A pedido de várias famílias e em jeito de exercício de cidadania, resolvi igualmente debruçar-me, em artigo de opinião, sobre a situação política resultante do fim do mandato do Presidente da República e a Resolução N.º 04/ANP/X/2019.
QUEM JULGARÁ OS NOSSOS POLÍTICOS?
Num país como este, onde se vive abaixo do limiar da pobreza, depois de uma crise politica prolongada de tantos anos, que resultou da exoneração do governo da IX legislatura pelo Presidente da República (PR), fecho da Assembleia Nacional Popular (ANP), mediação estrangeira, atentados à soberania, a prorrogação inconstitucional do mandato dos deputados; finalmente os partidos acabam por assinar um Pacto de Estabilidade, os parceiros internacionais apoiar para que fossem realizadas eleições legislativas, consideradas livres e transparentes.
Proclamados os resultados, nesta Guiné-Bissau corroída até às suas entranhas por vícios constitucionais na gestão do Estado, regressava a esperança da paz, da estabilidade política-constitucional, voltava a fé no desenvolvimento sempre prometido desde a proclamação do Estado em 1973, mas sempre traído e adiado.
Porém, bastou que se reabrissem as portas da ANP para que todos os ódios, traições, cumplicidades e interesses dos recém-eleitos viessem ao rubro. Sem qualquer pudor, aos nossos olhos e ouvidos, atacaram a mesa da ANP, a casa do Povo, desprestigiando-a e, de novo, bloqueando o seu funcionamento que não em prol do desenvolvimento.
Neste contexto, conforme reza a Constituição da República (CRGB), in extremis, fazendo uso das suas atribuições, o Presidente da República (PR), fixou a data das eleições presidenciais, em conformidade com o art.º 68.º al. f, conjugado com o número 2 do art.º 3º da Lei Eleitoral (entre os dias 23 de Outubro e 25 de Novembro do ano correspondente ao termo do mandato presidencial), para terem lugar a 24 de Novembro; para o efeito, de acordo com este último, foram ouvidos os Partidos Políticos (nenhum dos auscultados colocou na altura qualquer entrave, nem o partido vencedor das eleições exprimiu qualquer objeção ou preocupação); foi observada a antecedência de 90 dias prescrita no número 1 do art.º 3º da mesma Lei Eleitoral. O mandato do PR é de 5 anos (art.º 66.º/1 da CRGB) e terminava a 23 de Junho.
Naturalmente que o parto desejado de um PM e um Governo legítimo, sustentado por uma nova legislatura, a X, tornou-se doloroso perante as habilidades, as espertezas e as habituais tramóias políticas. Depois de o nome do presidente do partido vencedor das eleições se ver por duas vezes recusado pelo PR (sem grande surpresa pois havia acontecido o mesmo em 2015), nos sair um PM reconduzido, após um ano letivo perdido, um recenseamento atabalhoado, vimos a saber que, imagine-se, o nome foi sugerido pelo exterior. Informa-se: “Já aceitou uma vez. Não o irá recusar”. Mas, o governo, entre as apetências e prepotências, não nos sai.
Daí a surgirem as triviais intentonas e “inventonas” de golpe de Estado, foi um passo: no passado dia 26, ouviu-se de viva voz nas rádios nacionais, o presidente do partido vencedor das eleições, acusando o PR de tentativa de golpe de Estado institucional, com o apoio do Senegal, para nomear um Governo de iniciativa presidencial, com ocupação dos Ministérios. De novo o recurso aos velhos e arcaicos métodos, com toda a cartilha de desinformação, e em desprimor a tudo quanto se prende com a dignificação da investidura num alto cargo da Nação, do Estado, de um partido político.
A guerrilha política retoma-se no cenário pós-eleitoral com maior acutilância, vestida em marchas e vigílias, enquanto o Estado se mantém parado por greves sistemáticas. Em parceria e comunicação intensiva apregoa-se interna e externamente o fim do mandato do PR e a sua substituição em interinidade pelo presidente da Assembleia Nacional Popular (ANP). Enredo que se tenta concretizar através da Resolução N.º 04/ANP/X/2019.
A maioria parlamentar, formada por coligação pós-eleitoral, com 54 dos 102 deputados, foi convocada, em sessão extraordinária, como debate de urgência para uma espécie de “impeachment” do PR. Todavia, estiveram ausentes os restantes 48 deputados, que integram a 2.ª e 3.ª força política na composição atual do parlamento e a mesa não se encontrava regularmente constituída. Tal desígnio tomou a forma de resolução, apontando-se que o PR, intencionalmente, não concluíra o processo de legitimação do Governo sufragado nas urnas (sufragam-se Partidos e não Governos), até ao termo do seu mandato; que omitira o seu dever constitucional, sendo passível de censura política, através de um processo político de destituição, com crivo jurisdicional; o que implica o término do mandato presidencial, a vacatura do cargo e a urgência de soluções constitucionais e legais. Considerando ser a ANP a única instituição legítima na atual fase da política do Estado; e a “ininterruptividade” do normal funcionamento das instituições da República. Anunciando como decisão a cessação imediata das funções do PR desde 23 de Junho; a sua substituição interina, por termo de mandato, pelo presidente da ANP; este último, mandatado em duas qualidades (PR e presidente da ANP) a tomar disposições necessárias ao efetivo exercício das suas funções constitucionais.
A CRGB não possui mecanismos de “impeachment” do PR. Na Guiné-Bissau, um PR só pode ser destituído se condenado pelo Supremo Tribunal da Justiça (STJ) por crimes cometidos no exercício das suas funções (art.º 72.º). Não pode a ANP determinar a cessação imediata das funções do PR de fora desse quadro constitucional. É preciso levar a sério o facto de que uma revisão da Constituição (de 1984) é imperiosa, e relembrada em todos os acordos de mediação que se fez vir do exterior do país na tentativa de por cobro à crise político-institucional.
Cingidos à Constituição e ao pensamento do legislador constitucional, nada indica que o fim do mandato coincide com a cessação de funções do PR. Ademais, da história das anormalidades e das praxes constitucionais, os deputados e os governos têm-se mantido em funções até à “passação” aos seus sucessores. Exemplo próximo e analógico, ocorreu recentemente, depois do Acordo de Lomé, quando os deputados, já fora de prazo, em autocriação e imposição exterior, prorrogaram os seus mandatos vários meses após o seu término.
Resolvendo-se pela cessação imediata de funções presidenciais, a resolução refere-se ao art.º 66.º/1 da CRGB que regula a duração do mandato do Presidente da República em cinco anos, conjugado com o art.º 182.º da LE, que dispõe que “O Presidente da República toma posse no último dia do mandato do seu antecessor ou, em caso de eleição por vacatura do cargo, nos termos da Constituição”; leva a trazer à colação o art.º 3.º/2, da mesma lei, que estabelece que “No caso das eleições presidenciais não decorrem da vacatura do cargo do Presidente da República, a eleições realizam-se entre os dias 23 de Outubro e 25 de Novembro do ano correspondente ao termo do mandato presidencial”. Bom, quando se fala de incompatibilidades entre leis é uma coisa, mas dentro da mesma lei é outra coisa. O art.º 3.º/2 entra nessa incoerência. Qual o espírito do legislador? Como se analisa uma lei? Do início para o fim e saber qual a preferência que se deve dar. O que o legislador pretendia com o 182.º? Precisamente significar que não pode haver vazio de poder de PR, não pode haver «vacatura». A redação mais adequada seria: «o mandato do PR termina com a tomada de posse do seu sucessor». Tanto mais que, no contexto atribulado de política nacional no qual nos encontramos, com indefinições ainda resultantes da própria mesa da ANP, o recurso à norma do art.º 186.º, sobre a prerrogativa da Comissão Permanente resolver as dúvidas e casos omissos desta lei, seria desastroso. Ou seja, o risco seria atacar através de lei o cargo de PR, o que constitucionalmente não é possível, atendendo ao privilégio do cargo. Em reforço desta interpretação, bastará constatar os encaixes resultantes da evolução legislativa da Lei N.º 2/98 para a atual, Lei N.º 10/2013, sobretudo ler o preâmbulo desta última e lembrar que foi feita depois de mais um golpe de Estado, e para acomodar os ajustes necessários, com muitas particularidades e exceções.
Não pode haver vazio de poder. Não se pode defender a vacatura do cargo de PR com base em fim do mandato. Se não há presidente eleito, o PR mantém-se em funções até ser substituído em conformidade com os parâmetros constitucionais.
A resolução da ANP, ainda que se referindo à substituição interina, estabelece a definitiva, imputando ao presidente o adjetivo. Ora, na nossa lei suprema, a substituição definitiva (art.º 71.º/2) só ocorre nos casos de morte ou impedimento definitivo, entre os quais se devem incluir os de destituição por condenação por crimes cometidos no exercício de funções, nos termos do art.º 72.º/3, e os de renúncia, nos termos do artigo 66.º/3; bem como, pontualmente, a substituição interina (art.º 73.º/1) que ocorre nos casos de ausência para o estrangeiro, ou outro impedimento temporário e, não perdendo nunca o substituído, neste caso, a qualidade de PR.
Acresce que o argumento principal no qual se baseava a tentativa de “impeachment” foi apregoar que o PR, considerado já sem mandato e sem funções, não podia empossar o Governo. Mas o substituto, conforme os termos do artigo 2.º da resolução, também é certo que não, segundo o art.º 68.º al. i) da CRGB.
O mais caricato da resolução consiste em mandatar o presidente da ANP em duas qualidades, a de PR e a que detém, “para tomar disposições necessárias ao efetivo exercício das suas funções constitucionais”. Deverá entender-se entregar pessoalmente no Palácio o mandato de despejo?
Não só não ficamos sem PR, como o mesmo se mantém em funções e com todos os poderes. Porquanto não existe qualquer disposição constitucional que nos leve a fazer outra leitura, como seja, por fim de mandato: acionar a interinidade do cargo. Trata-se de Presidente da República, e não de um governante em mera gestão. Senão, no cúmulo, estaremos perante o seguinte: um Presidente da República sem mandato, uma Mesa da ANP inconstitucionalmente constituída, um PM sem governo, uma resolução da ANP sem data; mas também perante uma corrida desenfreada para chegar lá fora primeiro e para dar a sua explicação sobre o descalabro, sem pudor, sem vergonha, para entregar mais um pouco da já tão debilitada soberania, para que os pobres fiquem cada vez mais pobres, e eles, os supostamente desavindos, entre nós e pelas nossas costas, ainda mais ricos.
É chegado o momento de se por fim às tentativas de judicialização da vida política e de politização da justiça. É imperioso colocar um travão à falta de responsabilização política e criminal no exercício de altos cargos políticos, para a qual cada vez mais se vem resvalando, num país caracterizado e crescentemente estruturado pela impunidade, conduzindo-nos a estes cúmulos do absurdo e picos potencialmente explosivos de tensão social.
De acordo com a lei penal guineense, acusar o Chefe de Estado de tentativa de Golpe de Estado, ocupação dos Ministérios é crime de difamação e injúrias agravado (art.º 126.º e 127.º), exceto se o agente provar a verdade dos factos. Ofender o prestígio das forças de defesa e segurança, pela imputação do seu envolvimento nos mesmos factos, também é crime (art.º 130º). Tentar alterar o Estado de Direito através de uma resolução, ainda que no seio parlamentar, faz incorrer a todos que a votaram em responsabilidade criminal (art.º 221º). Não pode um cidadão guineense, insinuar sequer a mobilização de qualquer força exterior (que não de manutenção de paz) para ingerência a seu favor na política interna, porque é crime (art.º 216.º); e nem, tão pouco, prejudicar o esforço pela paz (art.º 218.º). Tentar ilegalmente desapropriar o estatuto de uma pessoa, é uma violência e representa um atentado contra a sua liberdade (art.º 222.º). Ora, a moldura penal para a soma destes crimes está entre um mínimo de 18 anos e um máximo de 60 anos de prisão, antes de entrar em consideração com o cúmulo jurídico (art.º 75).
Em lei especial (Lei no 14/97, de 2 de Dezembro), os titulares de cargo político, tanto em geral como em especial, são igualmente responsabilizáveis por crimes cometidos no exercício das suas funções, punindo-se inclusive a tentativa, com especial agravamento das penas. Em caso de condenação, esta induz automaticamente a perda de mandato do Presidente da Assembleia Nacional Popular (art.º 29.º al. a), até à do Presidente do Supremo Tribunal (art.º 31.º al. a) caso, por exemplo, deste órgão de soberania emane qualquer Acórdão (mesmo que do Plenário) pretendendo confirmar ou validar esta resolução da ANP.
Ao ponto que se chegou, não se poderá suscitar a questão da imunidade, como tem sido habitual, para que prevaleça a impunidade. Pois, vários dos crimes tipificados apresentam moldura penal superior a três anos e constituem flagrante delito, uma vez que foram praticados publicamente, publicitados e assumidos politicamente (art.º 34.º/1 da CRGB). Não se tratava de uma opinião nem de um voto, pois votação é um processo de tomada de decisão. Não havia qualquer decisão para tomar, porque já estava tomada, não houve, portanto, processo (art.º 82.º/1 da CRGB).
Com todos os actos enumerados, QUALQUER CIDADÃO se pode sentir lesado, adquirindo o direito de ação e legitimidade para iniciar o processo penal dispensando a iniciativa do Ministério Público, de acordo com a Lei no 14/97 (art.º 36.ºal. b). Para que, doravante, como reza a Constituição da República da Guiné-Bissau, se comece a responsabilizar e a fazer responder os titulares de cargos políticos, política e criminalmente pelos actos e omissões que pratiquem no exercício das suas funções. Para que se saiba e se assuma a conexão entre a responsabilidade política e responsabilidade criminal, e se conheça que a responsabilidade criminal do titular de cargo político é mais elevada que a responsabilidade criminal comum, pelo facto do agente dispor de uma certa liberdade de conformação e gozar de uma relação de confiança pública: tal como se estipula no preâmbulo da lei enunciada.
Esta magistratura presidencial dos últimos cinco anos não deixará saudades. Já faltou mais! Que os seis meses sejam cumpridos por todos e para bem da Nação! Caso assim não seja, não faltarão fundamentos para que, em conformidade com a CRGB e observados os procedimentos, se requeira ao Procurador-Geral da República, qualquer que seja, a promoção da ação penal contra o Presidente da República, ainda que em inimputabilidade (art.º 13.º do Código Penal) cada vez mais evidente.
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