical e a quem foi recusado, de forma terminante, o direito à greve (art. 270.º, in fine).
Quer dizer: ainda que os juízes pudessem ser configurados também como trabalhadores do Estado, nem daí fluiria, como corolário forçoso, que pudessem pretender ter o direito à greve; nem se compreenderia que os agentes das forças de segurança, que executam as decisões dos juízes, não gozassem de direito à greve e dele gozassem os juízes.
Mas, porque nenhum preceito constitucional exclui a greve por parte dos juízes, não poderiam eles invocar esse direito em nome do princípio de liberdade? Ou, doutra ótica, não poderia a lei ordinária consigná-lo e consigná-lo como verdadeiro direito fundamental ao abrigo de cláusula aberta do art. 16.º, n.º 1? Não, o princípio de liberdade vale para as pessoas enquanto particulares ou enquanto membros da comunidade; não para os titulares de órgãos do poder. E uma lei que concedesse aos juízes o direito à greve seria — justamente por causa disso — inconstitucional.
7. Não está tanto em causa saber se os juízes preferem revestir-se da qualidade de funcionários (como aconteceu, na prática, frente à Constituição de 1933), ou da qualidade de titulares de órgãos de soberania (como resulta da atual Constituição democrática), ou se almejam por acumular as duas qualidades e os respetivos benefícios quanto saber se o Estado vai subsistir como unidade de poder e de serviço ou se vai fragmentar-se em estratos corporativos.
Conosaba/publico.pt
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