(*) Consta do livro «Guiné‑Bissau, das contradições politicas aos desafios do futuro» de Luís Barbosa Vicente, Editado pela Chiado Editora (2016).
Gostaria de abordar a questão da administração pública
guineense tecendo algumas considerações e testemunhos de um dos dirigentes
deste setor, que acompanhou de forma direta todo o processo da instalação do
Estado, bem como do serviço público, logo a seguir à proclamação unilateral da independência
da Guiné-Bissau em 1973.
E, de forma indireta, já no ano de 2008, última
tentativa de proceder a reforma da administração pública através do PARAP -
Programa de Apoio à Reforma da Administração pública. Recorde-se que em 2008
deu-se o primeiro passo para a capacitação institucional do país através do
programa PARAP – Programa de Apoio à Reforma da Administração Pública. O
diagnóstico da situação apresentava o cenário que transcrevo: (…) Administração
pública com cerca de 12 mil pessoas, um grande desfasamento face às receitas
previstas no orçamento de Estado; mais de 2600 funcionários eram excendentários
e 1600 analfabetos funcionais; crescimento da despesa pública a um ritmo
assustador, essencialmente devido ao peso da massa salarial (133,5%) que
ultrapassa as receitas fiscais, situação devidamente insustentável; uma
administração pública opaca, de difícil acesso, distante, centralizada,
desestruturada, não qualificável, não credível, ineficaz, não responsável e não
prestava contas. E mais, o próprio Estado também não cumpria com as suas
obrigações o que permitia aos funcionários públicos invocassem esse não
cumprimento para justificarem a sua inercia (…).
Em setembro de 2008, descrevia nas suas memórias os
três pontos que apresentarei de seguida (incluem anotações minhas):
(…) Estávamos em Outubro de 1974:
1.
Quanto
à organização do Estado, pelo menos no que se refere à “Documentação”,
verifiquei que havia muito bom ambiente, o que facilitava extraordinariamente
as relações e a troca de pontos de vista. Como já vinha tendo bastante
expediente para movimentar, pedi a colaboração de mais duas unidades, o que
sucedeu rapidamente, através do destacamento de dois funcionários do
Subcomissariado de Estado da Administração Interna, possuidores já de bastante
experiência e cuja colaboração foi muito boa.
Havia necessidade de documentar muitas decisões, pois não era
possível, sendo até muito inconveniente, manter apenas na oralidade todas as
providências que estavam a ser tomadas. Um dos exemplos dessa situação era o próprio
Governo: nada estava escrito sobre a sua estrutura e muito menos quanto aos
titulares dos seus diferentes órgãos. Sabia-se apenas quem estava em
determinado cargo, como possivelmente teria sido decidido em 24 de Setembro do
ano anterior, aquando da proclamação do Estado. Mas no funcionamento dum Estado
isso não basta, pois deve haver suporte que permita, a quem de direito, a
informação necessária. (…) Fim.
De realçar que, à data de hoje, maio de 2016, ainda mantém-se esta
situação. Existem, sem sombra de dúvida, os Órgãos de Soberania mas não estão
institucionalizados os serviços de acordo com as normas e procedimentos da
administração pública, esta é a minha constatação.
A maior parte dos serviços funcionam por autorrecriação dos seus
dirigentes, funcionários e técnicos, sem quaisquer normas de procedimentos
administrativos e de controlo previamente definidos, daí existirem falhas de
comunicação entre as administrações do mesmo serviço público e serviços
diferentes, incluindo a relação entre o cidadão, o Estado e Administração
Pública.
2.
Continua
(…) Hoje, em 2008, reconhece-se a falta que fazem relatos escritos de
importantes factos ocorridos há dezenas de anos, por falta de documentos e até
mesmo por já não estarem vivos aqueles que poderiam ser capazes de fazer um
relato fiel dos factos que testemunharam dezenas de anos atrás. Pedi a atenção
para esses factos e, por isso, começaram a ser feitas correções. Como exemplo:
o amigo que estava no aeroporto, quando cheguei, disse-me que era o Subcomissário
de Estado (Secretário de Estado) dos Correios e Telecomunicações. Mas apenas
tinha sido mandado para lá, sem mais formalidades de qualquer natureza. É
verdade que, num meio pequeno como aquele em que se estava, todos se conheciam.
Mas o Estado não podia funcionar assim. Por isso, tratei da documentação
relativa à sua posse, que foi conferida pelo Chefe do Estado e, quando a mesma
decorria, entrou um Subcomissário de Estado que, em tom de brincadeira, disse
“burocracia em marcha”. Mas a burocracia era necessária. (…) Fim.
Na verdade, um dos grandes problemas da administração pública guineense
é a informalidade e inexistência de procedimentos previamente definidos. Ora,
tal como nos ensina Weber, chamada de "Teoria de Burocracia na
Administração”, cada época social caracterizou-se por um determinado sistema
político e por uma elite dentro de determinada Cultura que, para manter essa
Cultura e consequentemente o poder dessa Cultura "Estatal", e a sua
também consequente legitimidade, desenvolveu um determinado aparelho ou
estabelecimento administrativo para servir de suporte à sua Autoridade e manter
a sociedade nessa educação, administração e cultura que é dinâmica de toda a Sociedade.
Weber foi o primeiro teórico que, numa análise voltada para a estrutura, acreditava
que a burocracia era a organização por excelência. A preocupação de Weber está
na racionalidade, entendida como a adequação dos meios aos fins, e uma
organização é racional quando é eficiente. Assim, a burocracia era a forma mais
eficiente de uma organização. Ao sistematizar o seu estudo da burocracia, Weber
começa com a análise dos processos de dominação ou Autoridade.
No caso concreto da Guiné-Bissau, a Autoridade Poder foi quem sempre
definiu a estrutura da administração pública. As decisões estratégicas partem
da componente política, mas não têm uma resposta tática nem de gestão, muito
menos operacional, uma vez que os próprios gabinetes políticos e ministeriais
têm uma estrutura centralizada que absorve todo o aparelho produtivo e sua
comunicação com o exterior. Ausência de estruturas orgânicas e modelos de
gestão definidos com rigor e coerência, dos serviços, repartições, ministérios
ou secretarias de estado, aliás, até a própria presidência da república e
assembleia nacional popular, promove iniciativas centralizadoras, de igual modo
a nomeação e criação de categorias não reguladas no quadro de competências e
organização dos serviços da administração pública central.
Exemplos flagrantes disso acontecem cada vez que há um novo governo, uma
nova presidência da república e, mais, um novo ministro ou secretário de
estado, alterando à sua maneira a estrutura que mais lhe aprouver, senão
vejamos: cargos de assessor conselheiro; ministro diretor de gabinete, etc.,
são estruturas que definem por si, as competências e funções de Assessor ou de
Conselheiro, Diretor de Gabinete e não Ministro Diretor de Gabinete, pese
embora as regalias em termos de remuneração mensal serem compatíveis.
3.
Retomando
(…). “Remuneração mensal - Tabela geral”, - Com a independência nacional vários
cargos tiveram que ser criados, já que não existiam no aparelho administrativo
da antiga colónia.
Boletim Oficial - O Comissário de
Estado Sem Pasta, entretanto, era quem mais procurava trocar impressões comigo,
acompanhando e discutindo, com grande interesse, quase todos os trabalhos que
eu fazia. Foi assim que analisamos a questão dos documentos relativos às
decisões que eram tomadas pelos Órgãos do Estado e que deviam ter um carácter
oficial e a devida publicidade. O Boletim Oficial, porém, deixara de ser
publicado desde que tinha sido feita a total transferência dos poderes para o
Partido, em Setembro último. Abordada a questão, decidiu-se retomar a publicação
do jornal oficial, com designação e periodicidade idênticas às que havia
anteriormente: um “Boletim Oficial” por semana. Mas como se estava já perto do
fim do ano, o primeiro número só deveria ser publicado em Janeiro, o que
efetivamente sucedeu.
Como é natural, no primeiro número
deviam ser publicados os documentos mais importantes para o novo Estado: a
Declaração da Independência Nacional, proclamada pelo Partido, e a Constituição
da República da Guiné-Bissau, aprovada pela Assembleia Nacional Popular. A
constituição do nosso primeiro executivo foi também publicada, bem como a
designação dos mais altos responsáveis pelos diferentes departamentos dos
órgãos governamentais. A publicação do Boletim Oficial continuou a ser feita,
como durante o período colonial, pela Imprensa Nacional. Contudo, o Comissário
de Estado Sem Pasta e o Secretário-Geral do Governo fizeram de revisores dos
primeiros números.
“Hora legal e horário de trabalho”
- A Guiné-Bissau estava atrasada uma hora em relação aos países vizinhos, o que
já tinha provocado alguns contratempos, Por essa razão, e tendo em vista uma
ainda maior sintonia com os nossos vizinhos, foi decidido corrigir essa
situação, adiantando-se uma hora os nossos relógios. Foi escolhida a noite da
passagem do ano para isso – e assim se fez. Mas também se decidiu, na mesma
altura, mudar o horário de trabalho, passando a entrada dos trabalhadores do
Estado, no primeiro período, a fazer-se meia hora mais cedo (às sete horas e
trinta minutos).
Por último, na área da Justiça,
fui-me identificando com muitos problemas, um dos quais era o atraso que se
verificava na decisão dos processos. Compreendi quanta dificuldade tinha todos
os intervenientes nos processos, desde magistrados aos mais modestos
trabalhadores da área, pela grande carência de meios com que lutavam
diariamente. As dificuldades não se punham só no funcionamento dos Tribunais,
pois eram idênticas nas outras áreas: os registos, o notariado e a
identificação civil lutavam com carências semelhantes, com todas as
consequências que daí resultavam. (…). Fim da citação.
Volvidos 42 anos a seguir à independência, a justiça continua a
funcionar mal, não garante ao cidadão o seu papel de defensor da causa pública,
tal como refere a Ex-Ministra da Justiça, Carmelita Pires, no seu Discurso do
dia da Justiça, no dia 13/10/2015, cito:
(…) Nestas considerações, que me permito, deixo bem claro
que, no Governo exonerado ao qual pertenci, a Justiça foi claramente relegada
para segundo plano. Não obstante a aprovação em Conselho de Ministro dum
Programa de Urgência para o Setor, não foram disponibilizados sequer fundos mínimos
que pudessem fazer face a dívidas acumuladas pelo Estado, mormente o pagamento
de rendas a senhorios de imóveis onde estão instalados tribunais. Assim como,
não foram tomados em consideração múltiplos contributos, bem como sérios
avisos, remetidos ao então Primeiro-Ministro, na área da Justiça. Eventualmente
esperava-se de mim o seguidismo cego, ou que enfileirasse acriticamente na
lógica de uma desalmada luta pelo poder pessoal, para garantir um efémero e
ingrato cargo. Porém, a ser, enganaram-se no perfil: não é o poder pelo poder
que me faz correr.
Durante 14 meses, nesta CASA, com compromisso e honra,
servimos com total fidelidade à Constituição e às leis. Todavia, mal começamos
o trabalho e, por isso, estou insatisfeita. Sentimento que julgo generalizado a
compatriotas, no país ou na diáspora, perante tantos desmandos e atropelos ao
Estado de Direito. De facto, foi-me confiada uma tarefa para quatro anos. Quem
ma confiou nunca me proporcionou pernas para andar. Pelo contrário, fui por
várias vezes humilhada. Desde o início, na hierarquia do Governo: colocado o
Ministério em 13.º lugar, em flagrante violação da Lei. Mas não é tempo só de
lamúrias, nem quero contribuir para o ambiente já tão crispado, de tanta
lavagem de roupa suja.
Bem sei, por experiência pessoal, como pode parecer impróprio
ouvir uma Ministra da Justiça colocar em evidência a falência do Estado em
proporcionar esse bem básico para uma sociedade que é a ADMINISTRAÇÃO DA
JUSTIÇA. Contudo, há um ano, no diagnóstico realizado, chamava a atenção para
esse lamentável cenário. O aparelho judicial não está minimamente preparado
para cumprir as suas funções, nem assenta numa jurisprudência consistente,
padecendo de múltiplos vícios como a morosidade, a inconclusividade, uma
legislação desadequada ou obsoleta, um deficit
de procuração, redundando numa sensação generalizada de inoperância e de
impunidade (…). Fim da citação.
Na verdade, não se pode abordar a questão da administração pública e das
reformas necessárias sem garantir uma justiça imparcial, responsável e
eficiente. Na verdade, a forma mais nobre de engrandecer uma nação é dignificar
a sua justiça, torná-la exemplar, responsável e séria na luta para afirmação
dos valores e princípios éticos que regem a sociedade.
Julho de 2016.
Luís Barbosa Vicente
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