quarta-feira, 21 de junho de 2023

Carmelita Pires: "O órgão soberano da Guiné-Bissau é o povo!"

Na Guiné-Bissau, depois da vitória da coligação PAI -Terra Ranka que conquistou a maioria absoluta nas legislativas do dia 4 de Junho, perspetiva-se um cenário de coabitação política entre o actual Presidente da República e a coligação coordenada por Domingos Simões Pereira que há cerca de uma semana estiveram reunidos e mantiveram, segundo as suas próprias palavras, uma "conversa tranquila".

Face a este novo cenário que se avizinha, surgiram interpretações diversas das prerrogativas constitucionais de cada pilar da soberania na Guiné-Bissau e voltou também a estar em debate a necessidade -ou não- de alterar a Constituição, cuja matriz datando de 1984 foi inspirada da Constituição portuguesa, como aconteceu com vários outros países.

Foi neste contexto que há dias, Carmelita Pires, mestre em Direito Constitucional e antiga Ministra da Justiça, publicou nas redes sociais um texto evocando precisamente estes pontos. Em entrevista com a RFI, Carmelita Pires recordou o que estipula a Constituição guineense para cada órgão de soberania, sendo que actualmente o regime do país é semipresidencialista. Na óptica da antiga governante, tem havido "nuances" na forma como se interpreta a lei que, a seu ver, acabou por ser desvirtuada do seu sentido inicial.

RFI: Quais são as prerrogativas do Presidente da República? Pode presidir o Conselho de Ministros?

Carmelita Pires: Há ressonâncias do Estado de partido único, que é a lei n°1/73, numa das revisões, que recai sobretudo na questão da organização dos nossos órgãos políticos e adopta um sistema semipresidencial. Vamos lá ver um exemplo dessas "nuances". Tínhamos um Chefe de Estado que era chefe de Estado, era chefe do governo, presidia eleições, orientava toda a política do governo. É nesse sentido que há uma disposição que diz "quando entender". Ora esse "quando entender" vai desvirtuar as relações dos órgãos de soberania, sobretudo quando o princípio principal é a separação e a independência dos órgãos de soberania e a observância de todos à Constituição. Quando temos essa intenção desse governo de iniciativa presidencial que está neste momento em gestão totalmente assumida, inclusivamente com a criação de cargos que não existem a nível constitucional, como é o "vice primeiro-ministro", nós temos algum receio quando há alguns sinais que demonstram que isto pode persistir. Ora, isto é desvirtuar o semipresidencialismo da Guiné-Bissau com um pendor muito acima do presidencialismo. Não é isto que a nossa Constituição diz. A prova evidente é que em 20 anos de sistema democrático, nós tivemos 21 Primeiros-ministros, tivemos um único Presidente que concluiu o seu mandato, mas num clima de total instabilidade política. Portanto, é da tal ideia de vontade de paz, de estabilidade, de esperança, que desponta esta esperança de ver as coisas cumpridas em equilíbrio. O equilíbrio não é "quando o Presidente entender". O equilíbrio é "quem é o chefe do governo, é o Primeiro-ministro", "quem preside (o conselho de ministros) é o Primeiro-ministro". Se o Presidente entender, em concertação com o Primeiro-ministro, pode -por um assunto importante, fundamental, de interesse nacional- fazer-se convidar, como está aliás na Constituição portuguesa e nas outras.

RFI: Relativamente ao Primeiro-ministro, o Primeiro-ministro tem que responder perante o Presidente da República ou perante o parlamento?

Carmelita Pires: Isto está claríssimo na nossa Constituição. A legitimidade do Presidente e a legitimidade da Assembleia da República são diversas, como nós sabemos, e ele é responsável quer perante a Assembleia, quer perante o governo. Mas atenção, é o programa do governo que é apresentado na assembleia e que é aprovado e na base do qual ele governa. Depois existe aquela responsabilidade de informar o Presidente da República como, efectivamente, o governo chefiado pelo Primeiro-ministro dirige a política interna e a política externa do país. Mais do que isso não existe na nossa Constituição.

RFI: Quais são exactamente as prerrogativas do Parlamento neste regime semipresidencialista?

Carmelita Pires: é o órgão superior legislativo. Infelizmente, também não temos sido muito bem-sucedidos. Eu gostaria de usar uma expressão que resulta das minhas reflexões: depois de umas legislativas no nosso país, nos temos sempre umas "segundas voltas". Quer-me parecer que é aquilo que está a acontecer neste momento, porque o país é caracterizado e Álvaro Nóbrega, num dos seus livros, retrata isso muito bem, a luta pelo poder desde os tempos remotos. Estamos neste momento a assistir a uma segunda volta das legislativas, o que é absurdo num sistema que está claro para quem entende e, sobretudo, com titulares de órgãos políticos que possam assimilar minimamente o que é que a lei suprema desta República nos diz e que possam, pelo menos, correr o risco de ser responsabilizados -como diz a Constituição- quer do ponto de vista civil, como do ponto de vista político, mas também criminal. Está previsto. Volto sempre a isto. Ás tantas, deixamos de ter qualquer partido político e pensamos no país. É redobrada uma esperança para que a própria assembleia esteja exclusivamente adstrita aos poderes que são os principais desta República em termos de fiscalização do trabalho do governo e de fazer as leis. Isto é a Assembleia. Aliás, desde que foi proclamada em Boé, já eram estes os atributos da Assembleia Nacional, tanto mais que hoje se chama "Popular" e não Assembleia "Nacional".

RFI: Na semana passada, o actual Presidente da República recebeu o líder da coligação que venceu as eleições legislativas. Disseram desta conversa que foi uma "conversa tranquila", depois de ter havido alguns desacordos sobre a interpretação da Constituição. Como se sente depois desta conversa? Julga que haverá eventualmente condições para haver uma coabitação pacífica?

Carmelita Pires: Espero que haja porque é isso que nós esperamos. Nós votamos, muitos de nós por voto útil, perante o que se está a viver no nosso país, nós temos aquela esperança de que efectivamente, pela primeira vez, se entendam, que o cartaz de campanha -que não o Presidente que também foi cartaz de campanha- que é o chefe da coligação que ganhou a maioria absoluta possa efectivamente governar o nosso país em tranquilidade e representar esta maioria, este interesse, esta vontade do povo. O presidente da República, que é outro órgão de soberania, tem de se submeter a esta vontade e não é por questões pessoais, ou outras que se possam eventualmente inventar, que vem pôr mais uma vez em causa a vontade popular da Guiné-Bissau e o sistema de governação deste país. Estamos em crer que sim e que ao cartaz de campanha, Domingos Simões Pereira, lhe possa ser dado o direito de nos administrar durante um período de 4 anos e possam, desde já, começar a pensar na questão das presidenciais. É fundamental. Queremos equilíbrio, temos direito de ser governados de maneira estável e temos direito também a finalmente conseguir, desde a proclamação deste Estado, cumprir um programa maior que é dar as condições mínimas a esta população e desenvolver este país.

RFI: Depois dos desacordos que houve relativamente à interpretação da Constituição, voltou-se também a evocar o terno debate sobre a necessidade -ou não- de alterar a Constituição e de eventualmente mudar de regime. Acha que de facto é necessário mudar a Constituição?

Carmelita Pires: Tenho alguma legitimidade, porque fiz parte da equipa convidada pelo Presidente da República para a revisão constitucional. Eu tive oportunidade de entregar ao Presidente da República a minha opinião relativamente a esta matéria. É verdade que se não capazes, os nossos políticos, de cumprir com a Constituição e o regime semipresidencialista, então que se reveja. Mas rever a Constituição não é em iniciativas pontuais e muito menos iniciativas que vão copiar a evolução do constitucionalismo português. Nós somos um país particular, estamos fartos de o comprovar com todas estas instabilidades, somos uma série de etnias e isto tem que se saber fazer. Há gente aqui preparada que sabe como orientar isto. Tem que haver um referendo, tem que haver uma consulta generalizada e minuciosa da população. O órgão soberano deste país é o povo! Não é como as coisas estavam a ser feitas, quer a nível da Assembleia, quer a nível da própria iniciativa presidencial que, mais uma vez, seria -como foi em 1994- de apenas impor ao órgão soberano desta República uma Constituição. Estamos a fazer 50 anos desde que se proclamou a República. Há uma maturidade política apesar de não termos escola e de estarmos há 3 anos com problemas gravíssimos na educação deste país, mas isto implica que sejamos consultados. Basta uma boa vontade, que os políticos decidam que "é desta" e há mesmo estabilidade. Vamos observar o que temos e vamos projectar para algo que seja mais útil e que não seja o "copy, paste" do regime português ou outro qualquer, que também pode ser o presidencialismo. Este povo -sintomático disso é a maioria absoluta- quer ser tido e achado. Eu própria quero ser tida e quero ser achada no que diz respeito ao futuro do meu país e ao sistema de governação.

RFI: Quem defende o regime presidencialista argumenta que seria muito mais fácil, até porque na região a maioria dos países adoptou o regime presidencialista. Julga que isto é um argumento que se pode tomar em consideração?

Carmelita Pires: Claro que podemos, porque é o debate. No trabalho que entreguei ao Presidente da República, defini os regimes, as vantagens e desvantagens de um e de outro, mas não é por aí. Estes debates justificam-se mas numa fase anterior, de ver as vantagens e apresentar isto tudo em termos de referendo, porque não? São imensos anos a formar pessoas neste país. A primeira escola neste país, foi a escola de Direito. Há muita gente bem preparada para fazer as coisas, mas em conformidade com os parâmetros constitucionais, porque só observando o que temos é que podemos dar o salto. Que seja presidencialista, semipresidencialista ou regime parlamentar, que seja, mas o melhor que nos puder sair. 

Já sabemos que temos que observar aquilo que é mínimo e está definido desde os tempos da Grécia (antiga) nos sistemas de governação, mas vamos adaptar ao contexto africano, não no sentido de dizer que "sai melhor o presidencialismo". Há muitos defeitos no presidencialismo também em África, inclusive na nossa sub-região. Portanto, eu concordo, leio, aprecio as teorias, mas continuo a defender a autenticidade porque é chegado o momento, depois de 50 anos, de pensarmos um bocadinho mais com o umbigo em algo que seja adequado para o país, através de uma lei magna que vá definir isso melhor, porque parece que não está bem, ninguém observa.

Por: Liliana Henriques
Conosaba/rfi.fr/pt/

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