quinta-feira, 31 de agosto de 2017

«OPINIÃO» 'A CRISE POLÍTICA NA GUINÉ-BISSAU E O (DES)ACORDO DE CONAKRY' - DR. JULIÃO SOARES SOUSA


“É fácil adquirir a independência dum povo. O que é mais difícil de obter é a felicidade dos homens” (Houphouët-Boigny, Primeiro Presidente da Costa do Marfim)

A crise política na Guiné-Bissau arrasta-se há mais de três anos e o tempo pedido pelo Presidente da República à CEDEAO para a implementação dos Acordos de Conakry está a esgotar-se. Todos estamos, pois, expectantes relativamente ao que vai acontecer nas próximas semanas. Em teoria (mas só em teoria), há várias possíveis saídas em cima da mesa, mas não me parece haver alternativas à implementação integral dos Acordos de Conakry. É o único caminho que pode evitar a irritação da comunidade internacional, a escassos meses de decisivas eleições legislativas. Nesta altura, nem mesmo um eventual uso da “Bomba Atómica” (dissolução do parlamento) invocando o artigo 69.º, § 1, alínea a) da CRGB, isto é, “grave crise política”, resolveria a situação no essencial, pois a acontecer seria necessário convocar imediatamente eleições antecipadas e não creio que o país esteja (estará?) preparado mental e financeiramente para fazer eleições nos próximos três/quatro meses. Qualquer outra solução continuaria a bloquear o parlamento e não serviria o interesse nacional. Por isso, é minha opinião de que para o desbloqueio de uma situação que começa a ser kafkiana deve haver uma predisposição para um diálogo nacional franco, aberto e intenso nos próximos dias. De nada serve arrastar as coisas para o mês de Dezembro ou Janeiro, com um absoluto desrespeito pela maioria esmagadora dos guineenses. De nada vale ganhar tempo para (passe-se a redundância) não ganhar tempo nenhum. É urgente gerar consensos políticos necessários à pax política e deixar que o povo, a seu tempo, venha a colocar as coisas no seu devido lugar e resolver outros impasses extrapolítico-partidários. De nada vale a aposta no desgaste dos adversários políticos. O cumprimento na íntegra dos Acordos de Conakry é a única via que acarretaria, a meu ver, o regresso à normalidade parlamentar, deixando, democraticamente, a “batata quente” desta crise, como se diz em bom português, nas mãos dos partidos políticos com assento parlamentar. De nada adianta manter o status quo e engendrar uma mini-remodelação governamental para ganhar novo élan até Dezembro/Janeiro. O país não pode esperar mais. Depois de vários meses de vigência desta crise, a conclusão a que qualquer guineense chega é que ela era absolutamente desnecessária. Além do mais, que na gestão ulterior dessa mesma crise foi pior a “emenda que o soneto”. E a pergunta que me interpela, volvidos três anos, é se o país não ganharia se acaso se tivesse explorado até ao limite todos os dispositivos constitucionais reservados pelo constituinte para a evitar a situação presente. Sinceramente, embora sendo matéria reservada, em bom rigor, aos constitucionalistas, se se quisesse, penso que sim. Não é que concorde com alguns desses dispositivos constitucionais, mas eles lá estão. Tenho a responsabilidade como guineense de não deitar mais “achas para a fogueira” e de evitar saber, nesta altura, quem é o culpado, o “feitiço” e o “feiticeiro” ou quem ficará para sempre como o grande responsável político e moral desta crise. Insisto: a manutenção e o extremar de posições não conduzirá a lado nenhum. Ou melhor: conduzirá ao abismo de onde ninguém sairá incólume. Só assim se poupará os povos da Guiné-Bissau a um sacrifício inusitado de viverem (como têm vivido) com governos que não passaram pelo crivo do parlamento e, por conseguinte, sem orçamento, nos últimos dois anos. O que interessa agora são soluções de compromisso em nome dos povos da Guiné-Bissau. Mas há ainda uma outra conclusão que se pode exarar ou subtrair desta crise que assola a Guiné há vários meses. Na política (como na vida) de nada vale a intransigência. É preciso deixar sempre a porta aberta para o diálogo, sobretudo quando está em causa o interesse nacional. Por isso, não entrevejo nenhuma outra saída para esta crise que não seja o diálogo de todas as forças nacionais, tendo em vista a implementação dos Acordos de Conakry. Só ele é suscetível de gerar os necessários consensos políticos e a responsabilização de todos os intervenientes. Todas as outras soluções fora dos acordos rubricados em Conakry parecem-me irremediavelmente comprometidas à nascença e condenadas ao fracasso. Não há dúvida que a situação é complexa e estreito o espaço de manobra. Intuo que as instituições internacionais envolvidas no processo já se aperceberam do labirinto em que a Guiné foi atolada, depois da crise despoletada em 2015. Isso nota-se até pela forma cautelosa como começam a gerir a situação. Os próprios partidos estão já com os olhos postos nas eleições que se avizinham e para as quais estão já a arregimentar as suas “tropas” e recursos. Mas antes das eleições ainda subsistem os Acordos de Conakry, cujo cumprimento constitui prioridade nacional. A inédita situação prevalecente na Guiné-Bissau tem provocado um visível desconforto interno e junto da comunidade internacional. No espaço de três anos, o país conheceu cinco primeiros-ministros, algo que, na história político-institucional da Guiné-Bissau, nunca tinha acontecido. Um record absoluto que (associado a algumas situações ocorridas no passado recente) coloca a Guiné-Bissau no topo da instabilidade política em África e no mundo. Tendo em consideração as grandes promessas que o pleito eleitoral de 2014 prometia (o problema é que todas eleições feitas na Guiné geraram sempre promessas que depois não se concretizaram) ninguém esperava este desfecho. A crise presente é uma demonstração clara de que na política guineense tem havido uma tendência para, como já disse em reiteradas ocasiões, esticar sempre a corda até ao limite. Há uma tendência para não deixar espaço ao diálogo, e, sobretudo, para que desse diálogo resulte uma solução frutuosa que beneficie efetivamente o verdadeiro usufrutuário da ação política que é o povo. Evidencia ainda, se se quiser, que estamos perante uma das “doenças” do Estado pós-colonial africano que o nigeriano Claude Ake já tinha identificado em outros países do nosso continente: a incapacidade de gerar consensos políticos e sociais e integração política. Mantenho o aforismo que antevi em 2012, de que a Guiné Bissau é um país vencido pelo ódio, pelas intrigas políticas, pela inveja e pelos rumores e boatos. É um país que não consegue sair da fase de pseudodemocracia e do caos e desordem a que se habituou, desde 1994. E não consegue pura e simplesmente porque, como defendem alguns teóricos, o Estado não consegue ser anterior à democracia. Isto é, não se tem permitido que a democracia seja de facto uma forma de governo do Estado, o que pressuporia, da parte dos atores políticos, a assimilação do ideário de que a consolidação do Estado deve ser uma prioridade nacional. Em parte, é a ausência dessa assimilação que tem provocado uma leitura enviesada (para não dizer deturpada) da relação política no âmbito do Estado que deve ser separada da relação pessoal. As consequências estão à vista de todos e explicam, de certa maneira, a crise atual, que se encaixa perfeitamente no género dos conflitos pós-eleitorais atípicos. Esses conflitos pós-eleitorais atípicos têm-se exteriorizado com alguma acuidade e de modo incisivo desde as eleições legislativas de 1999 e presidenciais de 2000. Até agora não têm entrado nas análises políticas, mas na minha perspetiva, estão na origem da decadência das instituições pela forma como têm corroído a superstrutura política. Se não, vejamos. Entre 1999/2000 à atualidade ocorreram os seguintes conflitos de coabitação pós-eleitorais: Kumba Yalá e Ansumane Mané (líder da então Junta Militar); Carlos Gomes Júnior versus João Bernardo Vieira “Nino”; Carlos Gomes Júnior e Malam Bacai Sanhá; José Mário Vaz e Domingos Simões Pereira. Classificamo-los de atípicos porque não resultam: 1) de processos eleitorais geneticamente fraudulentos; 2) da contestação de resultados eleitorais por parte de candidato(s), partido(s) ou coligações de partidos; 3) de tentativas de alteração da ordem constitucional por forma a eternizar algumas oligarquias no poder; 4) ou, se se quiser ainda, de tentativas dessas oligarquias promoverem os filhos para os substituírem nos cargos. Nada disso. Na Guiné-Bissau, tirando o golpe de Estado de 2012, que interrompeu o processo eleitoral em curso e alterou a ordem constitucional, o que tem Estado na moda, desde 1999/2000, é a dificuldade de coabitação pós-eleitoral. De todos os exemplos de dificuldades de coabitação atrás assinalados vale a pena chamar a atenção para a forma como, a seu tempo, o Presidente Malam Bacai Sanhá soube gerir com parcimónia e sentido de Estado a situação, ouvindo os conselhos e mantendo Carlos Gomes Júnior no cargo de primeiro-ministro, apesar de todas as pressões. Evitou assim a radicalização de posições que em nada beneficiaria o país. Todas as restantes situações provocaram turbulência e volatilidade deixando no ar a ideia de que nenhum processo eleitoral vai resolver de facto os problemas da Guiné-Bissau se não se combater seriamente os ódios pessoais, que muitas vezes acabam por se imiscuir na relação política e afetar o Estado, as instituições políticas e as relações de poder. Isso tem feito com que os processos eleitorais criem a ilusão fugaz de que com eles se vai inverter a situação de potencial violência e resolver os problemas congénitos de lutas pelo poder. Nada mais falso. Essa desgraça coletiva transfigurou o Estado guineense numa autêntica “praça de touros” e a política num espaço de competição política letal, em que não se olha a meios para atingir fins por vezes inconfessos. Portanto, na minha humilde opinião, a preocupação da comunidade internacional deve (re)orientar-se para este novo (mas já adulto) epifenómeno que tem estado na origem da instabilidade na Guiné-Bissau das últimas décadas. Acreditamos, contudo, que só o guineense tem a chave para a resolução dos seus problemas. Como? Através do recurso ao diálogo interno e estabilização das instituições políticas; pondo termo ao permanente estado de “guerra civil” não declarada e à guerra de todos contra todos; gerando autoestima e consolidando o regime democrático e inclusivo. Os povos da Guiné-Bissau já merecem o progresso e a felicidade a que têm direito.


Julião Soares Sousa, guineense.

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