Publicado em 13 de agosto de 2014
Em uma mesa na calçada, num barzinho improvisado junto às vendedoras de bebida e petiscos da região do Império, no centro de Bissau, tomava cerveja com alguns amigos guineenses. Eles comentavam entusiasmados sobre as várias atrações turísticas de sua terra. Era meados de Abril, falávamos sobre o que fazer no fim de semana até que uma ideia já nascia interditada:
- Pessôa, eu queria que tu comesses macaco, pá – disse Sadja.
Eu confesso que fiquei tentado a experimentar. Nunca me imaginara comendo tal carne.
– O Júlio, aqui – ele apontava para uma das pessoas à mesa – faz uma carne de macaco maravilhosa!
– Eu coloco um limãozinho, deixo um tempinho a mais no tempero e ela fica deliciosa – completava o cozinheiro, explicando-me os detalhes da limpeza do bicho, da retirada da pele, da cabeça, etc…
De qualquer forma, não seria daquela vez que experimentaria o macaco do Júlio. O ébola (ou ebola) estava à volta e qualquer pessoa com algum esclarecimento sobre o vírus já não se arriscava mais a comer a carne. Morcego também não apetecia mais, poderia ser fatal.
O ébola, em Abril, já aterrorizava a Guiné-Conacri e mexia com a cultura e com os costumes de toda a África Ocidental, incluindo a vizinha Guiné-Bissau.
De pobres para pobres
Tais males proliferam em meio à precariedade. E podem acreditar que o prazer de comer o macaquinho e o morceguinho no fim de semana não faz parte desta tal precariedade. O que está em questão aqui são ideias já bastante batidas na saúde pública: qualidade em vigilância, prevenção de agravos e resposta.
O alerta para a não ingestão da carne é uma medida preventiva “tardia”, por mais contraditório que isto possa soar.
O que deveria ocorrer é a mobilização constante para que a doença incurável e altamente letal (com mais de 60% de óbitos) não se alastrasse. Para isso, é claro, seria preciso um sistema de saúde bem estruturado nestes países – com planejamento, recursos e previsão de medidas emergenciais eficientes.
Mas esta infelizmente não é a realidade da África Ocidental e de outras tantas regiões do planeta. O ébola faz estremecer as frágeis estruturas de saúde de Libéria, Serra Leoa e Guiné Conacry. A baixa capacidade de resposta preventiva e a infra-estrutura inadequada das unidades de saúde tornam a epidemia especialmente dramática na região.
Mesmo a Nigéria, que vive um boom económico e se encontra em estado de emergência, não teria condições de atender às pessoas infectadas de forma adequada, caso o vírus se espalhasse pelo país. “O potencial de resposta é muito lento”, dizia-me um jornalista nigeriano, reproduzindo a voz corrente dos especialistas locais. A Nigéria registou três mortes por ébola.
O mantra
“Deus salve as ONGs e a indústria farmacêutica!” Este parece ser o mantra da Organização Mundial de Saúde (OMS) e dos governos dos países afetados. Ora, convenhamos, soa-me como uma cantilena de mau gosto.
O ébola foi descoberto há quase 40 anos. Não se pode admitir que algumas regiões consideradas de risco não contem com todos os recursos humanos e materiais necessários para uma pronta resposta.
O vírus surge onde hoje é o Sudão do Sul e no noroeste da República Democrática do Congo (RDC) na década de 1970. Volta à tona nos anos 1990, na Costa do Marfim, Gabão e na região central da RDC. Nos anos 2000, RDC, Gabão, Congo Brazzaville e o território do atual Sudão do Sul registram mais casos. Dessa vez, Guiné, Serra Leoa e Libéria são os países afetados.
Pelo menos desde os anos 1990, a OMS deveria participar ou colaborar de forma efetiva com a prevenção e pronta resposta ao ébola na África Ocidental e Central, incluindo a RDC e Sudão do Sul. Afinal, um novo surto poderia acontecer a qualquer momento de tal forma que a falta de parcerias sólidas entre a OMS e os setores governamentais é injustificável.
Conforme informações da ONG Médicos sem Fronteira (MSF), além de recursos materiais básicos, falta mão de obra qualificada. Médicos precisam ser treinados às pressas para lidar com o vírus em toda África Ocidental.
Além de recrutar profissionais e levantar equipamento para lidar com o problema, a MSF instala unidades de tratamento em diversas cidades das regiões de risco. Será que estes países precisariam de tanto esforço das ONGs se contassem com o apoio permanente da OMS e da comunidade internacional para qualificar o sistema de saúde pública?
Tal esforço seria plenamente justificável porque, afinal de contas, a ameaça é global. Não haveria quem pudesse torcer o nariz caso a OMS assumisse à frente nesta luta para evitar o ressurgimento do ébola, certo?
O deleite farmacêutico
Errado, porque existe quem lucra com isto. Na continuação da tal precariedade, surge o deleite farmacêutico oportunista. A “indústria da doença” está em festa e emergiu nesta semana como a “salvadora da humanidade”. Colhe os frutos plantados pela omissão da OMS e falta de recursos dos Estados atingidos. Sem vigilância, prevenção e resposta, a tal indústria entra em ação e, a médio prazo, prepara-se para fazer dinheiro.
O ébola parece fora de controle. Já são cerca de 1,8 mil infectados e mais de mil mortos. O pânico e o despreparo leva, neste momento, a implementação de um produto inacabado – o ZMapp. Logo, qualquer iniciativa, por mais inócua que seja, é vista como a última esperança e não encontra oposição ou discussão.
O governo norte-americano aceitou colocar à disposição de Libéria e Nigéria o soro curativo contra o vírus. O ZMapp será fornecido alegadamente de forma gratuita para administração controlada para profissionais de saúde eventualmente infectados. No caso da Libéria, houve solicitação expressa da presidente Ellen Johnson Sierleaf. No auge de sua impotência, o governo liberiano celebra oficialmente a medida drástica.
Com as mãos amarradas
Antes inoperante e agora atrasada, a OMS se resume a rotular o ressurgimento da doença como “emergência global”, mobilizar recursos e aprovar eticamente o uso do ZMapp, atendendo aos apelos da empresa californiana Mapp Pharmaceuticals e dos governos reféns da epidemia.
Há alguns meses, a empresa tem se manifestado na mídia internacional em favor do uso de seu medicamento contra o ébola, mesmo que sem um teste prévio. O discurso era: “diante do elevadíssimo risco de morte, que se use o que há, por mais que não tenha sido testado.”
Assim, abriu-se o precedente e pelo menos outras seis empresas norte-americanas devem estar prontas para testar seus medicamentos em “cobaias africanas” nas próximas semanas.
Com se não bastasse, a Libéria sofre os efeitos económicos do ébola. A maioria das empresas estrangeiras já retirou o seu pessoal do país, os voos para a Libéria estão suspensos e os funcionários do Governo cumprem pausa obrigatória de 30 dias. Entre Abril e Junho deste ano, o surto já custou à economia da Libéria 12 milhões de dólares, segundo o ministro das Finanças, Amara Konneh, disse à reportagem da DW África.
O abrandamento dos negócios também já está a ser sentido pelos comerciantes locais. A rede hoteleira começa a ser comprometida, com o país sendo praticamente interditado para o turismo. Na boleia da doença vem a miséria, como se não bastasse.
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