Os portugueses tratam-no pelo primeiro nome, Otelo. O ex-militar português planeou e comandou as operações do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974.
Durante três semanas, Otelo escreveu em 26 folhas A4 o plano de operações do golpe militar que derrubou quase meio século de ditadura fascista em Portugal.
Otelo Saraiva de Carvalho fez a revolução e, depois, quis voltar à vida de professor na Academia Militar portuguesa. Mas não o deixaram. Para muitos, Otelo tornara-se num herói, imprescindível para levar a cabo a transição da ditadura para a democracia – o então major tinha 37 anos.
Antes da revolução, o ex-militar combateu na guerra colonial, que a ditadura portuguesa manteve teimosamente durante 13 anos. Foi a guerra que motivou Otelo a lutar contra o regime – porque, segundo diz, era urgente chegar a uma solução política e parar com o derramamento de sangue.
DW África: Esteve na Guiné-Bissau entre 1970 e 1973. Combateu contrariado?
Otelo Saraiva de Carvalho (OSC): Na Guiné-Bissau já combati contrariado. Mas na primeira comissão que fiz em Angola, entre 1961 e 1963, quando tinha acabado de ser promovido a alferes (a primeira patente de um oficial), ia animado de boas intenções. Ia não só para me experimentar a mim próprio enquanto comandante de 30 ou 40 homens em situações de combate (era uma valorização pessoal que precisava de assumir), mas também para defender território que tinha sido conquistado havia mais de quatro séculos pelos portugueses.
No entanto, ao longo das três comissões que fiz, foi-se desvanecendo esta perspetiva de estar ali a lutar por alguma coisa que valesse a pena.
DW África: Lembra-se do momento em que disse "basta"?
OSC: Foi exatamente aquilo que deu origem ao Movimento dos Capitães.
Estávamos cansados de uma guerra que não fazia já sentido. No caminho da História, era impossível manter indefinidamente um império colonial que não tínhamos capacidade de aguentar. Quer pelas forças que nós tínhamos, quer pela maior capacidade das forças dos movimentos de libertação, que demonstravam cada vez mais ter melhor armamento, melhor capacidade de instrução, melhores quadros que se iam formando no exterior – na China, na União Soviética… Isso começava a dar-nos uma sensação de impotência total e também, política e ideologicamente, a perspetiva era de que a guerra tinha de ter uma solução política.
Portanto, essa falta de motivação já existia. E então surgem os famosos decretos de julho e agosto de 1973, que nos demonstram que o Governo não só não está empenhado em encontrar uma solução política, mas, pelo contrário, estava empenhado em manter a guerra e continuá-la.
Esses decretos vão abrir a possibilidade a homens que já tinham feito uma comissão como milicianos na guerra colonial e agora eram funcionários públicos, bancários, empregados de empresas, de poderem ingressar no quadro permanente com a antiguidade de tenente, com que tinham saído do serviço militar. E aí, pá, foi o fim!
DW África: Como é que o movimento conseguiu escapar ao "radar" da polícia política portuguesa, a PIDE/DGS?
OSC: Talvez devido a um receio que [o Presidente do Conselho de Ministros] Marcello Caetano tivesse de qualquer ação policial exercida sobre uma instituição que preservava a sua fachada de "ao serviço da Pátria".
No início, até havia faltas de segurança em reuniões clandestinas por parte do Movimento dos Capitães. A malta reunia-se e discutia assuntos sempre com esse à vontade que resulta da força da instituição militar na sociedade civil.
[…] Esse receio persistiu e vai levar a que Marcello Caetano revogue os decretos que tinham dado origem ao Movimento dos Capitães. Portanto, uma vitória considerável.
Só a 15 março de 1974, com a exoneração dos generais António de Spínola e Costa Gomes, é que a PIDE começa a estar no terreno. Marcello Caetano vai ficar à espera de uma reação dos capitães que estavam escorados pelos dois generais. A perspetiva é que essa reação acontece com o 16 de março. E aí a PIDE já está, de facto, no terreno.
DW África: Esteve envolvido nessa tentativa de golpe. O golpe falhou…
OSC: Não era bem um golpe. Foi uma aventura descabelada. A iniciativa não foi minha. Eu vi-me envolvido naquela situação, que era para ser desencadeada na noite de 13 para 14 de março. O objetivo era impedir a "Brigada do Reumático", que iria ter lugar a 14 de março – a [cerimónia de] vassalagem de generais dos três ramos das Forças Armadas na Assembleia Nacional perante Marcello Caetano, a jurar-lhe fidelidade e que as Forças Armadas estavam com a política colonial seguida pelo Governo, o que já não era verdade. Eles já não representavam a instituição militar, de facto.
Eu cancelei a ação. Mas uma unidade, não tendo aceitado a minha decisão de cancelamento daquela ação que me parecia perfeitamente aventureira, reincidiu isoladamente.
[…] O 16 de março foi um sábado. As unidades ficam vazias, porque o pessoal vai de fim de semana e ficam só os faxinas na cozinha ou os sentinelas na Porta de Armas. E, por isso, o resultado daquilo foi uma aventura total.
Eu fui arrastado naquilo - não fui preso pela PIDE por trinta segundos, o que foi uma sorte monstra porque, a partir daí, tive oportunidade de agarrar naquilo que ainda sobrava da Comissão Coordenadora Executiva [do movimento revolucionário] e fazer uma reunião definitiva e última, onde expus o que se tinha passado no 16 de março. Disse: "Assumo a responsabilidade de elaborar uma ordem de operações com cabeça, tronco e membros para fazer uma operação militar que vamos desencadear na última semana de abril."
DW África: Ou seja, aprendeu a lição.
OSC: O 16 de março foi bom. Depois, muita gente considerou que tinha sido um balão de ensaio provocado para ver quais eram as forças governamentais no terreno contra as quais teríamos que lutar. E foi isso que acabou por ser.
DW África: Como é que planeou a operação do 25 de Abril?
OSC: Foi um trabalho absolutamente solitário. Saía, recolhia elementos. Corri riscos, pá…O Vasco Lourenço e o Vítor Alves chamavam-lhe a "loucura do Otelo".
Eu, por exemplo, não sabia bem o que era a Guarda Nacional Republicana (GNR). Mas lembrei-me de um primo meu, major, que era adjunto de operações na Repartição de Operações do Comando-Geral da GNR. E eu, que já não o via há anos, fui à lista telefónica, vi o número dele, telefonei-lhe e disse: "Gostava muito de te ver, dar-te um abraço…"
Fui a casa dele: "Epá, é que vou fazer uma revolução e preciso de ti." Ele disse: "Estás maluco, estás a brincar?".
Respondi: "Não, é a sério. Vou derrubar o Governo e preciso de informações sobre a GNR, que é inimigo. E tu vais dar-me essas informações: o que é a GNR, que viaturas tem, que armamento, o que faz, patrulhas… Preciso desses elementos todos." Ele ficou assustadíssimo. Mas disse-me "ok".
Passado menos de uma semana, telefonou: "Epá, queres cá vir?" Deu-me os elementos.
DW África: Considera hoje que foi loucura?
OSC: Loucura não, porque eu estava perfeitamente consciente do que estava a fazer. Simplesmente disse: entre não saber o que é o inimigo e lançar-me às cegas contra uma parede que não conheço, tenho de procurar saber, mesmo correndo o risco. Portanto, foi um correr de risco perfeitamente consciente.
DW África: Paulo Moura escreve na sua biografia: "Era como se a revolução estivesse à espera de ser feita mas precisasse, ainda assim, de alguém que a fizesse." Era isso que sentia?
OSC: Na altura não tive essa consciência. Eu sou um homem de compromissos e, quando assumo um compromisso, só a morte é que pode impedir que não cumpra aquilo que prometi fazer.
De tal forma não tinha consciência daquilo em que estava empenhado que, quando tudo acabou e eu mandei libertar a malta que foi presa no 16 de março aqui na Trafaria, o Almeida Bruno, quando eu sou chamado a Belém, diz-me: "Otelo, tu já estás na História". E nem tínhamos uma relação muito estreita. E eu disse: "Ah, na História o quê…"
Portanto, considerava uma coisa banal, quase. Era necessário. Eu estava naquelas circunstâncias, tinha sido indigitado para a direção do Movimento das Forças Armadas (MFA). Tinha assumido aquele compromisso, tinha de o fazer.
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